domingo, 25 de abril de 2021

Rapaziadas

 

Um dia que passa, de arruaça florida. Fiquem textos como este, de António Barreto, a dizer-nos coisas certeiras, em preciosa escrita do nosso contentamento.

OPINIÃO

O cartel de Abril

A ideia de que uns festejos nacionais e populares, oficiais ou espontâneos, solenes ou pindéricos, têm responsáveis, proprietários e supervisores só atrai mesmo pessoas estranhas ou com estranhas intenções. Para já, a polémica envenenou os dias.

ANTÓNIO BARRETO                                

PÚBLICO, 24 de Abril de 2021

Podíamos ter um Abril tranquilo, politicamente calmo, pelo menos, já que a doença nos retirou paz e sossego. Mas não temos. As vésperas de Abril criaram um novo problema. O debate sobre os festejos da liberdade tem tanto de desprezível quanto de perigoso. Mas também revelador. Mostra uma espécie de Cartel que decide quem comemora o 25 de Abril e festeja o Dia da Liberdade. Na verdade, que espera traçar as fronteiras da democracia.

A ideia de que uns festejos nacionais e populares, oficiais ou espontâneos, solenes ou pindéricos, têm responsáveis, proprietários e supervisores só atrai mesmo pessoas estranhas ou com estranhas intenções. Dentro de dias, a polémica vai ficar esquecida. Dentro de anos, nem as crianças vão acreditar que esta existiu. Mas, para já, envenenou os dias. É possível que os militares de Abril tenham sido, uma vez mais, utilizados. Também não faz mal, aprendem. Verdade é que os supervisores do Cartel não desistem.

Não sendo grave de consequências, estas vésperas sublinharam um vício da política portuguesa. Criou-se uma cultura, se assim se pode dizer, da democracia como património. Em poucas palavras: a democracia tem os seus autores que usufruem de direitos especiais; a democracia também tem os seus eleitos, uns mais genuínos do que outros, conforme a sua proximidade aos autores; os eleitos da democracia têm poderes e direitos, nomeadamente privilégios. São esses privilégios que definem o conteúdo patrimonial na representação popular ou eleitoral. Em poucas palavras: quem ganha eleições tem o direito e a legitimidade para nomear os seus, pagar aos seus, autorizar quem escolhe, licenciar quem prefere, empregar quem quer, designar todos os cargos e recompensar os seus. Eventualmente, enriquecer.

Cada partido gostaria evidentemente que fossem só dele os eleitos. Mas aceita fazer coligações para melhor distribuir. Com inflexões à esquerda (a dita “geringonça"), à direita (a AD e a troika) e ao centro (o Bloco Central), o conteúdo patrimonial da democracia, a distribuição de despojos e a repartição de conquistas foram sobretudo obra dos dois maiores partidos (PS e PSD), que ora se coligaram explicitamente, ora se aliaram tacitamente, ora se sucederam. O alargamento da função pública a limites impensáveis, a criação de instituições que nem a imaginação se atreveria, o aumento de privilégios aos funcionários em detrimento dos trabalhadores dos sectores privados e a nomeação de grandes, pequenos e médios dirigentes da Administração foram essencialmente seus feitos. Os grandes negócios, as grandes obras públicas e as parcerias público-privadas foram igualmente criações suas. Para já não falar de grandes licenciamentos e pequenas autorizações.

Foi tudo corrupção? Não, evidentemente. Há um universo de gestos, decisões e nomeações que, não sendo verdadeira corrupção, traduz bem este espírito da democracia patrimonial. Uma miríade de cunhas, influências e oportunidades alimenta e facilita as decisões. Parentes, amigos, companheiros e camaradas usam e beneficiam deste sistema tão arreigado em certos países e em Portugal também. Tudo em nome da República e da democracia.

Parece um manto diáfano, mas é um véu opaco, este a que se chama a “ética republicana”. É um mito e um embuste que permitem que o nepotismo e o favoritismo surjam como gestos normais da democracia e casos naturais da República. Resume-se em poucas palavras. Sem Deus, dinastia, sangue ou sabre, o cidadão é soberano. O soberano faz a República. A República tem os seus eleitos. Estes têm o dever de servir a República. E o direito de se servir dela. Quem são esses eleitos especiais? Formalmente, os que ganham eleições. Historicamente, entre nós, os dois grandes partidos, PS e PSD.

