Para inglês/americano ver.
Só uma mente obnubilada ou distorcida se
lembraria de aplicar a designação de racista a um livro de uma urdidura
impecável, que conjuga a temática clássica do incesto a uma perspectiva
analítica da sociedade portuguesa oitocentista, ao longo de quatro gerações – a
absolutista intransigente, representada por Caetano da Maia; a liberal de fundamentação filosófica, colhida nos
revolucionários enciclopedistas, que Afonso
da Maia pretendeu observar nos seus tempos juvenis (sem o concretizar, de
resto, na desistência criada não só pelo bem-estar económico, como pela
marginalidade e utopia de tal pretensão, num país sem condições culturais e
económicas possibilitando uma inversão capaz); a sentimental desistente, protagonizada
por Pedro da Maia; a “geração de setenta”, mais aberta e
dinâmica que Carlos da Maia pretende
assumir, sem resultado, todavia, não só pelos motivos que fizeram falhar o seu
avô, a riqueza pessoal proporcionando uma vivência de aparato social, como, no
caso presente, uma paixão condenada pela fatalidade, que fora temática entre os
clássicos da tragédia grega, (ou mesmo de vários seus mitos). E no meio de tudo
isso, uma estruturação sequente de uma obra tantas vezes enriquecida por
processos técnicos de modernidade, como analepses ou prolepses, e um mundo
dinâmico em torno das personagens principais, ali posto em função da visão
irónica com que o seu autor pretende demonstrar o pensamento negativo sobre a
sociedade portuguesa de contrastes, entre a tacanhez e subserviência, e a
arrogância, tantas vezes igualmente parca em valores, onde sobressaem, no
entanto, espíritos de extraordinário brilho irónico, como o de Ega, e outros de
sobriedade e elegância, que todos conhecemos. Atribuir crédito à chalaça de Ega citada, é não querer
intencionalmente soltar a gargalhada que o discurso escandaloso e provocatório,
de “boutades”, provoca em nós, deixando a personagem-tipo, Sousa Neto, do tal jantar
da Gouvarinho (Cap.
XII), perfeitamente siderada – porque o leva a
sério, como o fez Vanusa
Vera-Cruz Lima. E não resisto a transcrever o belo naco da prosa queirosiana -para melhor repescar
– em homenagem a este (já ido) domingo
de Páscoa de confinamento - todo o humor alegremente crítico, que as falas como
as atitudes das personagens, apontam, no traço genial de Eça de Queirós:
«Mas Ega,
que estivera um pouco silencioso, entalando de vez em quando o monóculo no olho
e sorrindo para a baronesa, pronunciou-se alegremente contra todas essas
explorações da África, e essas longas missões geográficas... Porque não se
deixaria o preto sossegado, na calma posse dos seus manipansos? Que mal fazia à
ordem das coisas que houvesse selvagens? Pelo contrario, davam ao Universo uma
deliciosa quantidade de pitoresco! Com a mania francesa e burguesa de reduzir
todas as regiões e todas as raças ao mesmo tipo de civilização, o mundo ia
tornar-se numa monotonia abominável. Dentro em breve um touriste faria enormes
sacrifícios, despesas sem fim, para ir a Tumbuctu - para quê? Para encontrar lá
pretos de chapéu alto, a ler o Jornal dos Debates!
O
conde sorria com superioridade. E a boa D. Maria, saindo do seu vago
abatimento, movia o leque, dizia a Carlos, deleitada:
-
Este Ega! Este Ega! Que graça! Que chic!
Então
Sousa Neto, pousando gravemente o talher, fez ao Ega esta pergunta grave:
V.
Exc.ª pois é em favor da escravatura?
