quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Tempo, também, de Cesário Verde



E o seu poema “NÓS”, poema dividido em 3 partes, formado por 128 estrofes, o maior poema de “O LIVRO DE CESÁRIO VERDE”: (I PARTE-12 estrofes em versos alexandrinos, II PARTE– 111 estrofes em vários andamentos, em decassílabos; III Parte – 5 estrofes conclusivas, retomando os alexandrinos, no equilíbrio e regularidade do seu “desenho de compasso e esquadro”, como ele próprio se define no poema “De Verão”). Consta a I parte de uma introdução sobre a fuga para a aldeia – no caso da família Verde – motivada pela peste que grassou em Lisboa: Um longo descritivo do desastre, integrado numa narração ao modo naturalista, a que não faltam outros indícios de uma originalidade bem acima do seu tempo, quer no requinte ou no familiar do vocabulário e da imagética, quer na peculiaridade de um relato sem mistificação dos dados do “real” e da “análise”. Mas nele não se impõe, naturalmente, uma configuração de conceito filosófico desmascarador de um sentido de revolta contra o absurdo que preside ao destino humano, como em Camus, conquanto nas duas partes finais, a par do descritivo eloquente da produção agrícola, no campo para onde partiram, um sentimento de profunda revolta se manifeste contra a tragédia da morte por doença de um irmão e uma irmã amados. Mas revivamos essa primeira parte do poema, com o descritivo poderoso da peste citadina causadora de inúmeras mortes, que pôs em debandada toda uma população “com um terror de lebre”, a par dos cortejos fúnebres desse horror pestífero, desertificador, por contraste com a vitalidade da natureza fertilizada. Em Oran, a cidade ficaria de quarentena, fechada à comunicação exterior, e destacando a modificação dos comportamentos humanos, nos seus egoísmos ou altruísmos, nas suas perversões, no desamparo de uma solidão sem sentido, como um espelho do absurdo da vida humana de antemão condenada.
Leiamos o magnífico texto de Manuel Loff, com as suas referências a “A Peste” de Albert Camus e as extrapolações para o que se passa hoje na hipótese de uma pandemia trazida pelo “corona vírus” que os órgãos de comunicação, provavelmente amparados pelos órgãos de produção e outros mais, vão destacando um tanto sadicamente.
Mas leiamos também Cesário Verde, não só para confronto temporal dum modo geral demarcador, mas para diversão espiritual. Em tempo de peste universal, que leva ao encerramento e desertificação de espaços, mas a iguais provas de solidariedade humana, sobretudo nos encarregados de tratar os doentes.
NÓS (I)
Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre
E o Cólera também andaram na cidade,
Que esta população, com um terror de lebre,
Fugiu da capital como da tempestade.

Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas
(Até então nós só tivéramos sarampo),
Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas
Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga:
O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos;
Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos
Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia,
Um pânico! Nem um navio entrava a barra,
A alfândega parou, nenhuma loja abria,
E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

Pela manhã, em vez dos trens dos batizados,
Rodavam sem cessar as seges dos enterros.
Que triste a sucessão dos armazéns fechados!
Como um domingo inglês na city, que desterros!

Sem canalização, em muitos burgos ermos
Secavam dejeções cobertas de mosqueiros.
E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,
Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

Uma iluminação a azeite de purgueira,
De noite amarelava os prédios macilentos.
Barricas de alcatrão ardiam; de maneira
Que tinham tons de inferno outros arruamentos.

Porém, lá fora, à solta, exageradamente,
Enquanto acontecia essa calamidade,
Toda a vegetação, pletórica, potente,
Ganhava imenso com a enorme mortandade!

Num ímpeto de seiva os arvoredos fartos,
Numa opulenta fúria as novidades todas,
Como uma universal celebração de bodas,
Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa,
Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas,
E em permanência olhando o horizonte em brasa,
Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.

Ele, dum lado, via os filhos achacados,
Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!
E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados,
E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,
É todo o meu amor de todos estes anos!
Nós vamos para lá; somos provincianos,
Desde o calor de maio aos frios de novembro!

