domingo, 11 de abril de 2021

Macho latino


Um espécime valorizado por cá. Mesmo entre os juízes, que se regozijam, ao que parece, que tais machos pratiquem a sua própria justiça, até de olhos fechados, que é como a Justiça deve ser praticada – de olhos vendados e com balança, embora esta não faça falta nestes casos. António Barreto fez bem em tocar no tema, que os comentadores, de modo geral, aprovaram.

Em 1974, antes do 25 de Abril, esses problemas por cá, parece que eram mais suaves, embora as mulheres já estivessem mais reivindicativas, e isso se deveu também às “Novas Cartas Portuguesas” das “Três Marias”, (que já referi aqui), pois até houve quem comparasse o que por cá acontecia com o que se passava na Inglaterra e a esse propósito escrevi um texto para a “Página da Mulher” do “Jornal Notícias” de Lourenço Marques, que publiquei nesse mesmo ano, no livro “Pedras de Sal”. Transcrevo-o (no final), para demonstrar que as mulheres por cá eram menos vítimas então do que são hoje, até seria uma vergonha queixarem-se dos maridos. Lá pela Inglaterra é que já havia mais defesas para as mulheres, e até Associações de Defesa desses Direitos, como país de maior cultura democrática. E obviamente aristocrática. As Três Marias é que não acreditavam nessas branduras por cá, onde tal animosidade se nota cada vez mais, com juízes que não as leram, nem, de resto, outras mais defensoras dos direitos femininos, que fizeram época… Viu-se, no tal julgamento bastante badalado, que o próprio AB também refere.

OPINIÃO

Justiça e violência

Para além da crise de morosidade e da corrupção, há uma justiça que falta fazer. A justiça do crime de violência doméstica!

ANTÓNIO BARRETO

PÚBLICO, 0 de Abril de 2021

A justiça é um tema de permanente discussão. Ainda bem. Mesmo se por vezes temos um forte sentimento de impotência: fala-se, fala-se, fala-se e pouco se avança.

Nos últimos anos, a “questão da justiça” tem estado sempre ligada à corrupção. Quando se reclama melhor e mais justiça, é quase sempre com a corrupção em mente. Ou então pensa-se na morosidade, facto indesmentível, e na parcialidade, problema complexo.

Para além da crise de morosidade e da corrupção, há uma justiça que falta fazer. A justiça do crime de violência doméstica! A recente publicação do Relatório anual de segurança interna faz-nos recordar que em Portugal se cometem cerca de 300.000 crimes por ano. Um pouco mais de 800 por dia. Em comparações europeias, geralmente difíceis por causa dos conceitos e dos contextos, há casos em que Portugal está entre os mais violentos, outros a meio da tabela, outros ainda entre os mais pacíficos. Mas a violência doméstica tem muito especial incidência entre nós.

Segundo a tipologia oficial, os 23.000 casos de violência doméstica constituem o primeiro dos crimes, seguido de furto em automóvel, da burla informática e da ofensa à integridade física. São mais de 60 crimes de violência doméstica por dia! Crimes denunciados, sublinhe-se, que não incluem as pancadarias silenciadas, as agressões escondidas e os maus-tratos que todos os dias homens infligem às mulheres e com que adultos entendem educar filhos.

Em dez dos dezoito distritos do país, a violência doméstica é o primeiro crime denunciado. A pior violência é evidentemente o homicídio. São assassinadas, por ano, em Portugal, mais de 30 mulheres, em contexto de relações íntimas. Em quinze anos, são mais de 550 assassínios e mais de 600 tentativas. Sempre em contexto familiar.

Bater nas mulheres: é costume insuportável de muitos portugueses. Não é fácil encontrar estatísticas europeias. Também não interessa muito. O que temos é suficientemente mau. Quando se fala de violência doméstica, há várias especialidades. Conforme quem bate e quem apanha. Mas o principal caso é o dos homens e maridos que batem nas suas mulheres, namoradas e companheiras. Depois disso, pais que batem nos filhos ou nos velhos. Marginalmente, também se bate em homens, o que interessa muito os “voyeurs”, mas não tem significado estatístico. Homem que bate em homem, mulher que bate em mulher ou mulher que bate em homem: são casos residuais.