Ega declarou
muito decididamente ao Sr. Sousa Neto que era pela escravatura. Os desconfortos
da vida, segundo ele, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser
seriamente obedecido, quem era seriamente temido... Por isso ninguém agora
lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua
escada bem lavada, desde que não tinha criados pretos em quem fosse licito dar
vergastadas... Só houvera duas civilizações em que o homem conseguira viver com
razoável comodidade: a civilização romana, e a civilização especial dos
plantadores da Nova Orleans. Porque? porque numa e noutra existira a
escravatura absoluta, a sério, com o direito de morte!...
Durante
um momento o Sr. Sousa Neto ficou como desorganizado. Depois passou o
guardanapo sobre os beiços, preparou-se, encarou o Ega:
-
Então V. Exc.ª nessa idade, com a sua inteligência, não acredita no Progresso?
-
Eu não senhor.
O
conde interveio, afável e risonho:
-
O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem razão, tem realmente
razão, porque os faz brilhantes...
Estava-se
servindo Jambon aux épinards. Durante um momento falou-se de paradoxos. Segundo
o conde, quem os fazia também brilhantes e difíceis de sustentar,
excessivamente difíceis, era o Barros, o ministro do reino...
-
Talento robusto, murmurou respeitosamente Sousa Neto.
-
Sim, pujante, disse o conde.
Mas
ele agora não falava tanto do talento do Barros como parlamentar, como homem de
estado. Falava do seu espírito de sociedade, do seu esprit...
-
Ainda este inverno nós lhe ouvimos um paradoxo brilhante! Até foi em casa da
Sr.ª D. Maria da Cunha... V. Exc.ª não se lembra, Sr. D. Maria? Esta minha
desgraçada memória! Ó Tereza, lembras-te daquele paradoxo do Barros? Ora sobre
que era, meu Deus?... Enfim, um paradoxo muito difícil de sustentar... Esta
minha memória!... Pois não te lembras, Tereza?
A
condessa não se lembrava. E enquanto o conde ficava remexendo ansiosamente, com
a mão na testa, as suas recordações, - a senhora de escarlate voltou a falar de
pretos, e de escudeiros pretos, e duma cozinheira preta que tivera uma tia
dela, a tia Vilar... Depois queixou-se amargamente dos criados modernos: desde
que lhe morrera a Joana, que estava em casa havia quinze anos, não sabia que
fazer, andava como tonta, tinha só desgostos. Em seis meses já vira quatro
caras novas. E umas desleixadas, umas pretensiosas, uma imoralidade!... Quase
lhe fugiu um suspiro do peito, e trincando desconsoladamente uma migalhinha de
pão:
-
Ó baronesa, ainda tens a Vicenta?
-
Pois então não havia de ter a Vicenta?... Sempre a Vicenta... A Sr.ª D.
Vicenta, se faz favor.
A
outra contemplou-a um instante, com inveja daquela felicidade.
-
E é a Vicenta que te penteia?
Sim,
era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coitada... Mas sempre
caturra. Agora andava com a mania de aprender francês. Já sabia verbos. Era de
morrer, a Vicenta a dizer j'aime, tu aimes...
-
E a senhora baronesa, acudiu o Ega, começou por lhe mandar ensinar os verbos
mais necessários.
Está
claro, dizia a baronesa, que aquele era o mais necessário. Mas na idade da
Vicenta já de pouco lhe poderia servir!
-
Ah! gritou de repente o conde, deixando quase cair o talher. Agora me lembro!
Tinha-se
lembrado enfim do soberbo paradoxo do Barros. Dizia o Barros que os cães,
quanto mais ensinados... Pois, não, não era isto!
-
Esta minha desgraçada memória!... E era sobre cães. Uma coisa brilhante,
filosófica até!
E,
por se falar de cães, a baronesa lembrou-se do Tomy, o galgo da condessa;
perguntou por Tomy. Já o não via há que tempos, esse bravo Tomy! A condessa nem
queria que se falasse no Tomy, coitado! Tinham-lhe nascido umas coisas nos
ouvidos, um horror... Mandara-o para o Instituto, lá morrera.
-
Está deliciosa esta galantine, disse D. Maria da Cunha, inclinando-se para
Carlos.