OPINIÃO
A peste
Relida hoje, A peste é uma terrível lição do modelo de sociedade em que vivemos, em que nos tornámos, submetidos a golfadas cada mais globalizadas de medo, uma desinformação catastrofista que toma conta não só das redes sociais, como aparece disfarçada de “informação responsável” nos media ditos convencionais.
PÚBLICO, 27 de Fevereiro de 2020
Oran, Argélia francesa, anos 40. Foi onde Albert Camus situou a sua narrativa sobre os efeitos que uma epidemia tem no comportamento colectivo. [Agradeço à Maria Abreu Pinto aconselhar-me a novela.] No dia em que o número de vítimas mortais atingiu a trintena, as autoridades decidem “declarar o estado de peste” por tempo indeterminado e fechar a cidade: ninguém pode entrar, ninguém pode sair. “A partir desse momento”, conta o narrador, “pode-se dizer que a peste foi um problema de todos nós. Até então, apesar da surpresa e inquietação (...), cada um dos nossos concidadãos tinha mantido a sua atividade como podia. (...) Mas, uma vez fechadas as portas, todos nos apercebemos termos sido apanhados no mesmo saco”. “A primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio” — o dos que, antes do bloqueio da cidade, haviam podido sair, e o exílio interior de quem ficara, “reduzidos à nossa condição de prisioneiros, ao nosso passado, e se mesmo alguns de nós se sentissem tentados a viver no futuro, rapidamente desistiriam, tanto quanto lhes era possível, ao sentir as feridas que a imaginação inflige àqueles que nela confiam”.
Relida hoje, A peste é uma terrível lição do modelo de sociedade em que vivemos, em que nos tornámos, submetidos a golfadas cada mais globalizadas de medo, uma desinformação catastrofista que toma conta não só das redes sociais, como aparece disfarçada de “informação responsável” nos media ditos convencionais. “Os media há muito exploram [a nossa perceção das ameaças] para captar a nossa atenção. (...) Em âmbitos como a política ou a saúde, a desinformação é particularmente nefasta porque nos pode levar a tomar decisões contrárias aos nossos próprios interesses sem ter conciência disso”, como lembra Ferran Lalueza (Universidade Aberta da Catalunha, Público.es, 25.2.2020).
Tudo quanto sabemos do contágio do coronavírus (processos, rapidez, efeitos) já o sabíamos há muito do banal vírus da gripe; ambos têm um grau de letalidade semelhante, muito inferior ao de epidemias anteriores (gripe A, das aves) com cujo alarme já então injustificado parece que não aprendemos nada. Doença originada num Oriente recorrentemente visto como fonte de ameaça (a China-das-doenças, como o Islão-do-terrorismo), ela tem-nos contagiado a todos da mesma paranóia descrita pelos cronistas do século XIV, ou do XVI, ou de tantos momentos da história anterior aos sistemas públicos de saúde, cheias de uma crueldade que tende a propagar-se muito mais célere que a solidariedade humana. Depois de vermos as aterradoras medidas de contenção social que o governo chinês tomou em regiões inteiras, cidadãos ucranianos repatriados da China apedrejados em protesto contra o seu regresso, chineses maltratados em cidades italianas, sujeitas, por sua vez, mal os primeiros casos se detetaram, a esquemas (frequentemente improvisados pelas autoridades locais contra o parecer das autoridades sanitárias) de controlo policial dos acessos, supermercados esvaziados, cancelamento de manifestações (culturais, desportivas, políticas) e transportes, escolas e fronteiras fechadas — as da Rússia com a China, da Áustria com a Itália, dentro de horas provavelmente de todas dentro da UE... Ontem, a ponderada directora-geral de Saúde, Graça Freitas, conseguiu ainda duvidar da utilidade de “medidas desta natureza [que] só devem ser tomadas se trouxerem benefício efetivo para a saúde pública” (Antena 1, 26.2.2020); ao primeiro viajante que se confirme ter trazido de fora a doença, pedirão a cabeça dela...
Até parece que acabámos de descobrir os vírus e as suas formas habituais de contágio! De que serve fechar fronteiras, exigir que se mostrem passaportes, encostar um termómetro a uma testa de um qualquer de nós assintomático? De alguma coisa serve. Serve para continuar a alimentar esta cultura do medo colectivo que tem alastrado desde o 11 de Setembro. O medo, sabemo-lo há muito, “é um indicador de poder (...) uma emoção essencial na arte de governar”. O que agora se faz é “tentar despolitizá-lo”, como se ele não fosse uma forma de “enquadramento que retira responsabilidades e que pode chegar a aniquilar”, cumprindo o velho “lema de todos os dirigentes na história do mundo: fazer temer, em vez de fazer crer — sem nunca fazer compreender” (P. Boucheron, C. Robin, R. Payre, ce qui se joue à Oran se joue aussi au quotidien dans nos propres existences, il s'agit d'un miroir de notre propre condition humaine absurde.L'exercice de la peur, 2015).
