Já o dizia o nosso Gil Vicente, que não
resisto a recordar, atida ao provérbio do “recordar é viver”, sobretudo numa
fase de confinamento generalizado - fora as excepções impostas pelos que
decidem da nossa – e deles – protecção - contra um vírus que, esse sim, parece
verdadeiro, embora meio invisível, atacando pela calada, e obrigando à máscara
visível, que peca pelo seu incómodo, além do seu ridículo. Uma história bem
contada, esta de Nuno Pacheco sobre os
burladores destes tempos encardidos, a propósito do primeiro de Abril, que dantes consistia em graças mais ou menos
sofisticadas, que às vezes enganavam os ledores de jornais, mais desatentos ou
mais crédulos. Mas segundo Nuno
Pacheco, e outras informações que se vão colhendo aqui e ali, a burla
tornou-se o pão nosso de cada dia. E não há quem lhe ponha cobro, tantos são os
burladores e os pategos que caem na esparrela. Uma vergonha dos nossos tempos
mediáticos. Não, já não vale a pena especificar esse dia das mentiras. Não merece
homenagem. Nem troça. Sendo inútil o marmeleiro.
OPINIÃO
Ainda vale a pena reservar um dia só para mentiras?
Ah, se houvesse ao menos um Dia das Verdades, para
apagar todo este lixo que nos invade…
PÚBLICO, 1 de
Abril de 2021, 0:10
A brincadeira começou há mais de quatro
séculos, em França, muito antes de ali terem inventado a guilhotina. E
tudo por culpa do rei Carlos IX
(1550-1574). O Ano
Novo celebrava-se a 25 de Março,
no início da Primavera, com festividades que incluíam troca de prendas e
terminavam em 1 de Abril. Mas
a mudança
para o calendário gregoriano
fez o rei transferir tais festas para 1
de Janeiro, o que
levou os partidários da nova data a pregarem
partidas aos resistentes à mudança (os que teimavam na data antiga), com
presentes estranhos e convites para festas inexistentes. O costume pegou e alastrou-se pelo mundo. Nascia
assim o Dia das
Mentiras, a cada 1 de Abril. Mas
foi caindo em desuso. Até porque as mentiras tornaram-se perigosas, deixando de
lado o aspecto lúdico e invadindo o espaço da informação, da política, da
economia durante anos, já não só nas velhas e inocentes 24 horas (com as
mentiras desfeitas logo no dia seguinte). As
mentiras de 1 de Abril punham os incautos a descobri-las. Mas as de
agora não pretendem ter graça. E
só ganham terreno porque lidam com um exército amorfo e narcotizado de
“crentes”, que nunca perguntam “Porquê?” ou “Qual o nexo disto?”, antes de se
vergarem a qualquer barbaridade.
Na internet, hoje indispensável em todo o mundo, abundam perpétuos
“1 de Abril”. E o mais
estranho é que milhares de pessoas continuam a cair em armadilhas de piratas
espertos, que mais não fazem do que replicar estafadas
receitas de roubo fácil. Há
centenas de exemplos, com um só objectivo: chegar aos dados
da vítima e extorquir-lhe dinheiro. Em
Portugal, o Portal da Queixa registou uma média de 20 queixas por dia, num total de 600 reclamações em Janeiro passado.
Como agem? Como sempre: com mensagens mal
escritas, cheias de erros, mas mesmo assim suficientes para fazer vítimas. Assinam com nomes de empresas
existentes (que não
têm culpas neste cartório) ou mesmo com
nomes extravagantes como “Insunza Boloña Isidora” ou “Grazyna Sipinska”.
Uns oferecem empréstimos:
“Olá senhor / senhor. Oferece empréstimos em dinheiro de 5.000 a 5.000.000 de
euros a qualquer pessoa […] você está preso ou banido. Se você realmente
precisar, envie-me um endereço eletrônico para obter mais informações.”
Outros falam em contas
por pagar: “Sua fatura EDP expirou, efectue
agora o pagamento e evite o desligamento […] Aceda ao Centro de ajuda para
saber mais ou fale com a gente.” Outros ainda anunciam uma
encomenda por entregar: “tentamos
entregar seu pacote. Infelizmente, não podemos tentar entregar pacotes duas
vezes no mesmo dia. […] Pague a sua factura de 2,82 EUR para
receber o seu envio! Sinceramente!” Assinado “©
CTT 2020”! Outros “pescam” nas águas turvas do espaço virtual: “Caro
assinante. No momento, estamos atualizando nosso banco de dados de webmail
[...]”; ou: “Seu Outlook excedeu o limite de armazenamento 2020 atualização
2021 * Clique AQUI * preencha e clique em ENVIAR para mais espaço”. Quem acredita?