-
Deliciosa.
E
a baronesa, do lado, declarou também a galantine uma perfeição. Com um olhar ao
escudeiro, a condessa fez servir de novo a galantine: e apressou-se a responder
ao Sr. Sousa Neto, que, a propósito de cães, lhe estava falando da Sociedade
protectora dos animais. O Sr. Sousa Neto aprovava-a, considerava-a como um
progresso... E, segundo ele, não seria mesmo de mais que o governo lhe desse um
subsidio.
-
Que eu creio que ela vai prosperando... E merece-o, acredite a senhora condessa
que o merece... Estudei essa questão, e de todas as sociedades que ultimamente
se têm fundado entre nós, à imitação do que se faz lá fora, como a Sociedade de
Geografia e outras, a Protectora dos animais parece-me decerto uma das mais
úteis.
Voltou-se
para o lado, para o Ega:
-
V. Exc.ª pertence?
-
Á Sociedade protectora dos animais?... Não senhor, pertenço a outra, à de
Geografia. Sou dos protegidos.
A
baronesa teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se extremamente
sério: pertencia à Sociedade de Geografia, considerava-a um pilar do Estado,
acreditava na sua missão civilizadora, detestava aquelas irreverências.
Discutir o racismo n’Os Maias é ensino responsável ou
ameaça à autonomia da literatura?
Uma doutoranda luso-cabo-verdiana gerou intensa polémica ao apontar
passagens racistas na obra-prima de Eça e ao sugerir uma nota pedagógica nas
edições escolares do romance. O PÚBLICO foi ouvir argumentos.
PÚBLICO, 3 de Abril de 2021
Quando
Vanusa Vera-Cruz Lima, uma
estudante de doutoramento da universidade americana de Massachussetts
Dartmouth, onde também ensina português, deu uma palestra por Zoom, no passado
dia 18 de Fevereiro, que partia da pergunta “Serão Os Maias de Eça de
Queirós um romance racista?” tinha
decerto consciência de que encontrara um título provocador, mas
dificilmente adivinharia que, um mês e meio depois, e após dezenas de notícias e textos de opinião nos jornais e incontáveis publicações nas redes sociais, a
polémica que gerou não teria ainda esmorecido,
como a tardia publicação deste artigo de resto confirma.
Na verdade, a controvérsia até começou ainda antes de
Vanusa Lima, uma investigadora com dupla nacionalidade portuguesa e
cabo-verdiana, ter iniciado a sua apresentação, na qual analisaria “não apenas
a ofensiva linguagem racista usada neste romance clássico hiper-canónico,
mas também a hiperbólica [outsized]
adoração da brancura detectável na narrativa”, para citar o texto que anunciava
a palestra. Victor
Mendes, professor de Estudos e Teoria Luso-Afro-Brasileiros naquela universidade,
conta: “Antes da palestra, quando ainda não havia nenhum argumento sobre a mesa,
recebemos montes de mensagens, nas redes sociais e por mail, a dizer ‘que
estupidez!’ ou ‘que vá para a terra dela!’, o que é particularmente irónico
tratando-se de uma cidadã da República Portuguesa”.
O departamento de Estudos Portugueses da Universidade
de Massachussetts Dartmouth tem uma longa tradição de organizar
palestras públicas, e ainda em Outubro do ano passado uma professora que fez
ali o seu doutoramento, Diana Simões, apresentou uma conferência que também
incidia n’Os Maias,
discutindo o modo como o romance “desumanizava” as personagens femininas,
justapondo-as a animais, plantas ou objectos. “Uma análise racial d’Os Maias, seja qual for a
conclusão, é questionada, mas um tópico igualmente quente não gera qualquer
controvérsia na sociedade portuguesa”, observa Victor Mendes, sublinhando, no
entanto, que nada o move contra as polémicas, que até “têm produzido bons
resultados”.