É com este princípio que tantas pessoas incham o peito de patriotismo democrático. O melhor valor da ética republicana é o que diz que o povo soberano escolhe o governo, não o dinheiro, não Deus, não o soldado e não o nome de família. O povo manda através do voto e escolhe os seus representantes. Os representantes exercem os cargos de presidente, deputado, governante e autarca. Para governar em República é necessário conquistar o poder. Quem vence as eleições governa. Quem governa tem o direito a utilizar os comandos de poder que conquistou. Quem vence as eleições nomeia livremente amigos e escolhe os que lutaram por conquistar o poder. Quem conquista o poder, quem vence as eleições, quem ganha nas urnas tem o direito de demitir os seus rivais, distribuir os cargos e encargos, dividir os despojos, adquirir os bens da República, gerir os bens colectivos, apropriar-se de alguns desses bens como recompensa. É essencial incentivar os que sabem guiar-se pela ética republicana. Isto não é de esquerda nem de direita.

Não é verdade que só a direita é corrupta. Não. A esquerda também. Nem é verdade que só a esquerda é corrupta. Não. A direita também. E a melhor corrupção é a que consegue uma espécie de apólice de seguro de vida que é a convergência entre esquerda e direita.

É falso que a corrupção seja só da autoria dos políticos. Nem que só beneficie os políticos. A corrupção pode ser da autoria de muita gente e também beneficiar muita gente. Em todas as camadas sociais, profissionais e económicas. Mas podemos ter a certeza de que a corrupção beneficia poucos e prejudica muitos.

É errado pensar que a corrupção começa e acaba sempre em dinheiro, nos bolsos e nas contas offshore. Muito do que é essencial na corrupção inclui círculos de poder, autorizações, nomeações, concursos, parcerias, vantagens, privilégios, posição social, poder de decisão… Importância!

O processo Marquês, mais os que o antecederam, teve um excepcional mérito já visível: revelou que a corrupção pode associar esquerda e direita, políticos e capitalistas, governantes e empresários, autarcas e gestores, economistas e advogados.

Há uma luta feroz em curso, que, a desenvolver-se, pode ser perigosa. É a que opõe dois campos antagónicos. De um lado, os que entendem que os políticos têm direitos especiais, que servem o povo e que devem como tal ser recompensados e respeitados. Do outro lado, os que pensam que os políticos são uns párias, vivem à custa dos outros e exercem o poder no seu exclusivo interesse. Estes dois campos estão bem presentes em Portugal, começam a dar sinais de vigor e envenenam o debate político. Evitá-los é urgente.

Sociólogo

OPINIÃO  DEMOCRACIA  25 DE ABRIL  CORRUPÇÃO  ÉTICA  ESTADO  REPÚBLICA

COMENTÁRIOS:

