E o retrato assim se vai completando, de
um espírito original que se manterá nos livros que publicou. Ainda bem que
existiu. E que teve amigos – e inimigos - que ajudam a percebê-lo.
I.Vasco Pulido Valente e a opção liberal-democrática /premium
Saliento a
sua profunda adesão à tradição liberal, aristocrática e moderada dos povos de
língua inglesa, diferente da tradição despótica, igualitária e alegadamente
democrática da revolução francesa.
JOÃO CARLOS ESPADA OBSERVADOR, 24 fev 2020
Vasco Pulido Valente foi
sempre uma voz independente de todas as tutelas e de todas as clientelas — um
homem livre, com um fundamental compromisso com a democracia liberal ocidental.
Já tudo terá sido dito sobre o saudoso Vasco Pulido Valente. De entre todos as
valiosas homenagens que li, neste e em muitos outros jornais, gostaria de
realçar os textos de Miguel
Pinheiro e João Marques
de Almeida aqui no Observador. Muito certeiramente,
ambos recordaram e sublinharam o compromisso fundamental de Vasco com a opção
liberal-democrática ocidental.
Como
recordou Miguel Pinheiro, Vasco Pulido Valente esteve com a oposição à ditadura
antes do 25 de Abil; depois com Ramalho Eanes para pôr fim ao PREC; depois com
a Aliança Democrática de Sá Carneiro para consolidar uma direita democrática e
liberal; depois com o MASP de Mário Soares, em 1986, para provar que era
possível uma esquerda democrática, liberal, ocidental, não terceiro-mundista e
anti-comunista. Além de tudo
isto, ou na base de tudo isto, Vasco Pulido Valente foi sempre uma voz
independente de todas as tutelas e de todas as clientelas — um homem livre,
com um fundamental compromisso com a democracia liberal ocidental.
Não
tenho realmente muito a acrescentar aos textos de Miguel Pinheiro e João
Marques de Almeida, bem como aos muitos tocantes depoimentos que têm sido
publicados — numa feliz manifestação da cultura demo-liberal que afinal
ainda existe entre nós.
Apenas
posso dizer que fui aluno de VPV no ISE (antigo ISCEF, agora ISEG) nos anos
idos de 1972/73. Fui depois seu colega (junior) no Instituto de Ciências
Sociais, fundado pelo saudoso Adérito Sedas Nunes. Estivemos juntos no MASP, na
candidatura presidencial de Mário Soares, em 1986. Tivemos depois algumas
animadas polémicas jornalísticas acerca de Cavaco Silva (que ele atacou e eu
defendi) e da reunificação da Alemanha após a queda do Muro de Berlim
(de que ele foi céptico e que eu defendi). Convergimos sempre, no
entanto, num desportivo cepticismo acerca dos grandes planos federalistas
supra-nacionais para a União Europeia.
Este
pequeno detalhe leva-me a mencionar um aspecto do contributo de Vasco Pulido
Valente que raramente tem sido mencionado: a sua profunda adesão à tradição
liberal, descentralizada, aristocrática e moderada dos povos de língua inglesa,
profundamente diferente da tradição despótica, centralista, igualitária e
alegadamente democrática, da revolução francesa de 1789. Acredito que foi essa tradição liberal de língua
inglesa que esteve subjacente à sua crítica demolidora da experiência jacobina
da nossa I República (1910-1926). Vasco foi, é bom recordar, um dos primeiros
cronistas a recomendar entre nós a leitura do Telegraph de Londres (por muitos
designado “Torygraph”) e da Spectator. Também por isto lhe estou grato.
Apesar
do seu proverbial mau feitio (para dizer o mínimo), recordo com saudade um
jantar em Oxford, algures na década de 1990, em que celebrámos animadamente a comum
admiração pela tradição britânica da liberdade sob a lei — “the right to be
left alone”, “live and let live” e “mind your own business”, foram as nossas
referências preferidas. Receio ter de admitir, todavia, que Vasco foi capaz
de nesse jantar beber mais whisky e fumar mais cigarros do que eu… (com a
devida vénia à ortodoxia politicamente correcta que hoje pretende instaurar uma
nova ditadura jacobina de costumes no Ocidente).
II -Vasco Pulido Valente: a lucidez fumando o tédio /premium
Durante anos, VPV representou para nós a crónica curta
certeira, infalível. A frase breve, o adjectivo implacável, a passada de tal
modo certa que nunca ficava uma palavra a mais nem outra por dizer.
ALEXANDRE BORGES OBSERVADOR,
22 fev 2020
No
fundo, as biografias que escrevemos de figuras públicas que nunca chegámos a
realmente a conhecer são muito mais biografias de nós mesmos. De quem
éramos antes de descobrir o biografado e de quem somos depois. Do que nos
deu, de como nos transformou, de como, eventualmente, o abandonámos.
