Um espécime valorizado por cá. Mesmo
entre os juízes, que se regozijam, ao que parece, que tais machos pratiquem a
sua própria justiça, até de olhos fechados, que é como a Justiça deve ser
praticada – de olhos vendados e com balança, embora esta não faça falta nestes
casos. António Barreto fez bem em
tocar no tema, que os comentadores, de modo geral, aprovaram.
Em 1974,
antes do 25 de Abril, esses
problemas por cá, parece que eram mais suaves, embora as mulheres já estivessem
mais reivindicativas, e isso se deveu também às “Novas Cartas Portuguesas” das “Três
Marias”, (que já referi aqui), pois até houve quem comparasse o que por cá
acontecia com o que se passava na Inglaterra e a esse propósito escrevi um
texto para a “Página da Mulher” do “Jornal Notícias” de Lourenço Marques, que publiquei
nesse mesmo ano, no livro “Pedras
de Sal”. Transcrevo-o (no final), para demonstrar que as mulheres por cá eram
menos vítimas então do que são hoje, até seria uma vergonha queixarem-se dos
maridos. Lá pela Inglaterra é que já havia mais defesas para as mulheres, e até
Associações de Defesa desses Direitos, como país de maior cultura democrática.
E obviamente aristocrática. As Três
Marias é que não acreditavam nessas branduras por cá, onde tal animosidade se
nota cada vez mais, com juízes que não as leram, nem, de resto, outras mais defensoras
dos direitos femininos, que fizeram época… Viu-se, no tal julgamento bastante badalado,
que o próprio AB também
refere.
OPINIÃO
Justiça e violência
Para além
da crise de morosidade e da corrupção, há uma justiça que falta fazer. A
justiça do crime de violência doméstica!
PÚBLICO, 0 de
Abril de 2021
A
justiça é um tema de permanente discussão. Ainda bem. Mesmo se por vezes temos
um forte sentimento de impotência: fala-se, fala-se, fala-se e pouco se
avança.
Nos
últimos anos, a “questão da justiça” tem estado sempre ligada à corrupção. Quando se reclama melhor
e mais justiça, é quase sempre com a corrupção em mente. Ou então pensa-se na morosidade, facto
indesmentível, e na parcialidade, problema complexo.
Para
além da crise de morosidade e da corrupção, há uma justiça que falta fazer. A
justiça do crime de violência doméstica! A recente publicação do Relatório anual de segurança interna faz-nos recordar que
em Portugal se cometem cerca de 300.000 crimes por ano. Um pouco mais de 800 por dia. Em comparações
europeias, geralmente difíceis por causa dos conceitos e dos contextos, há
casos em que Portugal está entre os mais violentos, outros a meio da tabela,
outros ainda entre os mais pacíficos. Mas a violência doméstica tem muito
especial incidência entre nós.
Segundo a tipologia oficial, os
23.000 casos de violência doméstica constituem o primeiro dos crimes, seguido de furto em automóvel, da burla informática e da ofensa à integridade física. São mais de 60 crimes de violência doméstica por
dia! Crimes denunciados, sublinhe-se, que não incluem as pancadarias
silenciadas, as agressões escondidas e os maus-tratos que todos os dias homens
infligem às mulheres e com que adultos entendem educar filhos.
Em
dez dos dezoito distritos do país, a violência doméstica é o primeiro crime
denunciado. A pior
violência é evidentemente o homicídio. São
assassinadas, por ano, em Portugal, mais de 30 mulheres, em contexto de
relações íntimas. Em quinze
anos, são mais de 550 assassínios e mais de 600 tentativas. Sempre em contexto
familiar.
Bater nas mulheres: é costume insuportável de muitos portugueses. Não é
fácil encontrar estatísticas europeias. Também não interessa muito. O que temos
é suficientemente mau. Quando se fala de violência doméstica, há várias
especialidades. Conforme quem bate e quem apanha. Mas o principal caso é o dos
homens e maridos que batem nas suas mulheres, namoradas e companheiras. Depois
disso, pais que batem nos filhos ou nos velhos. Marginalmente, também se bate em homens, o que interessa
muito os “voyeurs”, mas não tem significado estatístico. Homem que bate em homem, mulher que bate em
mulher ou mulher que bate em homem: são casos residuais.
Tanto
ou mais do que as causas do crime ou do que a protecção das vítimas, importa
olhar para a justiça. Esta tem
dado exemplos escabrosos de complacência com os homens violentos em casa, de
benevolência com os agressores e de piedade para com os que batem nas mulheres. Há
muitos magistrados preparados para desculpar os homens que perdem a cabeça.
