terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

O OBSERVADOR também relembra



E o retrato assim se vai completando, de um espírito original que se manterá nos livros que publicou. Ainda bem que existiu. E que teve amigos – e inimigos - que ajudam a percebê-lo.
I.Vasco Pulido Valente e a opção liberal-democrática /premium
Saliento a sua profunda adesão à tradição liberal, aristocrática e moderada dos povos de língua inglesa, diferente da tradição despótica, igualitária e alegadamente democrática da revolução francesa.
JOÃO CARLOS ESPADA  OBSERVADOR, 24 fev 2020
Vasco Pulido Valente foi sempre uma voz independente de todas as tutelas e de todas as clientelas — um homem livre, com um fundamental compromisso com a democracia liberal ocidental. Já tudo terá sido dito sobre o saudoso Vasco Pulido Valente. De entre todos as valiosas homenagens que li, neste e em muitos outros jornais, gostaria de realçar os textos de Miguel Pinheiro e João Marques de Almeida aqui no Observador. Muito certeiramente, ambos recordaram e sublinharam o compromisso fundamental de Vasco com a opção liberal-democrática ocidental.
Como recordou Miguel Pinheiro, Vasco Pulido Valente esteve com a oposição à ditadura antes do 25 de Abil; depois com Ramalho Eanes para pôr fim ao PREC; depois com a Aliança Democrática de Sá Carneiro para consolidar uma direita democrática e liberal; depois com o MASP de Mário Soares, em 1986, para provar que era possível uma esquerda democrática, liberal, ocidental, não terceiro-mundista e anti-comunista. Além de tudo isto, ou na base de tudo isto, Vasco Pulido Valente foi sempre uma voz independente de todas as tutelas e de todas as clientelas — um homem livre, com um fundamental compromisso com a democracia liberal ocidental.
Não tenho realmente muito a acrescentar aos textos de Miguel Pinheiro e João Marques de Almeida, bem como aos muitos tocantes depoimentos que têm sido publicados — numa feliz manifestação da cultura demo-liberal que afinal ainda existe entre nós.
Apenas posso dizer que fui aluno de VPV no ISE (antigo ISCEF, agora ISEG) nos anos idos de 1972/73. Fui depois seu colega (junior) no Instituto de Ciências Sociais, fundado pelo saudoso Adérito Sedas Nunes. Estivemos juntos no MASP, na candidatura presidencial de Mário Soares, em 1986. Tivemos depois algumas animadas polémicas jornalísticas acerca de Cavaco Silva (que ele atacou e eu defendi) e da reunificação da Alemanha após a queda do Muro de Berlim (de que ele foi céptico e que eu defendi). Convergimos sempre, no entanto, num desportivo cepticismo acerca dos grandes planos federalistas supra-nacionais para a União Europeia.
Este pequeno detalhe leva-me a mencionar um aspecto do contributo de Vasco Pulido Valente que raramente tem sido mencionado: a sua profunda adesão à tradição liberal, descentralizada, aristocrática e moderada dos povos de língua inglesa, profundamente diferente da tradição despótica, centralista, igualitária e alegadamente democrática, da revolução francesa de 1789. Acredito que foi essa tradição liberal de língua inglesa que esteve subjacente à sua crítica demolidora da experiência jacobina da nossa I República (1910-1926). Vasco foi, é bom recordar, um dos primeiros cronistas a recomendar entre nós a leitura do Telegraph de Londres (por muitos designado “Torygraph”) e da Spectator. Também por isto lhe estou grato.
Apesar do seu proverbial mau feitio (para dizer o mínimo), recordo com saudade um jantar em Oxford, algures na década de 1990, em que celebrámos animadamente a comum admiração pela tradição britânica da liberdade sob a lei — “the right to be left alone”, “live and let live” e “mind your own business”, foram as nossas referências preferidas. Receio ter de admitir, todavia, que Vasco foi capaz de nesse jantar beber mais whisky e fumar mais cigarros do que eu… (com a devida vénia à ortodoxia politicamente correcta que hoje pretende instaurar uma nova ditadura jacobina de costumes no Ocidente).
II -Vasco Pulido Valente: a lucidez fumando o tédio /premium
Durante anos, VPV representou para nós a crónica curta certeira, infalível. A frase breve, o adjectivo implacável, a passada de tal modo certa que nunca ficava uma palavra a mais nem outra por dizer.
ALEXANDRE BORGES     OBSERVADOR, 22 fev 2020
