E o seu poema “NÓS”, poema
dividido em 3 partes, formado por 128 estrofes, o maior poema de “O LIVRO DE CESÁRIO VERDE”: (I PARTE-12
estrofes em versos alexandrinos, II PARTE– 111 estrofes em vários
andamentos, em decassílabos; III Parte – 5 estrofes conclusivas, retomando os
alexandrinos, no equilíbrio e regularidade do seu “desenho de compasso e esquadro”, como ele próprio se define no
poema “De Verão”). Consta a I parte de uma
introdução sobre a fuga para a aldeia – no caso da família Verde – motivada pela peste que grassou em Lisboa: Um longo
descritivo do desastre, integrado numa narração ao modo naturalista, a que não
faltam outros indícios de uma originalidade bem acima do seu tempo, quer no
requinte ou no familiar do vocabulário e da imagética, quer na peculiaridade de
um relato sem mistificação dos dados do “real”
e da “análise”. Mas nele não se
impõe, naturalmente, uma configuração de conceito filosófico desmascarador de um
sentido de revolta contra o absurdo que
preside ao destino humano, como em Camus, conquanto nas duas partes finais, a
par do descritivo eloquente da produção agrícola, no campo para onde partiram, um
sentimento de profunda revolta se manifeste contra a tragédia da morte por
doença de um irmão e uma irmã amados. Mas revivamos essa primeira parte do
poema, com o descritivo poderoso da peste citadina causadora de inúmeras
mortes, que pôs em debandada toda uma população “com um terror de lebre”, a par dos cortejos fúnebres desse horror
pestífero, desertificador, por contraste com a vitalidade da natureza fertilizada. Em Oran, a cidade
ficaria de quarentena, fechada à comunicação exterior, e destacando a
modificação dos comportamentos humanos, nos seus egoísmos ou altruísmos, nas
suas perversões, no desamparo de uma solidão sem sentido, como um espelho do
absurdo da vida humana de antemão condenada.
Leiamos o magnífico texto de Manuel Loff, com as suas referências a “A Peste” de Albert Camus e as extrapolações para o que se passa hoje na
hipótese de uma pandemia trazida pelo “corona
vírus” que os órgãos de comunicação, provavelmente amparados pelos órgãos
de produção e outros mais, vão destacando um tanto sadicamente.
Mas leiamos também Cesário Verde, não só para confronto temporal dum
modo geral demarcador, mas para diversão espiritual. Em tempo de peste
universal, que leva ao encerramento e desertificação de espaços, mas a iguais
provas de solidariedade humana, sobretudo nos encarregados de tratar os
doentes.
NÓS (I)
Foi
quando em dois
verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera
também andaram na cidade,
Que esta
população, com um terror de lebre,
Fugiu da
capital como da tempestade.
Ora, meu pai,
depois das nossas vidas salvas
(Até então nós
só tivéramos sarampo),
Tanto nos viu
crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou
por isso um grande amor ao campo!
Se acaso o
conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia
sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso
prédio, os outros inquilinos
Morreram
todos. Nós salvámo-nos na fuga.
Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.
Pela manhã, em
vez dos trens dos batizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na city, que desterros!
Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!
Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros arruamentos.
Porém, lá
fora, à solta, exageradamente,
Enquanto
acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!
Num ímpeto de
seiva os arvoredos fartos,
Numa opulenta
fúria as novidades todas,
Como uma
universal celebração de bodas,
Amaram-se! E
depois houve soberbos partos.
Por isso, o
chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir
falar em órfãos e em viúvas,
E em
permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis
voltar senão depois das grandes chuvas.
Ele, dum lado,
via os filhos achacados,
Um lívido
flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do
outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar
refúgio e um lucro na vivenda!
E o campo,
desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu
amor de todos estes anos!
Nós vamos para
lá; somos provincianos,
Desde o calor
de maio aos frios de novembro!
OPINIÃO
A peste
Relida
hoje, A peste é uma terrível lição do modelo de sociedade em que
vivemos, em que nos tornámos, submetidos a golfadas cada mais globalizadas de
medo, uma desinformação catastrofista que toma conta não só das redes sociais,
como aparece disfarçada de “informação responsável” nos media ditos
convencionais.
PÚBLICO,
27 de Fevereiro de 2020
Oran,
Argélia francesa, anos 40. Foi onde Albert Camus situou a sua narrativa sobre
os efeitos que uma epidemia tem no comportamento colectivo. [Agradeço à Maria
Abreu Pinto aconselhar-me a novela.] No dia em que o número de vítimas mortais
atingiu a trintena, as autoridades decidem “declarar o estado de peste” por
tempo indeterminado e fechar a cidade: ninguém pode entrar, ninguém pode sair.