Porque, se a nossa percepção sobre Vasco Pulido Valente mudou ao longo dos
anos, não foi certamente porque VPV mudou – VPV não era dado a esse tipo de
frescura. Nós é que mudámos. Para um jovem aspirante a escritor e cronista, VPV
teve, durante anos, o mais elevado dos estatutos possíveis na imprensa: o de
razão de se comprar o jornal.
Primeiro
na edição de sábado do DN, diluído entre outras boas razões: o DNA de Luís
Osório e Pedro Rolo Duarte, o DN+ de Nuno Galopim, a crónica de abertura de
João Lopes desmontando as imagens mais emblemáticas da semana ou as reflexões
de Adriano Moreira sobre a política internacional. Depois, já num Público que
ficava cada vez mais magro, resistindo como esteio e motivo daquele euro e tal
entregue no quiosque todas as manhãs. O pretexto para, já que estávamos ali e
ele só vinha na última página, desfolhar todo o jornal, parando aqui e acolá,
como em suaves preliminares.
Durante
anos, VPV representou para nós a crónica curta sempre certeira, infalível. A
frase breve, o adjetivo implacável, a passada de tal modo certa que, no fim,
nunca ficava uma palavra a mais nem outra por dizer.
Mais
profundamente do que isso, VPV foi ainda, na transição do século, a lucidez
que nunca se deixou enganar pelo país cor-de-rosa do guterrismo, pelo
barrosismo inflado e vazio e muito menos pela suposta sofisticação socratista,
que, durante tempo, enganou tanta boa gente nas páginas dos jornais e na
televisão (mesmo que hoje tudo façam por ninguém se lembrar muito disso).
VPV
falou muitas vezes por nós e sempre melhor do que nós. Foi a definição daquele
que não vai na cantiga. Foi o nosso desmontador de farsas pessoal e
profissional – a munição que levámos, quantas vezes, para as tertúlias e
debates: “viste a crónica do VPV”? “É como diz o VPV”. “Vai ler o VPV e depois
conversamos.”
De
certo modo, VPV foi o matulão da turma – e certamente nem ele alguma vez se
propôs a semelhante missão. Escudou,
durante anos, as costas daqueles indivíduos magrinhos, isolados no pátio, que,
como ele, não iam na cantiga. Contra o coro dos acólitos que, há anos, deixam a
caravana passar. Mas, depois, VPV tornou-se outra coisa – aos nossos olhos,
isto é. Talvez tenham sido demasiados anos de derrotismo e pessimismo. Começou
a parecer só o aborrecido, o entediado, o desdenhoso, o tipo incapaz de uma
pulsão, de se comprometer com uma convicção, o velho do Restelo de todos os
velhos do Restelo, bem sentado, bem alimentado, bem protegido toda a vida, a
olhar cá do alto para o povinho, a gentinha, que, no fundo, talvez desprezasse.
A quem, por vezes, parecia não reconhecer um único talento, um pouco de
inteligência, uma nesga de coragem ou atitude. Só um olhar bovino, com que
caminhava rumo à inevitável catástrofe (o desaparecimento, a fome eterna, a
anexação pela Europa – por aí).
E então, a extrema lucidez de VPV
começou a parecer apenas o tédio indiscriminado que lançava sobre tudo,
anulando todas as diferenças, tratando a todos por igual, um país
irremediavelmente perdido desde antes de Eça, de onde só se safava Soares, o
seu amigo dos salões.
Deixámos de o ler. De pagar o euro e tal. Os jornais continuaram a
emagrecer e a fechar. Vieram os jornais digitais. VPV veio para o Observador.
Nós viemos para o Observador. Não o voltámos a ler. O mais certo é ele nunca
nos ter lido. O final feliz possível.
Mas
há uma crónica de que nunca nos esqueceremos. A crónica de VPV sobre o tabaco,
o papel dos cigarros na vida dele, no dia em que veio a lei da proibição do
fumo em espaços públicos fechados. Dessa vez, não era o tédio, nem o desprezo,
nem a descrença, nem o fatalismo a falar. Era uma crónica tão genial e
certeira como sempre, mas iluminada desta vez por qualquer coisa que raiava a
alegria. Era uma declaração de amor aos cigarros, a sua “pontuação dos dias”
(citamos de memória).
Nesse
dia, pensámos quão melhor escritor e cronista não teria sido VPV se acaso
gostasse um pouco mais disto tudo.
Uns anos depois, deixámos de fumar.
Alexandre Borges é escritor e
guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão
Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).
COMENTÁRIOS:
Caro Alexandre Borges: felicito-o pelo seu artigo sobre VPV, que de entre
muitos, de grande qualidade, achei o que mais fidedignamente o retratava: o
artigo sobre o tabaco, que eu frequentemente refiro, foi a cereja em cima do
bolo. Muitos parabéns e muito obrigado. VPV merecia-o. CUMPRIMENTOS VASCO SILVEIRA
victor guerra: Não compro,- Um diletante que escrevia bem, um pouco à
moda do Sousa Tavares, só que este não tira fotografias com os pés descalços.
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