Que não deixa de parecer pedante, este
repescar de um clássico a propósito de uma foto de um, afinal, criminoso, foto que
se escondeu em edição francesa de estimação, para mostrar simultaneamente as
fontes apreciáveis da intelectualidade de PP (mas “não havia
necessidade”), e a exposição das figuras relevantes do seu antigo apreço, ali
religiosamente guardadas para revelar os truques usados nos tempos de uma Pide perigosamente invasora das privacidades
culturais, que não encontraria motivo para incluir Virgílio na sua mesa censória, deixando assim escapar o
retrato de Lenine como
comprovativo de efectivos amores, clandestinos para a época. Por outro lado,
parece-me paradoxal o desprezo, hoje, por esse Lenine, gestor da liquidação dos Romanov, a merecer Inferno, segundo um, actualmente, bem
comportado PP nas suas
pretensões livrescas, mais moralistas, para não colidir com o status da aceitação
geral conducente à sua glorificação particular. Não, não encontro humor no seu
texto, como garantem alguns seus admiradores, mas simples exibicionismo. Por outro
lado, acho muito louvável esta tentativa constante de PP, a revelar preocupação humanista, de “desencardir”
o atraso cultural do seu país com a sua crítica construtiva.
OPINIÃO
Lenine dentro da Eneida Aqui está,
meus amigos leitores, o que faz um livro tornado incomum mais de dois milénios
depois.
PÚBLICO, 3 de
Abril de 2021
Sim,
podem desde já tirar a conclusão de que o meu interesse pelas questões
correntes é escasso, e protestar aqui ao lado nos comentários. Sim, não estou particularmente furioso, nem
com o Presidente da República nem
com o primeiro-ministro. Sim,
preocupo-me, como toda a gente, com a pandemia, mas nada tenho a acrescentar ao
que se sabe, e muito menos ao que não se sabe. Sim, acho um abuso cívico
que vão mais uns milhões para o Novo Banco. Sim,
tenho uma opinião formada sobre Sócrates e espero que não tenha que ter uma sinistra opinião sobre a justiça em Portugal.
E, por fim, não padeço daquilo que no mundo anglo-saxónico se chama writer’s
block, ou seja, não conseguir escrever, só me falta paciência para encontrar
alguma coisa interessante nesta narrativa cinzenta e redutora que a pandemia
acentuou a uma vida pública já de si muito pouco brilhante.
Admito que isto possa ser bom para a ficção, Coetzee ou Philip Roth escreviam
bem neste deserto afectivo e intelectual. Também não é escapismo, porque não
escapo a nada, só ando à volta, com a vantagem de viajar para esse país
estrangeiro que é o passado.
Quando é assim, volto aos clássicos, o que nos dias de hoje
parece uma snobeira, mas a culpa não é minha. Eles são bons de mais, perceberam
quase tudo, e quanto àquilo que eles não perceberam, também nós estamos na
mesma escuridão. E, na
altura em que estava a ver sobre o que é que vou escrever no meio do elenco do
aborrecimento, apareceu uma coisa curiosa nuns livros oferecidos. Nada me
move mais do que a curiosidade e essa coisa, digamos assim, é uma antiga Eneida de
Virgílio numa velha edição escolar francesa
já em muito mau estado.
Em
condições normais, como conheço a capa desta colecção dos clássicos, arrumaria
o livro atrás de outras edições da Eneida, para não ocupar espaço na
estante, e iria para o limbo da estante, ou seja atrás, nem sequer em segunda
fila, mas ao alto. Ficaria esquecida, que o destino deste limbo é esse. Ficar
no limbo até está bem para Virgílio, que é onde Dante o encontra às portas do
Inferno, junto com outros virtuosos pagãos e crianças não baptizadas, cheio de
grandes poetas e exemplo ímpar da crueldade religiosa do cristianismo, porque
nenhum dos habitantes do limbo tem qualquer culpa de ter nascido antes de
Cristo e não conhecer a “luz”. Bento XVI, que sabia muito, acabou com o limbo e o catecismo diz
agora que “Deus pode dar a graça do baptismo sem que tenha havido o sacramento”.
Estão a ver porque é que os clássicos são bons? Vejam lá onde já vamos.