“A partir desse momento”, conta o narrador, “pode-se dizer que a peste foi um
problema de todos nós. Até então, apesar da surpresa e inquietação (...), cada
um dos nossos concidadãos tinha mantido a sua atividade como podia. (...) Mas,
uma vez fechadas as portas, todos nos apercebemos termos sido apanhados no
mesmo saco”. “A primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi
o exílio” — o dos que, antes do bloqueio da cidade, haviam podido sair, e o
exílio interior de quem ficara, “reduzidos à nossa condição de prisioneiros, ao
nosso passado, e se mesmo alguns de nós se sentissem tentados a viver no
futuro, rapidamente desistiriam, tanto quanto lhes era possível, ao sentir as
feridas que a imaginação inflige àqueles que nela confiam”.
Relida
hoje, A peste é uma terrível lição do modelo de sociedade em que vivemos, em
que nos tornámos, submetidos a golfadas cada mais globalizadas de medo, uma
desinformação catastrofista que toma conta não só das redes sociais, como
aparece disfarçada de “informação responsável” nos media ditos convencionais.
“Os media há muito exploram [a nossa perceção das ameaças] para captar a nossa
atenção. (...) Em âmbitos como a política ou a saúde, a desinformação é
particularmente nefasta porque nos pode levar a tomar decisões contrárias aos
nossos próprios interesses sem ter conciência disso”, como lembra Ferran
Lalueza (Universidade Aberta da Catalunha, Público.es, 25.2.2020).
Tudo quanto sabemos do contágio
do coronavírus (processos, rapidez, efeitos) já o sabíamos há muito
do banal vírus da gripe; ambos têm um grau de letalidade semelhante, muito
inferior ao de epidemias anteriores (gripe A, das aves) com cujo alarme já
então injustificado parece que não aprendemos nada. Doença originada num Oriente recorrentemente visto
como fonte de ameaça (a China-das-doenças, como o Islão-do-terrorismo), ela
tem-nos contagiado a todos da mesma paranóia descrita pelos cronistas do século
XIV, ou do XVI, ou de tantos momentos da história anterior aos sistemas
públicos de saúde, cheias de uma crueldade que tende a propagar-se muito mais
célere que a solidariedade humana. Depois de vermos as aterradoras medidas
de contenção social que o governo chinês tomou em regiões inteiras, cidadãos
ucranianos repatriados da China
apedrejados em protesto contra
o seu regresso, chineses maltratados em cidades italianas, sujeitas, por sua vez, mal os primeiros casos se
detetaram, a esquemas (frequentemente improvisados pelas autoridades locais
contra o parecer das autoridades sanitárias) de controlo policial dos acessos,
supermercados esvaziados, cancelamento de manifestações (culturais,
desportivas, políticas) e transportes, escolas e fronteiras fechadas — as da
Rússia com a China, da Áustria com a Itália, dentro de horas provavelmente de todas
dentro da UE... Ontem, a
ponderada directora-geral de Saúde, Graça Freitas, conseguiu ainda duvidar da utilidade de “medidas
desta natureza [que] só devem ser tomadas se trouxerem benefício efetivo para a
saúde pública” (Antena 1,
26.2.2020); ao primeiro viajante que se confirme ter trazido de
fora a doença, pedirão a cabeça dela...
Até
parece que acabámos de descobrir os vírus e as suas formas habituais de
contágio! De que serve fechar fronteiras, exigir que se mostrem passaportes,
encostar um termómetro a uma testa de um qualquer de nós assintomático? De
alguma coisa serve. Serve para continuar a alimentar esta cultura do medo colectivo
que tem alastrado desde o 11 de Setembro. O medo, sabemo-lo há muito, “é um
indicador de poder (...) uma emoção essencial na arte de governar”. O que agora
se faz é “tentar despolitizá-lo”, como se ele não fosse uma forma de
“enquadramento que retira responsabilidades e que pode chegar a aniquilar”,
cumprindo o velho “lema de todos os dirigentes na história do mundo: fazer
temer, em vez de fazer crer — sem nunca fazer compreender” (P. Boucheron,
C. Robin, R. Payre, ce qui se joue à Oran se joue aussi au quotidien
dans nos propres existences, il s'agit d'un miroir de notre propre condition
humaine absurde.L'exercice de la peur, 2015).
Não
surpreende que estes sejam tempos de racismo e de neofascismo.