Tanto ou mais do que as causas do crime ou do que a protecção das vítimas, importa olhar para a justiça. Esta tem dado exemplos escabrosos de complacência com os homens violentos em casa, de benevolência com os agressores e de piedade para com os que batem nas mulheres. Há muitos magistrados preparados para desculpar os homens que perdem a cabeça. Como há até os que pensam que “elas estavam a pedi-las”… Ou os que acreditam que “bem lá no fundo, algumas gostam”… Entre nós, a justiça não está preparada para castigar os maridos ciumentos e os viciados na violência masculina. Grande parte da justiça portuguesa olha com condescendência e bom humor para os homens violentos.

Como se pode imaginar, o problema recusa simplicidades. As causas são muitas. As consequências também. As circunstâncias são variadas, os métodos e os procedimentos também. O que quer dizer que a luta contra a violência doméstica e, em particular, a violência masculina contra mulheres e crianças exige o concurso de disciplinas várias, de processos complexos e de aproximações sofisticadas.

As leis vigentes são débeis. As políticas em vigor são tímidas. Os magistrados são frequentemente machistas. Os tribunais cultivam fantasias inadmissíveis. Sem esperar pela reforma de mentalidade e pela formação de um “homem novo”, é na justiça e com a justiça que se pode agir.

Importa a educação, dirão uns. Educar desde o berço. Educar para a igualdade. Educar com doçura. Muito bem. Tudo isso é verdade. Quanto tempo demora? Até quando teremos que conviver com esta violência impune? Reformar as mentalidades, dirão outros. É a mais banal das orientações. Quando alguém não sabe o que pensar nem o que fazer, conclui que é necessário reformar as mentalidades. Sobretudo depois de estabelecer que se trata de “problema cultural”. Os autores de tais opiniões esquecem-se de dizer o que é exactamente a reforma de mentalidades, como se faz e, mais difícil ainda, quem são os reformadores que vão reformar as mentalidades dos outros!

Só se vê uma maneira com eventuais resultados visíveis a prazo: através da justiça. As leis vigentes são débeis. As políticas em vigor são tímidas. Os magistrados são frequentemente machistas. Os tribunais cultivam fantasias inadmissíveis. Sem esperar pela reforma de mentalidade e pela formação de um “homem novo”, é na justiça e com a justiça que se pode agir.

É verdade que se deve proteger as vítimas batidas, abrigar as mulheres violadas ou ameaçadas, recolher as crianças maltratadas, apoiar os velhos atemorizados… Tudo isso é verdade, mas o essencial é não deixar o criminoso à solta, não permitir que o violador se passeie pela cidade, não conceder facilidades de vida ao homicida, não tolerar o assassinato, não premiar o agressor

Pode fazer-se muito. Já. Em primeiro lugar, aprovar leis positivas, duras, sem margens para interpretações e variações poéticas. Segundo, aplicar leis punitivas com prisão firme, sem os remorsos da “severidade excessiva” e, sobretudo, sem pena suspensa, mal endémico de grande parte da justiça portuguesa. Como é sabido, é frequentemente mais castigado o roubo de uma sande num supermercado do que uma carga de pancada na mulher ou um braço quebrado no avô. Terceiro, multas elevadas aos prevaricadores, muito sensíveis na carteira. Quarto, aplicar castigos duros relativamente à condição profissional. Não custaria nada ver que um assassino, violador ou agressor de mulheres e crianças fosse expulso da função pública, não tivesse acesso a empregos nas áreas públicas e não fosse admitido em instituições de educação ou formação. Quinto, exigir do Conselho Superior da Magistratura uma atitude mais activa, legalmente mais firme e moralmente mais aceitável relativamente aos magistrados que cultivam devaneios sobre o “macho latino”, o “ciúme masculino”, a “dignidade viril” e a “auto-estima ferida” que supostamente fariam parte da bagagem cultural dos homens portugueses. Ao Parlamento e ao Governo compete ainda declarar, nas suas competências de elaboração de políticas e de formulação de estratégias, que a luta contra a violência doméstica e a violação seja considerada prioritária.

Se há domínio em que a bondade é inútil, é bem este.

Sociólogo

TÓPICOS

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA  CRIME  JUSTIÇA  MULHERES  TRIBUNAIS  JUÍZES  OPINIÃO

COMENTÁRIOS:

