Mais um relato certeiro e esclarecedor
de Jaime Nogueira Pinto a respeito
da Guiné e de Sissoco Embaló a embalar-nos memórias.
A crise Guiné-Bissau: entre a realidade e a ficção /premium
Após a simbólica volta triunfal à praça
diplomática, o candidato a presidente-eleito, Sissoco Embaló, seguindo
com audácia uma criativa estratégia de antecipação, escala agora para a “posse
simbólica".
JAIME NOGUEIRA PINTO
OBSERVADOR, 28 fev 2020
Ontem
Bissau, capital da Guiné-Bissau, foi teatro – e “foi teatro” é o termo – de
um fenómeno que consegue ser original na grande colecção de ineditismos
folclóricos que se vão sucedendo por este mundo de Cristo.
No
meio de uma controvérsia político-constitucional sobre os resultados da segunda
volta das eleições presidenciais, um dos candidatos, baseado numa vitória
eleitoral ainda em contestação no Supremo Tribunal de Justiça, optou por tomar
posse… na sala de conferências de um Hotel. O Hotel Azulai, em Bissau.
Seguindo
uma estratégia de facto consumado, inaugurada com a tournée internacional em
que logo se lançou ainda as urnas estavam quentes, Sissoco Embaló, o auto-proclamado “General do Povo da Guiné e
Doutor da Universidade Complutense de Madrid”, proclama-se agora
Presidente da Guiné-Bissau num acto não-oficial que o próprio descreve como
“posse simbólica”. A posse real, supõe-se, fica a aguardar melhores dias. Assim,
depois de uma simbólica volta triunfal à praça diplomática, o candidato a
presidente-eleito prossegue com audácia a sua criativa estratégia de
antecipação, escalando agora para a “posse simbólica”.
Ficção 1: polícias (americanos) e
bandidos (mexicanos)
Acabei
de ver, na Netflix, a série Narcos-México. A história baseia-se em
factos reais, mais precisamente na luta da DEA (Drug Enforcement Agency)
norte-americana contra o narcotráfico no México e na Colômbia. Em Fevereiro
de 1985, um agente da DEA, “Kiki” Camarena, foi torturado e assassinado por
elementos da Federação dos cartéis do crime, dirigida por Miguel Angel
Gallardo. A partir daí, a DEA montou a Operação Leyenda, partiu em
perseguição dos narcos e, trabalhosa e pacientemente, foi eliminando os
principais implicados.
Trabalhosa
e pacientemente porque, tal como na Colômbia, os narcos gozavam das mais altas
cumplicidades a nível do poder político; no caso mexicano, do Governo do PRI, o
famoso Partido Revolucionário Institucional (só o nome é todo um programa) que,
por décadas, dominou o país. Os traficantes mexicanos corromperam boa parte dos
responsáveis policiais e aterrorizam o resto. Mas nas eleições de 1988, pela primeira vez, o PRI e
o seu candidato, Carlos Salinas de Gortari, foram seriamente desafiados por
Cuauhtémoc Cárdenas (filho do antigo presidente, o general Lázaro Cárdenas)
que, com partidos de esquerda e de direita, formou uma coligação – a Frente
Democrática Nacional – para bater o candidato do PRI e acabar com a hegemonia
dos revolucionários institucionais mexicanos.
Num
dos episódios finais da série, há, nas eleições, uma introdução de dados falsos
nos computadores que estão pela primeira vez a funcionar para as contagens
eleitorais. Quando a fraude é detectada, o Ministro do Interior provoca um
“apagão” que deita abaixo todo o sistema informático. E fracassada a forma
branda da fraude eleitoral, os narcos da “Federação”, às ordens de Miguel Angel
Felix Gallardo, fazem o que costumam fazer: recorrem a formas superiores de
luta, desta vez invadindo as assembleias de voto e intimando os presidentes das
urnas a adulterar nas actas o número de votos no candidato do PRI,
acrescentando-lhe uns zeros. Entretanto,
para evitar a recontagem que parecia iminente, os sicários dos narcos e os
militantes do PRI queimam as urnas com os votos lá dentro.
Isto
no filme. Na vida
real, o Ministro do Interior, Manuel Bartlett, que esperava ser o candidato do
PRI e que por isso montou o esquema de fraude electrónica, foi substituído à
última hora por Gortari. Mais tarde, o presidente cessante, Miguel de la
Madrid, confessou a fraude informática na autobiografia que publicou em 2004.
Curiosamente, o recentemente eleito presidente Lopez Obrador acabou de nomear
Manuel Bartlett, o mesmo que provocou o “apagão” em 1988, director-geral da
Comissão Federal da Electricidade, talvez esperando colocar a bom uso
institucional os revolucionários e fraudulentos dotes demonstrados.
