sábado, 22 de fevereiro de 2020

Desta vez foi de vez



Tal como Esteves Cardoso, julguei que a falha da crónica já há uns domingos, seria uma vez mais colmatada com uma nova presença, refrescante e ansiada. Não foi. Sinto a mesma pena que MEC e outros mais leitores do seu Diário, onde, por vezes, já só uma ou outra frase, uma ou outra palavra, lembravam a mordacidade antiga, com que zurzia sem quebras os desmandos “vistosos” ou trapaceiros de políticos e políticas, esventrados da sensatez que se lhes pedia.
Não haverá outro como ele, certeiro, fugaz, brilhante, de uma contundência parcimoniosa, mas de clareza definitiva. Pesem embora as discrepâncias com algumas suas posições ideológicas.
Sinto, sim, a mesma pena que Miguel Esteves Cardoso expõe no seu belo retrato do historiador e crítico, uma voz que se apagou, fazendo falta.

CRÓNICA: Semana em que o Vasco Pulido Valente não escreve não é semana para mim
Adeus, Vasco. Desculpa lá o mau jeito. É triste e estranho escrever assim sobre ti.
MIGUEL ESTEVES CARDOSO
PÚBLICO, 21 de Fevereiro de 2020
Esta semana vai ser a pior de todas porque Vasco Pulido Valente nunca mais vai escrever. Hão-de ser assim todas as semanas que aí vêm. É inaceitável. É impossível de engolir. É que, até aqui, sempre que ele falhava, voltava.
A primeira vez que ouvi dizer que ele estava acabado foi nos anos 70, já estava eu viciado em lê-lo. Já na altura não acreditei que fosse possível.
Tudo era possível para o Vasco excepto acabar. Conhecê-lo foi uma das maiores sortes da minha vida. Toda a gente pensava que o conhecia, dizendo coisas taxativas acerca dele: era um dos sinais mais engraçados do génio dele.
O jogo chamava-se “vamos catalogar o Vasco” e o Vasco, sendo tão perverso como polivalente, também gostava de brincar. Sempre que caíamos na asneira de tentar defini-lo — és um académico, és um escritor, és um romântico, és um moralista, és um crítico, és um brincalhão — ele adorava contrapôr: “Aí é que tu te enganas...” E não é que nos enganávamos mesmo?
Toda a gente sabe — embora alguns finjam que já souberam e outros que ainda não sabem — que Vasco Pulido Valente foi um grande estilista da prosa portuguesa, o mais depurado e delicioso do século XX.
A prosa dele, limpa e aguda, directa e fulminante era, acima de tudo, clara e moderna. Bastava lê-la para deixar de escrever no estilo abstruso, cobarde e gongórico que era em Portugal e em português o dominante.
Tinha um sentido do ridículo que usava de forma hilariante, passando do sarcasmo à ironia como quem muda de um pé para o outro, balançando-se para fazer troça do que o deprimia.
Era um ensaísta de primeira, um historiador excitante, um analista político apaixonado, truculento e escandalosamente sensato, capaz de semear a concórdia tão subversivamente como a discórdia.
Tudo isto pode ser lido e revivido nos muitos livros que deixou, qual deles tão bom como os outros.
É horrível que seja tão pouco. Já era tão pouco o que escrevia semanalmente. Quem será capaz de nos desmascarar daqui para a frente? Ninguém. Muitos sabem zurzir mas só o Vasco era verdadeiramente divertido, por saber que é um pingo de loucura que dá leveza a um arrazoado e que é um pingo de razão que dá graça a uma diatribe.
O que faz falta agora é chorar a pessoa que perdemos. Por muito bem que escrevesse, por muito definitivo que parecesse ser, não bastava lê-lo.
A verdade é que o Vasco era uma pessoa maravilhosa, com uma graça ainda maior do que deixava no papel por ser tão rápido, tão imprevisível, tão boa companhia, tão generoso como gozão. O Vasco conseguiu sempre ser infantil. Gostava tanto de se rir que muitas vezes tinha de ser ele a fazer a festa toda. Não tinha circunspecção. Era espectacular - no verdadeiro sentido da palavra e no falso.
Era um menino mimado, um insolente, um entusiasta, um trabalhador, um bom amigo, um inocente, um jogador, um bon vivant e um inspirador, um cúmplice ideal e um espírito independente.
Por ser muito inteligente custava-lhe a estupidez alheia. Mas não era assim tão simples. O lugar-comum do "didn't suffer fools gladly" não se aplicava ao Vasco porque ele não tinha nada de contentinho. A estupidez e, sobretudo, a ignorância dos outros chocavam-no e atormentavam-no. Ele surpreendia-se e magoava-se com isso. Muitas foram as vezes em que o vi ser paciente e afável com pessoas das quais toda a gente tinha desistido.
Trabalhei com ele e sei do que falo. O Vasco dispunha-se a encontrar trabalho para toda a gente, achando que era tudo uma questão de adequação de talentos e tarefas. 
A verdade é que o Vasco era boa pessoa. Agora que está morto posso dizê-lo sem medo de represálias. E a bondade dele tinha um valor especial porque ele, pela inteligência dele, estaria mais bem entregue a si próprio e aos amigos e aos livros e às revistas que adorava.
O Vasco nunca se exilou, nunca deixou de escrever. Nunca cedeu à preguiça ou à desistência.
Foi um herói da escrita e da vida portuguesa. E a grandeza dele há-de sentir mais quanto maior for a falta que nos fará.
Adeus, Vasco. Desculpa lá o mau jeito. É triste e estranho escrever assim sobre ti. Mas ainda bem que te agradeci enquanto ainda eras vivo. Colunista


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