Os mais espertos encenam ameaças: “Bom
dia! Tenho monitorado o seu dispositivo na rede há muito tempo e consegui a
hackearlo com sucesso. Não foi difícil para mim, pois tenho muita experiência
neste ramo.” Bla, bla, bla. E exigem dólares, euros ou bitcoins. Outros
“oferecem” dinheiro. E vão desde a velhíssima transferência milionária aos
prémios a receber. “PROPASAL DE NEGÓCIO. Caro Respeitosamente, Meu nome é Sra.
Qian CHENGJIAN, do CITIBANK, uma consultora financeira de Diego Slazar, um
multimilionário. Posso CONFIAR em você ao transferir $ 9.356.669 USD”. Ou:
“Estou entrando em contato hoje porque acredito que a pandemia realmente causou
muitos problemas financeiros, então estamos concedendo uma doação para 5
pessoas sortudas e cada uma será aprovada no valor de 1.900.000 euros cada,
então se você estiver interessado, pode responder agora”. Ou: “Olá, Euromilhões
informa seu preço de 680.000 euros. Consulte as informações anexas e entre em
contato com o Maitre Faure louis Maurice. Esta mensagem não é spam ou vírus.”
Haverá quem inocentemente caia nisto?
Por
último, há uma fraude antiga que ressuscitou, recorrendo a cópias de cabeçalhos
de órgãos de comunicação e a figuras públicas com títulos como “El último gran
escándalo” ou “Acidente trágico: Rui Rio perde tudo...” para anunciar assim
negócios chorudos com bitcoins: “Cidadãos português estão coletando milhões de
Euros usando essa ‘brecha de riqueza’ - mas isso é legal?”
Ah,
se houvesse ao menos um Dia das Verdades, para apagar todo este lixo que nos
invade…
TÓPICOS
OPINIÃO
FRAUDES BURLAS QUESTÕES SOCIAIS COVID-19 TECNOLOGIA
COMENTÁRIOS:
Félix Carlos EXPERIENTE: “… Ah, se houvesse ao menos um Dia das Verdades, para
apagar todo este lixo que nos invade…”. Não foi dia inteiro de prodígio, antes
fosse. Apenas breve instante, menos que nano do segundo, muito menos que falha
imperceptível de luz em candeeiro. Afinal o tempo pode ler-se ao microscópio.
Os homens deixaram-se dormir, as mulheres de bem parir, as crianças de alto
crescer. O povo sabe como respirar em ditadura, mangar de tiranos, de enganos e
de quando surge alguém que antes vendia água com açúcar e agora quer enfim
devolver-lhes o mundo. Então o gentio quebra-lhe o feitiço com riso sem siso de
este ser dia que nem de verdade é. Luis_Morgado EXPERIENTE: A virtude no mau português com que invariavelmente
surgem essas mensagens mentirosas reside no facto de se denunciarem como lixo,
tanto pela forma como pelo conteúdo. Grande parte destes burlistas, para além
de desonestos são trapalhões e preguiçosos. Soeiro INICIANTE: Há dias assim, não se tem nada para escrever e é
preciso mandar a crónica semanal. Português pelo mundo INICIANTE: Não deixa de ser curioso que
quase todas essas patranhas e embustes apareçam escritos em português
abrasileirado, além dos erros. Talvez não porque fossem criados no Brasil, mas
antes por resultarem de traduções, possivelmente automáticas, de fraca
qualidade, de outras origens. Para os incautos, bastaria um melhor conhecimento
da língua para perceber que há aí marosca.
TEXTO: UM EXCERTO DO “AUTO DA FEIRA”, de Gil Vicente.
Este,
verdadeiro:
Entra Roma, cantando.
ROMA
«Sobre mi armavam guerra; «ver quero eu quem a
mi leva. «Três amigos que eu havia, «sobre mi armam porfia; «ver quero eu quem
a mi leva». (Fala):
Vejamos se nesta feira, que Mercúrio aqui faz, acharei
a vender paz, que me livre da canseira em que a fortuna me traz. Se os meus me
desbaratam, o meu socorro onde está Se os Cristãos mesmos me matam, a vida quem
m' a dará, que todos me desacatam? Pois s' eu aqui não achar a paz firme e de
verdade na santa feira a comprar, cant' a mi dá-me a vontade que mourisco
hei-de falar.