miguelc  EXPERIENTE: Por favor, já nem justiça temos. Já não tínhamos parlamento, nem ordens, nem entidades reguladoras. Por favor, no more masturbation. Escreva sobre o essencial! Faça pedagogia! Escreva sobre o essencial! Você tem voz!          Fowler Fowler EXPERIENTE: Acredito que muita coisa poderá ter de mudar na Justiça, mas esta não poderá ser utilizada para todos os fins. Há estudos que indicam que o crime da violência doméstica não diminui com o agravamento das penas a aplicar aos prevaricadores, uma vez que se reconhece que a montante, quer em Portugal como em outros países latinos, subsiste uma cultura de valores incutida pela Igreja (ICAR) que, paradoxalmente, doutrinou, vigiou e consentiu na submissão dos mais frágeis, durante séculos. É minha convicção que a educação, nos valores da liberdade e da igualdade, poderá mudar mentalidades e, dessa forma, contribuir também para a diminuição do problema através de estratégias multidisciplinares onde, naturalmente, a Justiça terá um papel relevante a desempenhar.         Arur João Lourenço Vaz  INICIANTE: Muitas vezes discordo de António Barreto, mas hoje dou-lhe todo o meu aplauso. Mario Coimbra  INFLUENTE: Caro AB, obrigado por mais uma excelente crónica. No dia em que todos estamos um pouco confusos com a nossa noção de justiça, um artigo claro e com ideias para resolver os problemas. Obrigado.         alicegiraoosorio INICIANTE: Caro Professor António Barreto, mais uma vez reconheço a sua imensa lucidez na visão dos problemas que nos afligem e na sua capacidade de encontrar uma resposta eficaz à resolução desses problemas. O problema da violência doméstica é terrível em Portugal, mas ainda pior é a complacência com que é tratado. Eu já teria mais de trinta anos quando soube que, em Portugal, muitas mulheres morriam às mãos dos maridos, e ainda me lembro do espanto que senti, pois estava convencida de que isso só acontecia em países do terceiro mundo. E o meu maior espanto e revolta foi ver a forma complacente como as pessoas à volta lidavam com isso e a forma ligeira com que os casos eram julgados. Ao lutar contra isso, estamos a tentar eliminar a violência na sociedade, que começa na educação das crianças. Manuel Pessoa  EXPERIENTE. De facto falar muito e avançar pouco é mau. Mas também não é bom desvalorizar parcelas da violência doméstica só porque é "residual". Violência é violência e quando se começa a distingui-la por tipo de vítima legitima-se a avaliação das circunstâncias que a possa ter provocado. Do mesmo modo, se compreendemos a reacção à impunidade dos violentadores, também não se deve perder a tramontana a inventar penalidades visando, p. ex. transformar a função publica num bastião da moral doméstica e dos bons costumes!        graça dias EXPERIENTE: Como sempre uma reflexão atenta e cuidada. Desde há muito que se constata a decadência confrangedora no nível intelectual e técnico da grande maioria dos deputados, que em ocasiões "gritantes" falam alto, muito alto, e muito protestam contra leis, que eles mesmo aprovaram?

 

Do Livro “Pedras de Sal”

O melhor remédio

«Li hoje um artigo muito mal-humorado sobre o machismo britânico e o de cá. Parece que há senhoras portuguesas queixosas de vassouradas maritais e outras de quebra de dentes.

Todos esses exemplos vinham em defesa da teoria de que a loira Albion, afinal, não protege as suas doces cidadãs contra as brutalidades dos seus concidadãos, escrupulosamente autoritários.

Não, não é assim que supõem certas burguesinhas portuguesas, de anseios inconfessáveis, de que por lá só há quebra da moeda, sendo a dos dentes exclusivamente nossa.

O autor do artigo mostra-se até cheio de amarga ironia contra as tais burguesinhas inconfessáveis e também contra os intelectuais armados em defensores dos direitos femininos.

Triunfalmente ele relembra as vassouradas e os pontapés conjugais descritos pelas inglesas nas suas – delas – cartas à Associação de Auxílio às Mulheres.

Ficamos com a impressão, ao lê-lo, de que os pontapés e as vassouradas de cá são insuficientes para o seu gosto e muita sorte têm as nossas portuguesas por não terem esposos britânicos assim tão selvagens e tão agarrados à vassoura.

O próprio facto de não possuirmos uma Associação de Auxílio às Mulheres demonstra à evidência que não precisamos de auxílio, abonando isso perfeitamente a favor da suavidade e morigeração dos nossos costumes.

Mas todos os pequenos e pequenas deste país, além das burguesinhas desprotegidas e inconfessáveis e dos intelectuais protectores e delicados, cuidam que para lá da Mancha, do Grande Belt, todos são livres, todos são iguais, todos são felizes.

Ora bem, este artigo do Sr. Maria Zorro dá a entender o contrário, o que nos deve alegrar a todos, pois sempre os males alheios consolaram os nossos próprios males, mesmo fictícios, como neste caso.»

 

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