Receando que a palestra de Vanusa Lima pudesse atrair alguns
espectadores digitais mais interessados em bloquear a iniciativa do que em
ouvir a oradora, a assistência só pôde intervir no final, no período de
perguntas e respostas, que se estendeu “muito civilizadamente” por uma hora
e meia, diz Victor Mendes, até que ele próprio achou que já era tempo de lhe
pôr fim. Mas a discussão prolongou-se na imprensa e nas redes sociais.
Victor Mendes, a quem Vanusa
Lima mostrou
interesse em ter como orientador de tese, acha que a doutoranda, até tendo em
conta a sua experiência pessoal – “é cabo-verdiana e portuguesa, e já morou em
Lisboa, na Holanda, no Brasil, e agora nos Estados Unidos” –, deveria
ponderar uma abordagem tripartida que incluísse, a par de Os Maias, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e um clássico da literatura
cabo-verdiana, Chiquinho,
de Baltasar Lopes, o que daria à tese “uma perspectiva comparatista, mostrando
que não se trata de atacar um alvo, mas de analisar uma estrutura mental e uma
linguagem”.
Houve mais de 30 artigos nos jornais e convites à
Vanusa para ir à televisão, à rádio e à cassete pirata, e ela percebeu que isto
se poderia tornar um emprego a tempo inteiro e não faria mais nada na vida
Victor Mendes, professor de Estudos e
Teoria Luso-Afro-Brasileiros
Uma pergunta
incómoda
O PÚBLICO tentou ouvir a investigadora, mas esta
confirmou que as suas obrigações académicas não lhe permitiam neste momento dar
mais entrevistas e prontificou-se a ser contactada noutra altura. No entanto, a partir dos
relatos da sua palestra que surgiram na imprensa e das próprias declarações que
foi fazendo aos jornais, talvez possa resumir-se a sua posição em dois
pontos, que correspondem a uma constatação e a uma
proposta. A primeira, fundamentada num conjunto de citações d’Os Maias, é a de que o romance
contém várias passagens racistas. Uma das mais eloquentes ocorre no capítulo XII e
tem como cenário o jantar dos Gouvarinhos, durante o qual um comensal pergunta
a João da Ega se este defende a escravatura. “Ega declarou muito decididamente
ao sr. Sousa Neto que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo
ele, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente
obedecido, quem era seriamente temido… Por isso ninguém agora lograva ter os
seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada,
desde que não tinha criados pretos em quem fosse lícito dar vergastadas…”,
escreve Eça [a transcrição segue a edição crítica coordenada por Carlos Reis].
Já a proposta que Vanusa Lima avança a partir do
reconhecimento da existência de linguagem racista n’Os Maias é a de que se justificaria que as edições do
romance incluíssem um “comentário pedagógico”. A investigadora defende que “as
passagens raciais não retiram nem adicionam valor” ao que a obra “representa na
literatura portuguesa”, mas acredita que devem ser encaradas como
“oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis”. Um argumento
que sugere que, ao propor a inclusão da referida nota, está a pensar apenas nas
edições adoptadas nas escolas, e designadamente no ensino secundário.
Além de Victor Mendes, o PÚBLICO ouviu a escritora Isabela Figueiredo, cujo Caderno de
Memórias Coloniais trouxe um olhar novo e impiedosamente honesto à
literatura portuguesa que tratou a guerra colonial, o fim do império e a
experiência dos retornados, mas que foi também durante muitos anos professora de português
no secundário e tem uma vasta experiência de ensino d’Os Maias; a
escritora, jornalista, crítica literária e professora de Estudos Portugueses em
Edimburgo, na Escócia, Raquel Ribeiro, autora de um dos vários artigos de opinião
suscitados por esta polémica; e ainda o ensaísta Abel Barros Baptista, catedrático do departamento
de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa e reconhecido
camilianista. Ainda
tentou ouvir um queirosiano, Carlos Reis, mas este declinou comentar o assunto.