No fundo, as biografias que escrevemos de figuras públicas que nunca chegámos a realmente a conhecer são muito mais biografias de nós mesmos. De quem éramos antes de descobrir o biografado e de quem somos depois. Do que nos deu, de como nos transformou, de como, eventualmente, o abandonámos. Porque, se a nossa percepção sobre Vasco Pulido Valente mudou ao longo dos anos, não foi certamente porque VPV mudou – VPV não era dado a esse tipo de frescura. Nós é que mudámos. Para um jovem aspirante a escritor e cronista, VPV teve, durante anos, o mais elevado dos estatutos possíveis na imprensa: o de razão de se comprar o jornal.
Primeiro na edição de sábado do DN, diluído entre outras boas razões: o DNA de Luís Osório e Pedro Rolo Duarte, o DN+ de Nuno Galopim, a crónica de abertura de João Lopes desmontando as imagens mais emblemáticas da semana ou as reflexões de Adriano Moreira sobre a política internacional. Depois, já num Público que ficava cada vez mais magro, resistindo como esteio e motivo daquele euro e tal entregue no quiosque todas as manhãs. O pretexto para, já que estávamos ali e ele só vinha na última página, desfolhar todo o jornal, parando aqui e acolá, como em suaves preliminares.
Durante anos, VPV representou para nós a crónica curta sempre certeira, infalível. A frase breve, o adjetivo implacável, a passada de tal modo certa que, no fim, nunca ficava uma palavra a mais nem outra por dizer.
Mais profundamente do que isso, VPV foi ainda, na transição do século, a lucidez que nunca se deixou enganar pelo país cor-de-rosa do guterrismo, pelo barrosismo inflado e vazio e muito menos pela suposta sofisticação socratista, que, durante tempo, enganou tanta boa gente nas páginas dos jornais e na televisão (mesmo que hoje tudo façam por ninguém se lembrar muito disso).
VPV falou muitas vezes por nós e sempre melhor do que nós. Foi a definição daquele que não vai na cantiga. Foi o nosso desmontador de farsas pessoal e profissional – a munição que levámos, quantas vezes, para as tertúlias e debates: “viste a crónica do VPV”? “É como diz o VPV”. “Vai ler o VPV e depois conversamos.”
De certo modo, VPV foi o matulão da turma – e certamente nem ele alguma vez se propôs a semelhante missão. Escudou, durante anos, as costas daqueles indivíduos magrinhos, isolados no pátio, que, como ele, não iam na cantiga. Contra o coro dos acólitos que, há anos, deixam a caravana passar. Mas, depois, VPV tornou-se outra coisa – aos nossos olhos, isto é. Talvez tenham sido demasiados anos de derrotismo e pessimismo. Começou a parecer só o aborrecido, o entediado, o desdenhoso, o tipo incapaz de uma pulsão, de se comprometer com uma convicção, o velho do Restelo de todos os velhos do Restelo, bem sentado, bem alimentado, bem protegido toda a vida, a olhar cá do alto para o povinho, a gentinha, que, no fundo, talvez desprezasse. A quem, por vezes, parecia não reconhecer um único talento, um pouco de inteligência, uma nesga de coragem ou atitude. Só um olhar bovino, com que caminhava rumo à inevitável catástrofe (o desaparecimento, a fome eterna, a anexação pela Europa – por aí).
E então, a extrema lucidez de VPV começou a parecer apenas o tédio indiscriminado que lançava sobre tudo, anulando todas as diferenças, tratando a todos por igual, um país irremediavelmente perdido desde antes de Eça, de onde só se safava Soares, o seu amigo dos salões.
Deixámos de o ler. De pagar o euro e tal. Os jornais continuaram a emagrecer e a fechar. Vieram os jornais digitais. VPV veio para o Observador. Nós viemos para o Observador. Não o voltámos a ler. O mais certo é ele nunca nos ter lido. O final feliz possível.
Mas há uma crónica de que nunca nos esqueceremos. A crónica de VPV sobre o tabaco, o papel dos cigarros na vida dele, no dia em que veio a lei da proibição do fumo em espaços públicos fechados. Dessa vez, não era o tédio, nem o desprezo, nem a descrença, nem o fatalismo a falar. Era uma crónica tão genial e certeira como sempre, mas iluminada desta vez por qualquer coisa que raiava a alegria. Era uma declaração de amor aos cigarros, a sua “pontuação dos dias” (citamos de memória).
Nesse dia, pensámos quão melhor escritor e cronista não teria sido VPV se acaso gostasse um pouco mais disto tudo.
Uns anos depois, deixámos de fumar.
Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).
COMENTÁRIOS:
Caro Alexandre Borges: felicito-o pelo seu artigo sobre VPV, que de entre muitos, de grande qualidade, achei o que mais fidedignamente o retratava: o artigo sobre o tabaco, que eu frequentemente refiro, foi a cereja em cima do bolo. Muitos parabéns e muito obrigado. VPV merecia-o.  CUMPRIMENTOS VASCO SILVEIRA
victor guerra: Não compro,- Um diletante que escrevia bem, um pouco à moda do Sousa Tavares, só que este não tira fotografias com os pés descalços.

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