A
fraude da eleição presidencial do México de 1988 está hoje mais do que
demonstrada. Na série Narcos-México, os narcos de Gallardo têm um papel
crucial: quando falha a via branda, passam à via dura, ou às vias de facto.
Realidade
1: A Guiné não é o México dos narcos, e no entanto…
O
caso da eleição presidencial da Guiné-Bissau – e da polémica que abriu –
oferece várias lições. Na eleição, ficaram apurados para a segunda
volta, em 29 de Dezembro de 2019, os dois candidatos mais votados no primeiro
escrutínio – Domingos Simões Pereira, líder do PAIGC e primeiro classificado, e
Umaro Sissoco Embaló, candidato do Movimento para a Alternância Democrática
(MADEM G-15). Na segunda
volta, Sissoco Embaló foi apoiado
pelos outros candidatos excluídos – o ex-Presidente ainda em exercício José
Mário Vaz, Nuno Nabiam, da APU-PDGB, e Carlos Gomes Júnior, antigo presidente
do PAIGC e primeiro-ministro.
Foi uma clara coligação
negativa entre personalidades política e pessoalmente muito diferentes, senão
mesmo antagónicas, só explicável por uma coincidente hostilidade a Domingos
Simões Pereira e ao PAIGC, a que todos já pertenceram.
Logo
que foram anunciados os resultados pela Comissão Nacional de Eleições, Simões
Pereira declarou que iria impugná-los, alegando uma série de fraudes e
irregularidades, cujas provas apresentaria aos órgãos competentes – a Comissão
eleitoral e o Supremo Tribunal de Justiça, que, na Guiné, tem também funções
político-constitucionais.
Realidade 2: A táctica dos factos políticos consumados
Os resultados anunciados pela Comissão Nacional de
Eleições davam 53,55% a Embaló e 46,45% a Simões Pereira. Domingos Simões
Pereira, nas alegações então apresentadas às entidades competentes, apresentou
provas de fraude na contagem (houve até um ataque de hackers
ao sistema informático da Comissão Nacional de Eleições, depois documentado e
divulgado por vários órgãos de informação, também em Portugal) e pediu a
recontagem material dos votos ou a anulação da eleição.
Mas eis que Sissoco Embaló, sem dar qualquer
importância à contestação do adversário, parte imediatamente para Dakar e daí
para um périplo regional e europeu, apresentando-se como presidente-eleito.
Tudo graças a uma teia de influência, amparada pelo seu grato amigo e
protector Macky Sall, Presidente do Senegal, e trabalhada ao longo dos
anos. Prosseguindo uma estratégia de
audácia e antecipação, Sissoco conseguiu visitar uma série de líderes
regionais, criando a convicção de que a sua eleição era um facto consumado.
Depois veio a Lisboa, dizendo-se de partida para Paris, para um encontro com o
Presidente Macron. O Primeiro-Ministro português convidou-o para um encontro e
até o Presidente da República o recebeu, embora ressalvando o carácter privado
da audiência, concedida a “uma personalidade política da Guiné Bissau”.
Curiosamente – ou não tanto –, no dia
seguinte à partida de Sissoco de Lisboa e à sua chegada a Paris, o Quay d’Orsay
anunciou numa nota seca que não haveria audiência alguma a Sissoco Embaló
enquanto o processo eleitoral estivesse na pendência de uma decisão dos órgãos
jurisdicionais competentes da Guiné-Bissau.
Também pelas mesmas razões, e após algum debate, a
União Africana não aceitou a presença oficial de Sissoco na reunião de Adis
Abeba como Presidente eleito, apelando a um entendimento institucional entre o
Supremo Tribunal de Justiça e a Comissão Nacional de Eleições da Guiné-Bissau.
É que, entretanto, a Comissão eleitoral guineense, por 10 votos contra 8 (os
membros da minoria vencida recusaram-se a assinar a decisão) e o Supremo
Tribunal de Justiça (por cinco votos contra dois, que votaram vencidos,
apresentando declarações de voto) tinham entrado em choque, recenando-se que
não houvesse entendimento à vista, apesar dos apelos do exterior, sobretudo da
Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDAO).
Toda esta novela tem tido
episódios quase grotescos, como o protagonizado pela Ministra dos Negócios Estrangeiros, Susy
Barbosa, que, depois de ter apresentado a demissão do Governo de Aristides
Gomes, foi nomeada pelo ex-Presidente José Maria Vaz (que, embora também
“congelado” em funções, foi o convidado de recurso da União Africana para
representar a Guiné Bissau em Adis Abeba) e designada sua representante na
reunião. Ao mesmo tempo, o governo de Aristides Gomes nomeara já a ministra da
Justiça para a mesma missão.
