quinta-feira, 8 de abril de 2021

Pretexto

 

Que não deixa de parecer pedante, este repescar de um clássico a propósito de uma foto de um, afinal, criminoso, foto que se escondeu em edição francesa de estimação, para mostrar simultaneamente as fontes apreciáveis da intelectualidade de PP (mas “não havia necessidade”), e a exposição das figuras relevantes do seu antigo apreço, ali religiosamente guardadas para revelar os truques usados nos tempos de uma Pide perigosamente invasora das privacidades culturais, que não encontraria motivo para incluir Virgílio na sua mesa censória, deixando assim escapar o retrato de Lenine como comprovativo de efectivos amores, clandestinos para a época. Por outro lado, parece-me paradoxal o desprezo, hoje, por esse Lenine, gestor da liquidação dos Romanov, a merecer Inferno, segundo um, actualmente, bem comportado PP nas suas pretensões livrescas, mais moralistas, para não colidir com o status da aceitação geral conducente à sua glorificação particular. Não, não encontro humor no seu texto, como garantem alguns seus admiradores, mas simples exibicionismo. Por outro lado, acho muito louvável esta tentativa constante de PP, a revelar preocupação humanista, de “desencardir” o atraso cultural do seu país com a sua crítica construtiva.

 

OPINIÃO

Lenine dentro da Eneida Aqui está, meus amigos leitores, o que faz um livro tornado incomum mais de dois milénios depois.

JOSÉ PACHECO PEREIRA

PÚBLICO, 3 de Abril de 2021

Sim, podem desde já tirar a conclusão de que o meu interesse pelas questões correntes é escasso, e protestar aqui ao lado nos comentários. Sim, não estou particularmente furioso, nem com o Presidente da República nem com o primeiro-ministro. Sim, preocupo-me, como toda a gente, com a pandemia, mas nada tenho a acrescentar ao que se sabe, e muito menos ao que não se sabe. Sim, acho um abuso cívico que vão mais uns milhões para o Novo Banco. Sim, tenho uma opinião formada sobre Sócrates e espero que não tenha que ter uma sinistra opinião sobre a justiça em Portugal. E, por fim, não padeço daquilo que no mundo anglo-saxónico se chama writer’s block, ou seja, não conseguir escrever, só me falta paciência para encontrar alguma coisa interessante nesta narrativa cinzenta e redutora que a pandemia acentuou a uma vida pública já de si muito pouco brilhante. Admito que isto possa ser bom para a ficção, Coetzee ou Philip Roth escreviam bem neste deserto afectivo e intelectual. Também não é escapismo, porque não escapo a nada, só ando à volta, com a vantagem de viajar para esse país estrangeiro que é o passado.

Quando é assim, volto aos clássicos, o que nos dias de hoje parece uma snobeira, mas a culpa não é minha. Eles são bons de mais, perceberam quase tudo, e quanto àquilo que eles não perceberam, também nós estamos na mesma escuridão. E, na altura em que estava a ver sobre o que é que vou escrever no meio do elenco do aborrecimento, apareceu uma coisa curiosa nuns livros oferecidos. Nada me move mais do que a curiosidade e essa coisa, digamos assim, é uma antiga Eneida de Virgílio numa velha edição escolar francesa já em muito mau estado.

Em condições normais, como conheço a capa desta colecção dos clássicos, arrumaria o livro atrás de outras edições da Eneida, para não ocupar espaço na estante, e iria para o limbo da estante, ou seja atrás, nem sequer em segunda fila, mas ao alto. Ficaria esquecida, que o destino deste limbo é esse. Ficar no limbo até está bem para Virgílio, que é onde Dante o encontra às portas do Inferno, junto com outros virtuosos pagãos e crianças não baptizadas, cheio de grandes poetas e exemplo ímpar da crueldade religiosa do cristianismo, porque nenhum dos habitantes do limbo tem qualquer culpa de ter nascido antes de Cristo e não conhecer a “luz”. Bento XVI, que sabia muito, acabou com o limbo e o catecismo diz agora que “Deus pode dar a graça do baptismo sem que tenha havido o sacramento”. Estão a ver porque é que os clássicos são bons? Vejam lá onde já vamos.

