Tal como Esteves Cardoso, julguei que a falha da crónica já há uns domingos,
seria uma vez mais colmatada com uma nova presença, refrescante e ansiada. Não
foi. Sinto a mesma pena que MEC e outros mais leitores do seu Diário, onde, por vezes, já só uma ou outra
frase, uma ou outra palavra, lembravam a mordacidade antiga, com que zurzia sem
quebras os desmandos “vistosos” ou trapaceiros de políticos e políticas,
esventrados da sensatez que se lhes pedia.
Não haverá outro como ele, certeiro,
fugaz, brilhante, de uma contundência parcimoniosa, mas de clareza definitiva.
Pesem embora as discrepâncias com algumas suas posições ideológicas.
Sinto, sim, a mesma pena que Miguel Esteves Cardoso expõe no seu belo retrato do historiador e crítico,
uma voz que se apagou, fazendo falta.
CRÓNICA:
Semana em que o Vasco Pulido Valente não escreve não é semana para mim
Adeus, Vasco. Desculpa lá o mau jeito. É
triste e estranho escrever assim sobre ti.
MIGUEL ESTEVES CARDOSO
PÚBLICO, 21 de Fevereiro de 2020
Esta semana vai ser a pior de todas
porque Vasco Pulido Valente nunca mais vai escrever. Hão-de ser assim todas as
semanas que aí vêm. É inaceitável. É impossível de engolir. É que, até aqui,
sempre que ele falhava, voltava.
A
primeira vez que ouvi dizer que ele estava acabado foi nos anos 70, já estava
eu viciado em lê-lo. Já na altura não acreditei que fosse possível.
Tudo
era possível para o Vasco excepto acabar. Conhecê-lo foi uma das maiores sortes
da minha vida. Toda a gente pensava que o conhecia, dizendo coisas taxativas
acerca dele: era um dos sinais mais engraçados do génio dele.
O
jogo chamava-se “vamos catalogar o Vasco” e o Vasco, sendo tão perverso como
polivalente, também gostava de brincar. Sempre que caíamos na asneira de tentar
defini-lo — és um académico, és um escritor, és um romântico, és
um moralista, és um crítico, és um brincalhão — ele adorava
contrapôr: “Aí é que tu te enganas...” E não é que nos enganávamos mesmo?
Toda a gente sabe — embora alguns finjam que já souberam e outros que
ainda não sabem — que Vasco Pulido Valente foi um grande estilista da prosa
portuguesa, o mais depurado e delicioso do século XX.
A
prosa dele, limpa e aguda, directa e fulminante era, acima de tudo, clara e
moderna. Bastava lê-la para deixar de escrever no estilo abstruso, cobarde e
gongórico que era em Portugal e em português o dominante.
Tinha um sentido do ridículo que
usava de forma hilariante, passando do sarcasmo à ironia como quem muda de um
pé para o outro, balançando-se para fazer troça do que o deprimia.
Era um ensaísta de primeira, um
historiador excitante, um analista político apaixonado, truculento e
escandalosamente sensato, capaz de semear a concórdia tão subversivamente como
a discórdia.
Tudo
isto pode ser lido e revivido nos muitos livros que deixou, qual deles tão bom
como os outros.
É
horrível que seja tão pouco. Já era tão pouco o que escrevia semanalmente. Quem
será capaz de nos desmascarar daqui para a frente? Ninguém. Muitos sabem zurzir mas só o Vasco era verdadeiramente divertido,
por saber que é um pingo de loucura que dá leveza a um arrazoado e que é um
pingo de razão que dá graça a uma diatribe.
O que faz falta agora é chorar a
pessoa que perdemos. Por muito bem que escrevesse, por muito definitivo que
parecesse ser, não bastava lê-lo.
A
verdade é que o Vasco era uma pessoa maravilhosa, com uma graça ainda maior do
que deixava no papel por ser tão rápido, tão imprevisível, tão boa companhia,
tão generoso como gozão. O Vasco conseguiu sempre ser
infantil. Gostava tanto de se rir que muitas vezes tinha de ser ele a fazer a
festa toda. Não tinha circunspecção. Era espectacular - no verdadeiro sentido
da palavra e no falso.
Era
um menino mimado, um insolente, um entusiasta, um trabalhador, um bom amigo, um
inocente, um jogador, um bon vivant e um inspirador, um cúmplice ideal e um
espírito independente.
Por
ser muito inteligente custava-lhe a estupidez alheia. Mas não era assim tão
simples. O lugar-comum do "didn't suffer fools gladly" não se
aplicava ao Vasco porque ele não tinha nada de contentinho. A estupidez e,
sobretudo, a ignorância dos outros chocavam-no e atormentavam-no. Ele
surpreendia-se e magoava-se com isso. Muitas foram as vezes em que o vi ser
paciente e afável com pessoas das quais toda a gente tinha desistido.
Trabalhei
com ele e sei do que falo. O Vasco dispunha-se a encontrar trabalho para toda a
gente, achando que era tudo uma questão de adequação de talentos e
tarefas.
A verdade é que o Vasco era boa
pessoa. Agora que está morto posso dizê-lo sem medo de represálias. E a bondade
dele tinha um valor especial porque ele, pela inteligência dele, estaria mais
bem entregue a si próprio e aos amigos e aos livros e às revistas que adorava.
O
Vasco nunca se exilou, nunca deixou de escrever. Nunca cedeu à preguiça ou à
desistência.
Foi
um herói da escrita e da vida portuguesa. E a grandeza dele há-de sentir mais
quanto maior for a falta que nos fará.
Adeus, Vasco.
Desculpa lá o mau jeito. É triste e estranho escrever assim sobre ti. Mas ainda
bem que te agradeci enquanto ainda eras vivo. Colunista
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