Não surpreende que estes sejam tempos de racismo e de neofascismo.
Historiador
COMENTÁRIOS:
José Cruz Magalhaes: Uma oportuna evocação do livro de A. Camus,que permite ao autor do texto discorrer acerca do aumento,mais ou menos generalizado do pânico,depois do medo e, em igual medida,sem ponderação. As pestes perduram no imaginário das populações dos países europeus,desde sempre e não há ninguém que não tenha lido ou ouvido relatos de familiares das mortes provocadas pela pneumónica,há cem anos.O que é novo e actual é que a mensagem, hoje,é largamente ultrapassada pela velocidade e insistência informativa dos mensageiros, quer sejam profissionais, quer façam parte deste mundo de aprendizes de mensageiros e feiticeiros em que todos nós nos tornámos.
Carlos Brígida: Razão teve a polícia chinesa em sancionar o médico que alertou para o novo vírus. Não fosse ele e outros terem criado alarme e tudo estaria bem. Gripes há todos os anos! A peste negra que matou cerca de um terço da população europeia no século XIV, que tb criou alarme, e que tb teve origem no Oriente, também deve ter sido resultado do nosso modelo de sociedade. Manuel Loff não refere conspirações, mas o que escreve fica lá muito próximo . Tão assertivo que é na análise,só é pena não o ser também na proposição do que fazer.
Caetano Brandão: Muito bem, uma pedrada no charco deste folclore mediático a que a população acrítica dança ao seu sabor... Parabéns- Lê-lo é sempre um convite à reflexão.
smiliuss: Serei só eu que acho estranho os media fazerem notícia de casos suspeitos? a noticia não deveria ser de casos positivos? Assim de repente parece-me que qualquer pessoa que esteja com gripe pode ser um caso suspeito, ou não? Sinto verdadeira vergonha alheia com estas parangonas nos noticiários...
Joao: Hoje não concordo com o Manuel. Reconheço que escreve com boa intenção mas não realisticamente. Nunca há "razão" para o pânico, nem "motivo", o pânico chega a ser pior que a doença ou a guerra. O pânico evita-se e combate-se, com seriedade e com acções que mostrem de forma clara e inequívoca às pessoas que quem manda e tem poder está a pensar nas pessoas e que está a fazer tudo para o bem comum. Não é com rezas ou procissões, é com acções e com a verdade.
António Pais Vieira: Como habitualmente, Loff mostra-se mal preparado e pouco lógico. Se tudo isto é uma cabala do ocidente contra um "Oriente recorrentemente visto como fonte de ameaça" por que motivo é a própria China a criar todas aquelas limitações? Nao há nada como ler os livros com atenção, em vez de só as Cliff Notes. E curioso ter ostensivamente copiado ideias do Orientalismo de Edward Said sem nunca se ter referido a ele.
viana: Uma taxa de mortalidade de 2% é semelhante à taxa de mortalidade normal (por todas as causas). Ou seja, se não houvesse qualquer tentativa de combate à doença, a taxa de mortalidade toral duplicaria aproximadamente. As medidas de limitação da propagação do vírus não o vão fazer desaparecer, mas servem para: impedir o colapso total do sistema de saúde; ganhar tempo para o desenvolvimento de medicamentos e/ou vacinas, permitindo ainda que a chegada do tempo mais quente ao hemisfério norte limite naturalmente a propagação e severidade dos sintomas. Caro Manuel Loff, De acordo com a mensagem genérica que pretende passar. No entanto, não está correcto afirmar que "(...)já o sabíamos há muito do banal vírus da gripe; ambos têm um grau de letalidade semelhante, muito inferior ao de epidemias anteriores (...)". O covid-19 aparenta ter uma mortalidade associada à volta de 2% (isto é 2 em cada 100 pessoas infectadas morrem), o que é muito superior à taxa da gripe normal, apenas 0.1%. É no entanto verdade que o covid-19 tem uma mortalidade associada muito inferior ao vírus H5N1 (gripe das aves, 2007), da ordem de 50%, e do vírus SARS (2003), cerca de 10%.
Sara Vieira: Há vacina para a gripe. A taxa de mortalidade do CV 19 é desconhecida. Está estimada em cerca de 2 pc agora (n° mortes hoje/ n° de casos hoje). Pode estar subestimada pq a doença demora vários dias até à morte, logo o n° de casos confirmados deveria ser o do dia correspondente à data de infecção. Pode estar sobrestimado pq há casos com sintomas leves ou assintomáticos q não estão contabilizados. Fechar as fronteiras não é solução mas pedir às pessoas para cancelarem viagens não essenciais pode ser. Por último, dado que há contágio na ausência de sintomas, testar pessoas que apareçam com sintomas graves de infecção respiratória viral é boa ideia. Com os poucos testes que foram realizados não tenho confiança na declaração que não há contágio em Portugal.


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