A investigadora Vanusa Lima defende que “as passagens raciais não
retiram nem adicionam valor” ao que a obra “representa na literatura
portuguesa”, mas acredita que devem ser encaradas como “oportunidades de ensino
e instrução culturalmente responsáveis
Que Vanusa Lima deve ter toda a liberdade para ler Os Maias como
quiser, que tem razão em identificar como racistas vários excertos do romance,
e que nada obsta a que estes sirvam de pretexto para os professores discutirem
o tópico do racismo nas suas aulas são alguns dos consensos que emergem destas
conversas.
Mas saber se as passagens citadas pela investigadora transformam Os Maias um romance racista, ou
mesmo se é pertinente sublinhar a presença destas passagens, que se
encontrariam com a mesma facilidade em virtualmente qualquer romance português
do século XIX, já são perguntas de resposta bastante menos consensual. E quando
chegamos à recomendação de se incluir uma nota pedagógica em edições do
romance, as opiniões assumidas com maior veemência são as que militam contra
essa possibilidade.
“Não quero nenhum Governo a dizer-nos como
interpretar Os Maias”, diz
Victor Mendes, que não defende a imposição coerciva de nenhuma nota pedagógica.
Mas acena com as dezenas de edições escolares com resumos, fichas e comentários
do romance que andam no mercado – algumas delas com “a função razoavelmente
explícita” de evitar que os alunos tenham de ler livro – para lembrar que a
nota proposta por Vanusa Lima seria apenas mais uma, e tanto quanto sabe a
primeira respeitante à questão racial.
Baseado na sua longa experiência académica nos Estados
Unidos, assegura que “os estudantes de doutoramento, e especialmente a nova
geração, não têm uma grande vocação para fazer um trabalho de meses ou anos
sobre o uso da vírgula n’Os Maias:
têm motivação para outros tópicos, que são da escolha deles e delas e que dizem
respeito à sociedade contemporânea e aos seus próprios interesses”.
O mesmo argumento é reiterado por Raquel Ribeiro. “Porque
é que a questão racial não há-de ser mais um tema a debater com os alunos? E
porque não também questões de género? Será que Eduarda ou Raquel Cohen eram
mulheres emancipadas? Como é que Eça descreve as mulheres?”, interroga. “Aquilo
é um texto longo e que não é propriamente fácil de ler, e às vezes é preciso
fazer com que a sua leitura seja de alguma maneira entusiasmante para os alunos
do secundário”, defende, criticando o modo “chato, prescritivo, analítico” como
o romance continua a ser ensinado. “A questão racial está na ordem do dia e é interessante ver como a
descrição da realidade do século XIX nos pode fazer discutir coisas
contemporâneas”, argumenta. “É isso que a literatura faz, cria esse efeito de
espelho para nós mesmos, seja qual for o tempo em que vivemos”.
Raquel Ribeiro, Docente de Estudos Portugueses
O próprio modo como esta polémica se desenvolveu – “quase
ao nível do folhetim” –, confirma a sua convicção de que “a academia e a
cultura literária em Portugal são muito fechadas e elitistas” e presumem deter
autoridade sobre o cânone literário nacional. “Quem
é que esta estudante pensa que é para confrontar um texto canonizado, que
amamos e pusemos num pedestal, e fazer-lhe aquelas perguntas incómodas?”,
ironiza.
A pergunta que Vanusa Lima dirige ao romance “incomoda porque vem de
baixo”, sugere. “São aqueles que nós tornámos outros que de repente se
perguntam: mas como é que eu me vejo neste espelho, como é que me confronto com
isto?” Raquel Ribeiro, Docente de
Estudos Portugueses
Isabela Figueiredo ensinou Os Maias no secundário, mas não
pode dizer que se lembre de a questão racial ser suscitada nas aulas, e tem uma
explicação para isso. “Essas passagens aparecem sobretudo nas cenas em que os
homens estão em tertúlia a discutir política, que são as partes mais chatas,
que os miúdos detestam e passam à frente, e nós também”.
