Mereceu 239 comentários. Alguns não o são, é certo.
Mas a prosa de Helena Matos , essa é
sempre. Superior.
Uma coisa que eu tinha muita curiosidade
de saber... /premium
É esta: quantos anos mais vamos assistir a Francisco
Louçã mentir, acusar e insinuar sem nada provar perante o sorrisinho cúmplice
dos jornalistas?
HELENA MATOS Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 04 abr 2021
SIC Notícias estava a acabar. Francisco Louçã
com o ar visivelmente satisfeito de quem acha que vai fazer uma revelação que
comprova simultaneamente a inteligência própria e a estupidez alheia declara: “Uma coisa que eu tinha muita curiosidade de saber que era se alguns sectores
de direita acreditam mesmo nas suas lendas mais sanguinolentas. E uma delas é
que os comunistas comem criancinhas.” O resto já se sabe: na SICN
passa o excerto de um vídeo em que na assembleia municipal de Lisboa, a
deputada do PPM, Aline Beuvink, referiu “o mito com fundo de verdade de que os
comunistas comiam crianças”.
Louçã, um dos políticos mais antigos de Portugal, entra-nos
há anos pela casa dentro com aquele ar insuportável de inquisidor, graças a uma
comunicação social que o ouviu muito e lhe perguntou pouco. Agora escutam-no
com o fervor devido a um activista de esquerda (o equivalente à direita
chama-se ultra e é visto como um potencial criminoso), o respeito
inerente ao estatuto de conselheiro de Estado e o temor de não ficarem bem
vistos por quem neste país define o certo e o errado.
Mas
voltemos às palavras de Louçã: “Uma coisa que eu tinha muita curiosidade de
saber que era se alguns sectores de direita acreditam mesmo nas suas lendas
mais sanguinolentas.” (Os risos enfáticos do jornalista ficam para depois).
Louçã,
o sábio, Louçã o culto olha para a direita como quem contempla um objecto de
estudo. Quiçá um erro na evolução. Louçã
até gostava de saber – porque Louçã quer sempre saber mais – se alguns
sectores de direita acreditam mesmo nas suas lendas mais sanguinolentas.
Que lendas são essas? No caso concreto as denúncias sobre os extremos a que
a fome imposta pelas políticas de Estaline levaram a população da Ucrânia. Mas
o caso é muito mais vasto pois tratar como mentiras as denúncias às condições
de vida nos países comunistas é uma táctica tão antiga quanto o comunismo.
Escreveu-se
e escreve-se muito a defender o comunismo ou as alternativas como agora lhe
chamam. Mas esquecemos que uma parte da defesa dos modelos comunistas,
revolucionários, alternativos… passou e passa por denegrir aqueles que
relataram a realidade do quotidiano nesses regimes. Aquilo que Louçã agora
designa como “lendas mais sanguinolentas” foi durante décadas apelidado como
mentiras propaladas pela CIA, textos a soldo do fascismo e epítetos quejandos.
A
censura, os boicotes à edição e os ataques ao carácter dos seus autores foram o
destino de muitos livros que denunciaram os crimes do comunismo: desde grandes
obras como O Arquipélago de Gulag,
ou O Livro Negro do Comunismo aos
simples relatos pessoais como por Francisco Ferreira em obras como “26
ANOS NA UNIÃO SOVIÉTICA: NOTAS DE EXÍLIO DO «CHICO DA C.U.F.»” encontramos
esta táctica. Recordo que o boicote à publicação de O Arquipélago de Gulag em
Portugal acabou a ser discutido no parlamento.
Pode
argumentar-se: tudo isto é passado. Os factos da polémica sim, a táctica não.
Basta atentar na forma como foram perseguidos aqueles que denunciaram o papel
da China na ocultação do COVID para o perceber. Todos os dias a pretexto do
negacionismo da pandemia, do discurso do ódio ou doutra subjectividade qualquer
apagam-se páginas nas redes sociais, excluem-se comentários, diaboliza-se quem
tem uma posição divergente.
A indignação
com a má-fé de Louçã sobre o Holodomor é agora possível mas apenas porque o
Holodomor se tornou História. Exprimir indignação com a má-fé de Louçã
na política é outro assunto. E bem mais complexo, porque implica ir contra a
linha politico-editorial vigente. Essa linha que traduz esquerda por solidariedade
e justiça social e direita por exploração e injustiça. Essa
linha que agora definiu que o racismo contra os brancos é bom. Essa linha que
estabeleceu que o muro na fronteira entre o México e os EUA é o muro construído
por Trump…
Por muito que tal nos custe admitir,
se Gareth Jones e Walter
Duranty voltassem aos dias de hoje, os seus destinos profissionais não seriam
muito diferentes. Recordo que Walter Duranty foi correspondente do New
York Times na URSS entre 1922 e 1936. As suas reportagens sobre o que
considerava serem os extraordinários sucessos económicos e agrícolas daquele
país valeram-lhe o prémio Pulitzer em 1932 e muitas palmadas nas costas por
parte das autoridades soviéticas e também das norte-americanas. Quanto a Gareth
Jones, que foi dos primeiros jornalistas a
relatar a fome na Ucrânia, continuaria a ter de provar que falava verdade. Que as lendas mais sanguinolentas de hoje se tornem
nos factos incontestados de amanhã quer também dizer que o nosso silêncio de
hoje nos faz cúmplices do que amanhã se vai chamar crime.
PS. A câmara municipal de Lisboa prevê
construir em Benfica no âmbito do Programa de Renda Acessível uma torre com 23
andares. Em cada um desses andares existirão 14 apartamentos. No total nesta
torre existirão 322 apartamentos, o que equivale a pelo menos mil residentes.
Qual a posição de cada um dos candidatos à autarquia de Lisboa sobre este
anunciado desastre?
FRANCISCO
LOUÇÃ PAÍS EXTREMA
ESQUERDA POLÍTICA
Colunista do
Observador
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