DIABO
Senhora, se
vos prouver, eu vos darei bom recado.
ROMA
Não te parece azado pera trazer a vender o que
eu trago no cuidado.
DIABO
Não julgueis vós pola cor, porque em al vai o
engano; cá dizem que sob mau pano está o bom bebedor; nem vós digais mal do
ano.
ROMA
Eu venho à feira direita comprar paz, verdade e fé.
DIABO
A
verdade pera quê? Cousa que não aproveita, e aborrece, pera que é? Não trazeis
bons fundamentos pera o que haveis mister; e a segundo são os tempos, assim
hão-de ser os tentos, pera saberdes viver. E pois agora à verdade chamam Maria
Peçonha, e parvoíce à vergonha, e aviso à ruindade, peitai a quem vola ponha, a
ruindade digo eu: e aconselho-vos mui bem, porque quem bondade tem nunca o
mundo será seu, e mil canseiras lhe vem. Vender-vos-ei nesta feira mentiras
vinta três mil, todas de nova maneira, cada üa tão subtil, que não vivais em
canseira: mentiras pera senhores, mentiras pera senhoras, mentiras pera os
amores, mentiras, que a todas as horas vos nasçam delas favores. E como formos
avindos nos preços disto que digo, vender-vos-ei como amigos muitos enganos
infindos, que aqui trago comigo.
ROMA
Tudo
isso tu vendias, e tudo isso feirei tanto, que inda venderei, e outras sujas
mercancias, que por meu mal te comprei. Porque a troco do amor de Deus, te
comprei mentira, e a troco do temor que tinha da sua ira, me deste o seu
desamor; e a troco da fama minha e santas prosperidades, me deste mil
torpidades; e quantas virtudes tinha te troquei polas maldades. E pois já sei o
teu jeito, quero ir ver que vai cá.
DIABO
As
cousas que vendem lá são de bem pouco proveito a quem quer que as comprará.
Vai-se Roma ao Tempo e Mercúrio e diz Roma:
ROMA
Tão
honrados mercadores não podem leixar de ter cousas de grandes primores; e
quant’eu houver mister deveis vós de ter, senhores
SERAFIM
Sinal
é de boa feira virem a ela as donas tais, e pois vós sois a primeira, queremos
ver que feirais segundo vossa maneira. Cá, se vós a paz quereis senhora, sereis
servida, e logo a levareis a troco de santa vida; mas não sei se a trazeis.
Porque, senhora eu me fundo que quem tem guerra com Deus, não pode ter paz c ' o
mundo ; porque tudo vem dos céus, daquele poder profundo
ROMA
A
troco das estações não fareis algum partido, e a troco dos perdões, que é
tesouro concedido pera quaisquer remissões? Oh, vendei-me a paz dos céus, pois
tenho o poder na terra.
SERAFIM
Senhora,
a quem Deus dá guerra, grande guerra faz a Deus, que é certo que Deus não erra.
Vede vós que lhe fazeis, vede como o estimais, vede bem se o temeis; atentai
com quem lidais, que temo que caireis
ROMA
Assi
que a paz não se dá a troco de jubileus?
MERCÚRIO
Ó Roma,
sempre vi lá que matas pecadas cá, e leixas viver os teus. Tu não te corras de
mi; mas com teu poder facundo assolves a todo o mundo, e não te lembras de ti,
nem vês que te vás ao fundo.
ROMA
Ó
Mercúrio, valei-me ora, que vejo maus aparelhos.
MERCÚRIO
Dá-lhe,
Tempo, a essa senhora o cofre de meus conselhos: e podes-te ir muit' embora. Um
espelho aí acharás, que foi da Virgem Sagrada, co' ele te toucarás porque vives
mal toucada, e não sentes como estás: e acharás a maneira como emendes a vida:
e não digas mal da feira; porque tu serás perdida, se não mudas a carreira. Não
culpes aos reis do mundo, que tudo te vem de cima, pelo que fazes cá em fundo:
que, ofendendo a causa prima, se resulta o mal segundo. E também o digo a vós e
a qualquer meu amigo, quem não quer guerra consigo: tenha sempre paz com Deus,
e não temerá perigo.
DIABO
Prepósito
Frei Sueiro, diz lá o exemplo velho: dá-me tu a mi dinheiro, e dá ao demo o
conselho.
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