Como há até os que pensam que “elas estavam a pedi-las”… Ou os que acreditam
que “bem lá no fundo, algumas gostam”… Entre nós, a justiça não está preparada
para castigar os maridos ciumentos e os viciados na violência masculina. Grande
parte da justiça portuguesa olha com condescendência e bom humor para os homens
violentos.
Como
se pode imaginar, o problema recusa simplicidades. As causas são muitas. As
consequências também. As
circunstâncias são variadas, os métodos e os procedimentos também. O que quer
dizer que a luta contra a violência doméstica e, em particular, a violência
masculina contra mulheres e crianças exige o concurso de disciplinas várias, de
processos complexos e de aproximações sofisticadas.
As
leis vigentes são débeis. As políticas em vigor são tímidas. Os magistrados são
frequentemente machistas. Os tribunais cultivam fantasias inadmissíveis. Sem
esperar pela reforma de mentalidade e pela formação de um “homem novo”, é na
justiça e com a justiça que se pode agir.
Importa
a educação, dirão uns. Educar desde o berço. Educar para a igualdade. Educar
com doçura. Muito bem. Tudo isso é verdade. Quanto tempo demora? Até quando
teremos que conviver com esta violência impune? Reformar as
mentalidades, dirão outros. É a mais banal das orientações. Quando
alguém não sabe o que pensar nem o que fazer, conclui que é necessário reformar
as mentalidades. Sobretudo depois de estabelecer que se trata de “problema
cultural”. Os autores de tais opiniões esquecem-se de dizer o que é exactamente
a reforma de mentalidades, como se faz e, mais difícil ainda, quem são os
reformadores que vão reformar as mentalidades dos outros!
Só
se vê uma maneira com eventuais resultados visíveis a prazo: através da
justiça. As leis vigentes são débeis. As políticas em vigor são tímidas. Os
magistrados são frequentemente machistas. Os tribunais cultivam fantasias
inadmissíveis. Sem esperar pela reforma de mentalidade e pela formação de um
“homem novo”, é na justiça e com a justiça que se pode agir.
É
verdade que se deve proteger as vítimas batidas, abrigar as mulheres violadas
ou ameaçadas, recolher as crianças maltratadas, apoiar os velhos atemorizados…
Tudo isso é verdade, mas o essencial é não deixar o criminoso à
solta, não permitir que o violador se passeie pela cidade, não conceder
facilidades de vida ao homicida, não tolerar o assassinato, não premiar o
agressor…
Pode
fazer-se muito. Já. Em primeiro lugar, aprovar leis positivas,
duras, sem margens para interpretações e variações poéticas. Segundo, aplicar leis punitivas com prisão
firme, sem os remorsos da “severidade excessiva” e, sobretudo, sem pena
suspensa, mal endémico de grande parte da justiça portuguesa. Como é sabido, é frequentemente mais castigado o
roubo de uma sande num supermercado do que uma carga de pancada na mulher ou um
braço quebrado no avô. Terceiro, multas elevadas aos
prevaricadores, muito sensíveis na carteira.
Quarto, aplicar castigos duros relativamente à condição profissional. Não custaria nada ver que um assassino, violador
ou agressor de mulheres e crianças fosse expulso da função pública, não tivesse
acesso a empregos nas áreas públicas e não fosse admitido em instituições de
educação ou formação. Quinto, exigir do Conselho Superior da
Magistratura uma atitude mais activa, legalmente mais firme e moralmente mais
aceitável relativamente aos magistrados que cultivam devaneios sobre o “macho
latino”, o “ciúme masculino”, a “dignidade viril” e a “auto-estima ferida” que
supostamente fariam parte da bagagem cultural dos homens portugueses. Ao Parlamento
e ao Governo compete
ainda declarar, nas suas competências de elaboração de políticas e de
formulação de estratégias, que a luta contra a violência doméstica e a violação
seja considerada prioritária.
Se
há domínio em que a bondade é inútil, é bem este.
Sociólogo
TÓPICOS
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CRIME JUSTIÇA MULHERES TRIBUNAIS JUÍZES OPINIÃO
COMENTÁRIOS:
miguelc EXPERIENTE: Por favor, já nem justiça temos. Já não tínhamos
parlamento, nem ordens, nem entidades reguladoras. Por favor, no more
masturbation. Escreva sobre o essencial! Faça pedagogia! Escreva sobre o
essencial! Você tem voz!