Voltando à gasta e comum Eneida que me “curiosirou”, desculpem o bárbaro neologismo, é que lá estava, no meio das folhas, nem mais nem menos do que um retrato de Lenine. O que é que Lenine estava fazer junto com Eneias e seu pai? Estava escondido, porque não se expunha à luz, durante 48 portugueses anos, a face oriental de Lenine com um vago ar diabólico e um pequeno sorriso sardónico. Lenine esteve várias vezes escondido, não em bíblicas grutas, e uma das vezes numa cabana. Há uma célebre pintura soviética em que está a escrever, ao lado da cabana, sentado num tronco perto da aldeia de Razliv. Cunhal identificava-se muito com esta imagem.

Aqui, está escondido numas páginas do capítulo oitavo da Eneida, e resolvi ver se havia qualquer relação entre o que lá estava escrito e o revolucionário russo. Não havia, como é óbvio, foi lá metido à sorte, mas, como quem procura sempre alcança, lá estava uma imaginária relação. Virgílio conta aqui o episódio da queda do tirano Mezêncio, rei etrusco conhecido pela sua crueldade, que provocou a revolta na sua cidade e o obrigou a fugir. Na página leniniana conta-se, aliás, uma das suas torturas (“mortua quin etiam iungebat corpora vivis componens manibusque manus atque oribus …), que era atar vivos a mortos, mão com mão, boca com boca, e deixá-los morrer assim.

Quem seria aqui o tirano? O czar Nicolau e os seus cossacos? Ou Lenine, o bolchevique que abriu caminho para os terrores da guerra civil e de Staline? Venha o Diabo às páginas da Eneida e escolha, embora duvide que escolhesse o czar, que era bom dançarino mas mau autocrata. Para além disso, a Igreja Ortodoxa russa santificou-o no ano 2000 e não se leva um santo para o Inferno. Já Lenine, que, segundo Trotsky, mandara matar o czar e a família, esse tinha lugar garantido nas chamas eternas.

Aqui está, meus amigos leitores, o que faz um livro tornado incomum mais de dois milénios depois. Podem, se faz favor, voltar ao resto do PÚBLICO, que está mais conforme com os tempos. E desculpem os que escolhem na redacção as citações para destaque no corpo do jornal, que eu sei bem que é difícil.

Historiador

TÓPICOS

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COMENTÁRIOS

antifascista  INICIANTE: Este fulano escreve como pensa, mal, muito mal. E tem-se em grande conta. Só no Portugalório dos jornais e televisões podia vicejar. É preciso ser muito ignorante para falar do "capítulo oitavo da Eneida".            Gil Paulo  EXPERIENTE: Por 'deformação', gosto de mensagens encriptadas, escondidas: "Será chuva? Será gente? / Gente não é, certamente / e a chuva não bate assim". Parece-me Louçã, imaginativo.

Jose MODERADOR: Há séculos não há mais luz que a dos clássicos. Não que seja proibido ir à ignorância e fazer dela, ou minúscula parte dela, um átomo de luz. Não. Não é proibido. Acontece que estamos em pousio gastando toda a energia reflexiva na gestão das miseráveis rotinas que alimentam a última maravilha do mundo: este estilo de vidinha, videirinha. Faz falta o "golpe de asa" de que se lamentava Cesário Verde há uns anitos. O seu Lenine bem podia ser uma pagela pascal usada como marcador de leitura, sem heroicidade nenhuma, mas não era a mesma coisa. As vastas terras do Czar Nicolau passaram do feudalismo ao Capitalismo e isso envolveu muita gente. Lenine e Stalin são apenas figurantes do Povo em movimento levantando poeirada que envolve e esconde destroços como ocorre sempre nas erupções vivas.            Maria Teresa Ramalho  INICIANTE:  José, boa noite, não sei se o "golpe de asa" está no Cesário Verde, mas está, de certeza, no "Quase" de Mário de Sá-Carneiro.            Jose  MODERADOR: Tem toda a razão Cara Maria Teresa Ramalho. Obrigado pela correcção.            rogerio borges  INICIANTE: O JPP está em grande forma, é oxigénio neste ar bafiento, que ele perdure assim por muitos anos.               Ricardo Costa e Moura INICIANTE: Grande José Pacheco Pereira.            João Casquilho  INICIANTE: Crónica divertida, antes assim do que as crónicas de mau fígado do companheiro do lado JMT                José Luís EXPERIENTE: Está com graça caro José Pacheco Pereira.

 

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