A autora não gosta de julgamentos sumários e diz não
ter apreciado “a recepção nas redes sociais” à notícia de que uma investigadora
numa universidade americana encontrara ideias racistas n’Os Maias. E surpreende-a o
escândalo: “Grande novidade: O Eça, o Camilo e toda a literatura europeia dos
séculos XIX e XX está cheia de ideias racistas”. Mas também acha que “é
necessário contextualizar, dizer que no final do século XIX, quando o Eça
escreveu o livro, a ideia de civilizar os negros era uma ideologia plausível,
corrente, que hoje muito validamente questionamos, como daqui a cem anos
seremos questionados pelo que pensamos hoje”. Daí que ache “possível
afirmar que Eça era racista”, mas pergunte: “Quem não o era em 1800 e tal? Que
pensamento existia então que se opusesse a isso, a essa cultura?”
Tendo lido dezenas de vezes o romance, não acha que seja “uma obra
racista”. Acredita, sim, que “Portugal é uma sociedade ainda muito racista” e
que “todos os contributos para ajudar a eliminar essa ideologia são úteis”. Mas
também percebe que haja “muita gente inquieta”, porque “o mundo está a mudar
muito rapidamente, há muita coisa a ferver ao mesmo tempo”.
O Eça, o Camilo e
toda a literatura europeia dos séculos XIX e XX está cheia de ideias racistas.
[...] Quem não o era em 1800 e tal? Que pensamento existia então que se
opusesse a isso, a essa cultura?
Isabela
Figueiredo, escritora e professora
Pensa que “não faz mal nenhum fazer-se análise crítica do passado”, e
estudar-se e discutir-se passagens como essas a que Vanusa Lima agora deu
visibilidade, desde que elas não sejam expurgadas do romance. E que não façam
perder de vista que “Eça é o maior escritor português do século XIX” e que “ler
toda a sua obra é o melhor curso de escrita criativa que alguém pode fazer”.
O modelo da
errata
Abel Barros Baptista até nem poria Eça no trono que Isabela Figueiredo lhe outorga – não custa adivinhar quem seria o seu candidato –, mas
concorda que “o racismo é uma chaga” e “um problema sério em Portugal, que tem
de ser discutido de forma ampla”. Não acredita é que isso se deva fazer
“encontrando passagens racistas em obras literárias do passado”.
Observando que “não nos faltam pretextos” para
discutir o racismo, “a começar pela própria História de Portugal”, não lhe
parece que se justifique usar o romance de Eça para esse efeito, e muito menos
acrescentar-lhe notas pedagógicas. “E porque não, então, sobre o modo como os
homens se referem às mulheres n’Os Maias?”,
pergunta. E lembrando que “os alunos dantes tinham de estudar a estrutura da
narrativa”, receia que agora “tenham de estudar o que está certo e errado, o
que é uma intromissão da moral, que nega a ideia de literatura”.
Daí que defenda que “não podemos estar a pôr notas a
dizer que este livro tem passagens horríveis, porque é uma forma de
autoritarismo e de paternalismo disfarçado que desrespeita o autor e o leitor”.
E nota que esta discussão em torno de obras do passado também se pode colocar
no presente: “Será que não é possível hoje alguém escrever um romance em que
apareça um escravocrata a elogiar as vantagens da escravatura, o que, de um
ponto de vista literário, até pode ser uma forma de denúncia muito eficaz?”
Argumentando que “não podemos combater o racismo
ameaçando a autonomia da arte”, o ensaísta defende que a literatura “é
transnacional e está acima das raças e dos sexos”, e lamenta que “ande perdida
essa ideia de que quando nos abeiramos de um livro ele é sempre estrangeiro
para nós”.
Será que não é possível hoje alguém escrever um romance em que
apareça um escravocrata a elogiar as vantagens da escravatura, o que, de um
ponto de vista literário, até pode ser uma forma de denúncia muito eficaz?