Fowler Fowler EXPERIENTE: Acredito que muita coisa poderá ter de mudar na
Justiça, mas esta não poderá ser utilizada para todos os fins. Há estudos
que indicam que o crime da violência doméstica não diminui com o agravamento
das penas a aplicar aos prevaricadores, uma vez que se reconhece que a
montante, quer em Portugal como em outros países latinos, subsiste uma cultura
de valores incutida pela Igreja (ICAR) que, paradoxalmente, doutrinou, vigiou e
consentiu na submissão dos mais frágeis, durante séculos. É minha
convicção que a educação, nos valores da liberdade e da igualdade, poderá mudar
mentalidades e, dessa forma, contribuir também para a diminuição do problema
através de estratégias multidisciplinares onde, naturalmente, a Justiça terá um
papel relevante a desempenhar.
Arur João Lourenço Vaz INICIANTE: Muitas vezes discordo de António Barreto, mas hoje
dou-lhe todo o meu aplauso. Mario Coimbra INFLUENTE: Caro AB, obrigado por mais uma excelente crónica. No
dia em que todos estamos um pouco confusos com a nossa noção de justiça, um
artigo claro e com ideias para resolver os problemas. Obrigado. alicegiraoosorio INICIANTE: Caro Professor António Barreto, mais uma vez reconheço
a sua imensa lucidez na visão dos problemas que nos afligem e na sua capacidade
de encontrar uma resposta eficaz à resolução desses problemas. O problema da
violência doméstica é terrível em Portugal, mas ainda pior é a complacência com
que é tratado. Eu já teria mais de trinta anos quando soube que, em
Portugal, muitas mulheres morriam às mãos dos maridos, e ainda me lembro do
espanto que senti, pois estava convencida de que isso só acontecia em países do
terceiro mundo. E o meu maior espanto e revolta foi ver a forma complacente
como as pessoas à volta lidavam com isso e a forma ligeira com que os casos
eram julgados. Ao lutar contra isso, estamos a tentar eliminar a violência na
sociedade, que começa na educação das crianças. Manuel Pessoa EXPERIENTE. De facto falar muito e avançar pouco é mau. Mas também
não é bom desvalorizar parcelas da violência doméstica só porque é
"residual". Violência é violência e quando se começa a distingui-la
por tipo de vítima legitima-se a avaliação das circunstâncias que a possa ter
provocado. Do mesmo modo, se compreendemos a reacção à impunidade dos
violentadores, também não se deve perder a tramontana a inventar penalidades
visando, p. ex. transformar a função publica num bastião da moral doméstica e
dos bons costumes! graça dias EXPERIENTE: Como sempre uma reflexão atenta e cuidada. Desde há
muito que se constata a decadência confrangedora no nível intelectual e técnico
da grande maioria dos deputados, que em ocasiões "gritantes" falam
alto, muito alto, e muito protestam contra leis, que eles mesmo aprovaram?
Do Livro “Pedras de Sal”
O melhor remédio
«Li
hoje um artigo muito mal-humorado sobre o machismo britânico e o de cá. Parece
que há senhoras portuguesas queixosas de vassouradas maritais e outras de
quebra de dentes.
Todos
esses exemplos vinham em defesa da teoria de que a loira Albion, afinal, não
protege as suas doces cidadãs contra as brutalidades dos seus concidadãos,
escrupulosamente autoritários.
Não,
não é assim que supõem certas burguesinhas portuguesas, de anseios
inconfessáveis, de que por lá só há quebra da moeda, sendo a dos dentes
exclusivamente nossa.
O autor
do artigo mostra-se até cheio de amarga ironia contra as tais burguesinhas
inconfessáveis e também contra os intelectuais armados em defensores dos
direitos femininos.
Triunfalmente
ele relembra as vassouradas e os pontapés conjugais descritos pelas inglesas
nas suas – delas – cartas à Associação de Auxílio às Mulheres.
Ficamos
com a impressão, ao lê-lo, de que os pontapés e as vassouradas de cá são
insuficientes para o seu gosto e muita sorte têm as nossas portuguesas por não
terem esposos britânicos assim tão selvagens e tão agarrados à vassoura.
O
próprio facto de não possuirmos uma Associação de Auxílio às Mulheres demonstra
à evidência que não precisamos de auxílio, abonando isso perfeitamente a favor
da suavidade e morigeração dos nossos costumes.
Mas
todos os pequenos e pequenas deste país, além das burguesinhas desprotegidas e
inconfessáveis e dos intelectuais protectores e delicados, cuidam que para lá
da Mancha, do Grande Belt, todos são livres, todos são iguais, todos são
felizes.
Ora
bem, este artigo do Sr. Maria Zorro dá a entender o contrário, o que nos deve
alegrar a todos, pois sempre os males alheios consolaram os nossos próprios
males, mesmo fictícios, como neste caso.»
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