Raul Lourenço MODERADOR: Parabéns AB, gostei bastante do seu artigo, respeitando a neutralidade de que a comunicação social se afasta cada vez mais. Mostrar a realidade que a nossa sociedade nos apresenta e nos faz viver, a uns como filhos e a outros como enteados, sim é o dever de qualquer jornalista. Compete-nos a nós leitores analisar quais as correntes ideológicas que aproveitando-se do seu posto de comando eliminam seus adversários políticos, muitas vezes sem respeitar o respeito que deve existir dentro daquilo a que se chama democracia, o que quer dizer que esse termo “respeito” deve ser usado porque na sua falta, a curto ou a longo prazo a justiça nessa republica começa a ser corrompida, e quando ela atinge um nível já de decadência, como a que temos presenciado dentro da nossa democracia, é sinal de que a sua doença dá conta de um enorme avanço, possivelmente sem recuperação; será que estamos em tempo para festas, ou iremos aprofundar ainda mais, a propagação do viros?                 José Cruz Magalhaes  MODERADOR: Ao concluir a leitura do texto, faço um esforço para descobrir o cartel do título da crónica. Talvez sejam os políticos, que identifica como herdeiros da "ética republicana", assim mesmo , com aspas, com os mesmos tiques, desvios e desvarios, que continuaram o abandono de Deus, nobreza ,sangue ou sabre, como poderia escrever qualquer monárquico, deputado às cortes e retratado por Camilo, com asas, cornos e tudo, ou talvez, sejam os outros que caracteriza como os filhos indignados da imprecação , do confronto e da negação.Com tanto afã, de repudiar o que quer descrever a preto e branco, acaba por tropeçar no eterno cinzento da sua prolongada opinião.            AA...Para a mentira ser segura ... tem que ter qualquer coisa de verdade  INICIANTE: Ainda não percebeu que, o que descreve AB, é o registo da história de Portugal, em monarquia, em ditadura e em democracia, ao longo de 900 anos?! Os políticos chegam pobres ao poder e saem ricos. Municípios inteiros com pais, padrinhos, filhos e sobrinhos, muitos em tarefas inúteis e de faz de conta. É o país que somos. JLMB  EXPERIENTE: O 25 de abril era o dia de aniversário da minha mãe, por isso um dia especial. Pela liberdade que apregoam não nunca me convenceram, preciso de um país que funcione e não onde me enganem com histórias de heróis da treta que foram os capitães de Abril.              Rita Cunha Neves EXPERIENTE: Leio AB e vejo o negro desenho do costume... Começo então a pensar como era este país antes do 25 de Abril; no caminho que se fez desde então; nas potencialidades que aí temos para se poder continuar a sonhar. Por isso, haja alegria! Haja confiança!        AA...Para a mentira ser segura ... tem que ter qualquer coisa de verdade  INICIANTE: O seu optimismo é saudável...mas o Pai Natal não existe. ernestocarneiro.883138  INICIANTE: Aquilo que acabou com a carta da ONU que transformou as ex colónias nos países a que se hoje ser chama o "terceiro Mundo" não foi só o império português. Foi o império euromundista. Porque era Holanda, era a Bélgica, era a França, era a Inglaterra, era a Espanha, éramos nós. Não há nenhum que não tenha tido guerras terríveis. A França teve dias piores que nós. A Inglaterra, na Índia, foi desastre que foi...Na realidade, quando acabou o Império Euromundista e começou o império ideológico do bloco China/Rússia. as nossas colónias foram entregues de mão beijada a este bloco, são escravas dele, mas estes não são "colonialistas exploradores"... O resultado dos "movimentos de libertação" está bem patente na lista dos 20 países mais pobres do Mundo 15 dos quais são africano.           João Carlos Correia  INICIANTE: Verdade é que estamos em democracia e que os que fizeram o golpe militar deixaram o poder aos civis e até afastaram camaradas militares que se entusiasmaram com novos amanhãs que terminariam em ditadura. Vasco Lourenço tem mau feitio e expressa-se mal mas fez o 25 de abril e o 28 de setembro. Deixou as cadeiras com a ajuda de Eanes e Soares. O que aconteceu depois (corrupção, clientelas partidárias) é verdade mas também aconteceram Universidades SNS, Escolas e estradas, fim da Guerra Colonial e da Pide - uma polícia que torturava e vivia num sistema que tinha as suas corrupções escondidas pela autoridade. As FP foram uma tragédia e deviam ter sido condenadas. Devemos muita coisa a Soares. Aí enganou-se.          ernestocarneiro.883138  INICIANTE: Efectivamente, o manto diáfano da fantasia encobre a nudez forte da verdade. Antes de Cavaco Silva os presidentes Ramalho Eanes, Jorge Sampaio Mário Sares lembraram-se de condecorar assassinos e ladrões como Otelo Saraiva de Carvalho, mentor das FP 25 de Abril, Palma Inácio, Camilo Mortágua, Isabel do Carmo, Armando Vara, José Sócrates, Zeinal Bava, Helder Bataglia Mário Soares recusou condecorar Gaspar Castelo Branco director geral dos serviços prisionais assassinado pelas FP 25 de Abril considerando-a inoportuna Bem que Ascenso Simões do PS poderia aproveitar a data festiva de amanhã para concretizar o seu profundo desejo de destruir o Padrão dos Descobrimentos Será pura coincidência a semelhança entre o 25 de Abril e o "Triunfo dos Porcos" do George Orwell          Duarte Cabral EXPERIENTE: Retrato realista mas incompleto, faltou falar da responsabilidade dos média nesta realidade. Portugal faz-me lembrar o adolescente rebelde que saiu de casa do pai tirano. Com sede de viver; mas sem visão de futuro, sem ética nem valores, foi de desbunda em desbunda, de excesso em excesso, de "esquema" em "esquema". Hoje, doente, com o corpo já velho, continua, como cada ano, a comemorar no bar da esquina com garrafa de tintol na mesa, o dia que saiu de casa. Lança a um agente de autoridade que lhe veio dizer para sair (pois, o bar já deveria estar fechado): "ó Sr. guarda desapareça!". Punks Not Dead.        Filipe Nascimento.886215  INICIANTE : Ai tanto mofo. O cónego até salta do seu pedestal e deve de estar contentinho...os ratos e baratas aparecem sempre.           Duarte Cabral EXPERIENTE: Mofo é o cheiro deste regime, o regime da partidocracia. Cónego, ratos, baratas? Sou ateu convicto, vivo numa democracia semidirecta há várias décadas, onde qualquer cidadão pode recolher assinaturas para realizar um referendo, mesmo para mudar uma norma da constituição. Há mais mundo do que aquele que vc consegue imaginar...          amarofreire.freire.874732  INICIANTE: mais um excelente artigo!            graça dias  EXPERIENTE: Sem dúvida, excelente artigo com o registo do que é o Bom jornalismo (algo já muito raro).           amarofreire.freire.874732  INICIANTE: mais um sinal do que seria se a extrema esquerda se alguma vez atingisse o poder - ditadura como nunca tivemos!!

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