Realidade 3: Os interesses externos
O processo legal contencioso não está encerrado e tem
algumas envolventes regionais: os governos
do Senegal e da Nigéria inclinam-se para Sissoco Embaló; os governos da Costa
do Marfim, do Gana e da Guiné Conacry para Domingos Simões Pereira. Há
outras posições, como a dos rebeldes de Casamansa, que acusam elementos guineenses e
senegaleses de perturbação do processo político interno da Guiné- Bissau devido
a interesses de concessão de exploração de petróleo na ZEC (Zona Económica
Conjunta). A ZEC integra 54% do domínio marítimo do Senegal e 46% do domínio
marítimo guineense. Parte da opinião pública guineense – ainda recordada do
papel das tropas senegalesas na crise 1997-98 – reage muito mal a estas
interferências, e Domingos
Simões Pereira, em deslocações a Paris e a Angola e depois de uma audiência com o
Presidente João Lourenço, sublinhou em entrevista à TPA os riscos de eleger
para a Chefia do Estado da Guiné-Bissau alguém tão próximo do Presidente do
Senegal e, neste momento, tão em dívida para com ele.
Mas audácia não falta a Sissoco Embaló na persecução da sua estratégia de facto
consumado. Apesar de continuar pendente a recontagem dos votos ordenada
pelo Supremo Tribunal, condição sine qua non para a legalidade do acto eleitoral, insistiu numa tomada de posse
“pirata”. E na falta do presidente da Assembleia Nacional para o empossar, arranjou
um vice-presidente. Como o Governo lhe é hostil, prevê-se agora que a esta
posse simbólica possa seguir-se uma demissão também simbólica, feita à revelia
dos órgãos de soberania e das regras constitucionais e arriscando um clima de
tensão e violência.
E no entanto, como vem dizendo desde o início de toda
crise Domingos Simões Pereira, bastaria uma recontagem dos votos materiais –
que se espera que ainda estejam nas urnas – para que tudo se esclarecesse. Uma
contagem que não será demorada, já que são só cerca de 700.000 os eleitores
guineenses. De resto, Simões Pereira já declarou que aceitará sem discussão o
resultado dessa recontagem.
Conclusão: Cuidado com as posses simbólicas
Quem tem medo da recontagem?
O facto é que, no México, Carlos Salinas de Gortari, o
associado dos narcos, foi mesmo eleito Presidente e cumpriu o mandato com o
apoio dos carteis da droga.
Não quero equiparar os grandes patrões do narcotráfico
mexicano aos pequenos e médios traficantes da Guiné-Bissau, que também os há. Nem o México à Guiné
lusófona, que, em termos de violência, quando comparada com o México, é um país
de brandos costumes. Mas será bom estar atento e não deixar que a ficção dos
factos consumados e das posses simbólicas produzam efeitos contra a realidade
da Lei e do Direito.
COMENTÁRIOS
Paula Barbosa: Acredito que sim, a sharia vai nivelar toda a
rapaziada. Vergastadas nos homens e pedrada até à morte nas mulheres, e acabam
os problemas políticos e sociais..
francisco oliveira: O Islao, com o actual presidente, porá um fim a todos os
problemas tribais e linguísticos.
Arabia Saudita financiara o necessario e
Ala fara o resto.
Venezuela Livre: A Guiné sempre no fio da navalha.
Manuel Marques: Os artigos Premium são censura monetariamente
compensada à palavra de quem escreve
Paula Barbosa: Acabará integrado no Senegal ! Nunca teve uma
identidade nacional, tal a loucura de tribos e linguagens. Perguntem a um
guineense donde é e ele responde sempre pela sua região ou etnia. Só isto diz
tudo deste pseudo país que além de ser uma miséria, deu cabo da integração de
Cabo Verde na Comunidade Europeia, não permitindo que estes fossem uma Região
Autónoma de Portugal, com os apoios de milhões em Fundos Estruturais para o seu
desenvolvimento. Cabo Verde continua de uma pobreza confrangedora mas com
um povo nobre e trabalhador. Eu sei, eu vou lá de férias, sempre a diferentes
ilhas, e trabalho aqui com vários cidadãos deste país. Este assunto é sempre
falado nas minhas conversas políticas quando lá estou. O arrependimento é
geral...
Pedro Ferreira: Este pseudo
país, só terá paz quando pedir a tutela da antiga potência colonial. Acredito
que Amílcar Cabral, se fosse vivo, não deixaria de apoiar. Têm sempre a
alternativa Francesa ou Chinesa, escolham.
Glorioso SLB: E ñ fossem os artigos do JNP, e pc se ouviria falar
(e ainda menos perceber) a actual situação política da GB.
José Costa-Deitado: Com 27 etnias
e 29 línguas dificilmente se entenderão!
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