Abel Barros Baptista, catedrático do departamento de Estudos
Portugueses
Abel Barros Baptista preferia que esta polémica se tivesse centrado menos na defesa do romance
ou do seu autor e mais na discussão do que é ensinar literatura na escola. E
nesse plano afasta-se daquilo a que Vanusa Lima chama ensino “culturalmente
responsável”, argumentando que este se “baseia na figura da errata: aponta-se o
erro, explica-se porque é erro, corrige-se nas aulas e espera-se dos alunos que
aprendam a reconhecê-lo, naquele livro e nos outros, porque o erro é legião”.
Um modelo que se “apresenta como novo”, mas que,
defende, “é quase todo velho, pois é o mesmo programa de redução da literatura
a expressão da história, ou da identidade, ou do povo, ou da ideologia, ou do
idioma, ou dos celerados que a escreveram”.
Victor Mendes também é “muitíssimo favorável à
autonomia da literatura, como da arte em geral”, e acha que esta “não deve ser
um repositório de posições políticas com fins específicos”, mas nem por isso
considera ilegítima uma análise política do romance de Eça. “Os Maias pensam formas de
organizar a sociedade” e “fazem análise moral”, defende, lembrando, por
exemplo, a crítica de Eça à mundanidade dos prelados da Igreja Católica. “Não
podemos ser uns copinhos de leite e dizer que não podemos fazer análise moral
de uma obra de arte. Claro que fazemos: não há nenhuma interpretação que não
tenha essa componente”.
E rejeita também um dos argumentos mais esgrimidos
nesta polémica: a de que não se pode reflectir no autor o que dizem as suas
personagens, exercício que a intromissão da ironia tornaria ainda mais
inseguro. Victor Mendes até não tem dúvidas de que é esse o caso na passagem em
que João da Ega enaltece a escravatura. “É evidente que é
uma ironia, toda a gente percebe isso, que ele é alguém que diz boutades, coisas satânicas”. Mas ao contrário dos que, “ao
invocarem a ironia, pretendem fechar a interpretação da passagem”, pensa, pelo
contrário, que esta a “abre”, porque “é uma ironia com objecto, que conta uma
história específica – podia ser sobre alentejanos, mas não é; há aqui um factor
que não é aleatório e que se prende com outros aspectos da obra e da
personagem”.
A Abel Barros Baptista preocupa-o o que o ensino “culturalmente responsável”
poderá fazer “à experiência de ler, singular e própria de cada um”. E ironiza
(ou talvez não): “A experiência do estudante deixado a sós com o livro ou em
comum com outros e o professor em aula, sem metas, nem finalidades, nem
erratas, meu Deus, que perigo!”.
Abel Barros
Baptista, catedrático do departamento de Estudos Portugueses
TÓPICOS CULTURA-ÍPSILON LITERATURA LIVROS EÇA DE QUEIRÓS RACISMO OS MAIAS
1 COMENTÁRIO (entre 37)
RUI
ESTEVES EXPERIENTE: Ironia da boa, a sua. Mas se o nilton
conhece os Maias, saberá que as passagens que a doutoranda caboverdeana aponta
como racistas, são escritas em tom irónico. Eça escreveu sobre invertebrados (Eusebiosinho),
sobre estúpidos (Dâmaso Salcede), crápulas (Palma Cavalão), negreiros (o pai da
Maria Monforte), enfatuados e ocos (Steinbroken), poetas românticos (Alencar),
senhoras com a frescura à flor da pele (condessa Gouvarinho e Raquel Cohen),
financeiros agarrados ao Estado (Jacob Cohen), vaidosos e egocêntricos (Craft),
e suprema ironia, coloca como protagonistas dois diletantes que vivem sem nada
produzir, o Carlos e o pendura João da Ega. Salvam-se duas personagens: o avô
Afonso e o procurador Vilaça. Com quais é que o nilton acha que o Eça
simpatiza?
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