Historiador
COMENTÁRIOS:
José Cruz Magalhaes: Uma
oportuna evocação do livro de A. Camus,que permite ao autor do texto discorrer acerca
do aumento,mais ou menos generalizado do pânico,depois do medo e, em igual medida,sem
ponderação. As pestes perduram no imaginário das populações dos países
europeus,desde sempre e não há ninguém que não tenha lido ou ouvido relatos de
familiares das mortes provocadas pela pneumónica,há cem anos.O que é novo e
actual é que a mensagem, hoje,é largamente ultrapassada pela velocidade e
insistência informativa dos mensageiros, quer sejam profissionais, quer façam
parte deste mundo de aprendizes de mensageiros e feiticeiros em que todos nós
nos tornámos.
Carlos Brígida: Razão
teve a polícia chinesa em sancionar o médico que alertou para o novo vírus. Não
fosse ele e outros terem criado alarme e tudo estaria bem. Gripes há todos os
anos! A peste negra que matou cerca de um terço da população europeia no século
XIV, que tb criou alarme, e que tb teve origem no Oriente, também deve ter sido
resultado do nosso modelo de sociedade. Manuel Loff não refere conspirações,
mas o que escreve fica lá muito próximo . Tão assertivo que é na análise,só é
pena não o ser também na proposição do que fazer.
Caetano
Brandão: Muito bem, uma
pedrada no charco deste folclore mediático a que a população acrítica dança ao
seu sabor... Parabéns-
Lê-lo é sempre um convite à reflexão.
smiliuss: Serei
só eu que acho estranho os media fazerem notícia de casos suspeitos? a noticia
não deveria ser de casos positivos? Assim de repente parece-me que qualquer
pessoa que esteja com gripe pode ser um caso suspeito, ou não? Sinto verdadeira
vergonha alheia com estas parangonas nos noticiários...
Joao: Hoje
não concordo com o Manuel. Reconheço que escreve com boa intenção mas não
realisticamente. Nunca há "razão" para o pânico, nem
"motivo", o pânico chega a ser pior que a doença ou a guerra. O
pânico evita-se e combate-se, com seriedade e com acções que mostrem de forma
clara e inequívoca às pessoas que quem manda e tem poder está a pensar nas
pessoas e que está a fazer tudo para o bem comum. Não é com rezas ou
procissões, é com acções e com a verdade.
António Pais Vieira: Como habitualmente, Loff mostra-se mal
preparado e pouco lógico. Se tudo isto é uma cabala do ocidente contra um
"Oriente recorrentemente visto como fonte de ameaça" por que motivo é
a própria China a criar todas aquelas limitações? Nao há nada como ler os
livros com atenção, em vez de só as Cliff Notes. E curioso ter ostensivamente
copiado ideias do Orientalismo de Edward Said sem nunca se ter referido a ele.
viana:
Uma taxa de mortalidade de 2% é
semelhante à taxa de mortalidade normal (por todas as causas). Ou seja, se não
houvesse qualquer tentativa de combate à doença, a taxa de mortalidade toral
duplicaria aproximadamente. As medidas de limitação da propagação do vírus não
o vão fazer desaparecer, mas servem para: impedir o colapso total do sistema de
saúde; ganhar tempo para o desenvolvimento de medicamentos e/ou vacinas,
permitindo ainda que a chegada do tempo mais quente ao hemisfério norte limite
naturalmente a propagação e severidade dos sintomas. Caro Manuel Loff, De acordo com a
mensagem genérica que pretende passar. No entanto, não está correcto afirmar
que "(...)já o sabíamos há muito do banal vírus da gripe; ambos têm um
grau de letalidade semelhante, muito inferior ao de epidemias anteriores (...)".
O covid-19 aparenta ter uma mortalidade associada à volta de 2% (isto é 2 em
cada 100 pessoas infectadas morrem), o que é muito superior à taxa da gripe
normal, apenas 0.1%. É no entanto verdade que o covid-19 tem uma mortalidade
associada muito inferior ao vírus H5N1 (gripe das aves, 2007), da ordem de 50%,
e do vírus SARS (2003), cerca de 10%.
Sara Vieira: Há
vacina para a gripe. A taxa de mortalidade do CV 19 é desconhecida. Está
estimada em cerca de 2 pc agora (n° mortes hoje/ n° de casos hoje). Pode estar
subestimada pq a doença demora vários dias até à morte, logo o n° de casos
confirmados deveria ser o do dia correspondente à data de infecção. Pode estar
sobrestimado pq há casos com sintomas leves ou assintomáticos q não estão
contabilizados. Fechar as fronteiras não é solução mas pedir às pessoas para
cancelarem viagens não essenciais pode ser. Por último, dado que há contágio na
ausência de sintomas, testar pessoas que apareçam com sintomas graves de
infecção respiratória viral é boa ideia. Com os poucos testes que foram
realizados não tenho confiança na declaração que não há contágio em Portugal.
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