Voltando
à gasta e comum Eneida que me “curiosirou”, desculpem o bárbaro
neologismo, é que lá estava, no meio das folhas, nem mais nem menos do que um
retrato de Lenine. O que é
que Lenine estava fazer junto com Eneias e seu pai? Estava escondido, porque
não se expunha à luz, durante 48 portugueses anos, a face oriental de Lenine
com um vago ar diabólico e um pequeno sorriso sardónico. Lenine esteve várias
vezes escondido, não em bíblicas grutas, e uma das vezes numa cabana. Há uma
célebre pintura soviética em que está a escrever, ao lado da cabana, sentado
num tronco perto da aldeia de Razliv. Cunhal identificava-se muito com esta
imagem.
Aqui,
está escondido numas páginas do capítulo oitavo da Eneida, e
resolvi ver se havia qualquer relação entre o que lá estava escrito e o
revolucionário russo. Não havia, como é óbvio, foi lá metido à sorte, mas, como
quem procura sempre alcança, lá estava uma imaginária relação. Virgílio
conta aqui o episódio da queda do tirano Mezêncio, rei etrusco conhecido pela
sua crueldade, que provocou a revolta na sua cidade e o obrigou a fugir. Na
página leniniana conta-se, aliás, uma das suas torturas (“mortua quin
etiam iungebat corpora vivis componens manibusque manus atque oribus …), que
era atar vivos a mortos, mão com mão, boca com boca, e deixá-los morrer assim.
Quem seria aqui o tirano? O czar Nicolau e os seus cossacos? Ou
Lenine, o bolchevique que abriu caminho para os terrores da guerra civil e de Staline?
Venha o Diabo às páginas da Eneida e escolha, embora duvide que
escolhesse o czar, que era bom dançarino mas mau autocrata. Para além disso, a
Igreja Ortodoxa russa santificou-o no ano 2000 e não se leva um santo para o
Inferno. Já Lenine, que, segundo Trotsky, mandara matar o czar e a família,
esse tinha lugar garantido nas chamas eternas.
Aqui
está, meus amigos leitores, o que faz um livro tornado incomum mais de dois
milénios depois. Podem, se faz favor, voltar ao resto do PÚBLICO, que está mais
conforme com os tempos. E desculpem os que escolhem na redacção as citações
para destaque no corpo do jornal, que eu sei bem que é difícil.
Historiador
TÓPICOS
LIVROS
LITERATURA VIRGÍLIO LENINE HISTÓRIA RÚSSIA
COMENTÁRIOS
antifascista INICIANTE: Este fulano escreve como pensa, mal, muito mal. E
tem-se em grande conta. Só no Portugalório dos jornais e televisões podia
vicejar. É preciso ser muito ignorante para falar do "capítulo oitavo da
Eneida". Gil Paulo EXPERIENTE: Por 'deformação', gosto de mensagens encriptadas,
escondidas: "Será chuva? Será gente? / Gente não é, certamente / e a chuva
não bate assim". Parece-me Louçã, imaginativo.
Jose MODERADOR: Há séculos não há mais luz que a dos clássicos. Não que
seja proibido ir à ignorância e fazer dela, ou minúscula parte dela, um átomo
de luz. Não. Não é proibido. Acontece que estamos em pousio gastando toda a
energia reflexiva na gestão das miseráveis rotinas que alimentam a última
maravilha do mundo: este estilo de vidinha, videirinha. Faz falta o "golpe
de asa" de que se lamentava Cesário Verde há uns anitos. O seu Lenine bem
podia ser uma pagela pascal usada como marcador de leitura, sem heroicidade nenhuma,
mas não era a mesma coisa. As vastas terras do Czar Nicolau passaram do
feudalismo ao Capitalismo e isso envolveu muita gente. Lenine e Stalin são
apenas figurantes do Povo em movimento levantando poeirada que envolve e
esconde destroços como ocorre sempre nas erupções vivas. Maria Teresa Ramalho INICIANTE: José, boa
noite, não sei se o "golpe de asa" está no Cesário Verde, mas está,
de certeza, no "Quase" de Mário de Sá-Carneiro. Jose MODERADOR: Tem toda a razão Cara Maria Teresa Ramalho. Obrigado
pela correcção. rogerio borges INICIANTE: O JPP está em grande forma, é oxigénio neste ar
bafiento, que ele perdure assim por muitos anos. Ricardo Costa e Moura INICIANTE: Grande José Pacheco Pereira. João Casquilho INICIANTE: Crónica divertida, antes assim do que as crónicas de
mau fígado do companheiro do lado JMT José Luís EXPERIENTE: Está com graça caro José Pacheco Pereira.
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