quinta-feira, 1 de abril de 2021

Sem tom nem som


E sem respeito algum por ninguém, e, pelo contrário, o desejo de ferir os sentimentos e mesmo as pessoas que a educação tornou mais ponderadas. Inutilmente. Porque o que conta são as novas propostas - de imitação, é certo, das modas estrangeiras – como será o caso das siglas englobantes dos vários espécimes sociais, que a nova assunção de direitos fez provocantemente reduzir a conjuntos de iniciais maiúsculas como essa do LGBT que vai em crescendo, como puzzle de peças de encaixe, estupidamente e atrevidamente desumanizador, afinal. E humilhante, para quem seja mais discreto. Ou mais altivo. Uma revolução linguística com efeitos sobre a própria gramática cada vez mais pedante e rebuscada, que, afinal, redunda em zero, na aquisição e compreensão pelas coitadas das crianças. Mas são, sobretudo, as novas ideologias que impõem tais mudanças, como bichas de rabiar em “perpétuo movimento” - não para criar ciência ou arte, mas sobretudo para abraçar sentimentos de uma solidariedade sociopolítica, puramente unilateral, de fabricação oportunista. Um excelente texto de MANUEL VILLAVERDE CABRAL, que mereceu apoio geral, mas que as circunstâncias políticas, sanitárias – e sobretudo estruturais, pela idiossincrasia de comodismo que nos distingue – tornam inútil.

As palavras e as coisas /premium

Esta descarada campanha do PS, que tanto agrada ao BE, favorece deliberadamente uma «novilíngua» sem controlo nem respeito pelo conjunto de uma sociedade antiga e complexa como a nossa.

MANUEL VILLAVERDE CABRAL             OBSERVADOR, 30 mar 2021

Os leitores perdoarão este uso algo forçado da relação entre «as palavras e as coisas», acerca da qual Michel Foucault, o filósofo entretanto esquecido, escreveu um livro muito na moda há mais de 50 anos no qual explicava as relações menos óbvias entre «as palavras e as coisas», que efectivamente o positivismo anglo-americano interpretava como tal coisa, tal palavra e vice-versa… Foucault mostrou, contudo, que tal relação era bem mais complexa do que parecia: as palavras fixavam as coisas mas, ao mesmo tempo, o seu significado evoluía em função do próprio evoluir das palavras perante os sentidos que as pessoas iam, entretanto, atribuindo a coisas cada vez mais diferentes…

Desde então, o mundo deu as voltas que se sabe. Contudo, no último quinquénio, a complexidade da relação entre as palavras e as coisas, bem como a mútua interacção entre umas e outras, voltaram ao de cima, mercê da crescente e pantanosa obscuridade do mundo das ideologias que hoje prevalecem sob formas tanto mais primitivas, quanto as culturas periféricas menos entendem os conteúdos e mutações da relação palavra-coisa-palavra-coisa nos centros internacionais da especulação ideológica!

O resultado dessas desequilibradas interacções entre o centro e a periferia mundiais foi desencadear um ruído ensurdecedor em torno do binómio, em breve promovido a trinómio, entre sexo, raça e poder Tudo palavras cujo significado muda de dia para dia ao mesmo tempo que as coisas às quais as ditas palavras se presume corresponderem… É, pois, altura de recuperar o sentido do ditado português, segundo o qual, «palavras leva-as o vento»… Esperar-se-ia que assim fosse, mas não é… Pertencendo este regime de trocas permanentes às pessoas mais habilitadas para lidar com a complexa e ambígua relação entre palavras e coisas, a maioria das pessoas atrasa-se na permanente troca entre umas e outras: ora presumem a primazia da primeira sobre a segunda, ora descobrem o contrário!

A mim parece-me óbvio, que, tendo as coisas um peso difícil de mudar do pé para a mão, é menos realista mas mais tentador e fácil para os decisores de serviço agirem sobre as palavras – mais maleáveis e sedutoras ao ouvido do que coisas baças –, de forma a mudar os seus anteriores significados e/ou a sua aplicação a coisas diferentes, muitas delas em permanente mutação relativamente aos seus significados anteriores. No limite, trata-se de começar por mudar as palavras a fim de mudar as coisas no sentido desejado pelos donos ocasionais do poder. Em suma, mudar o vocabulário, a fim de quem detém provisoriamente o poder eleitoral mudar as coisas… de forma a esta última mudança assegurar, porventura, a manutenção dos manipuladores do vocabulário no poder!

Foi isto que denunciei na semana passada, a respeito de uma tentativa estatal de manipular a linguagem administrativa no sentido ideológico desejado pelo actual governo, em suma, um passo na direcção daquilo que Orwell (1948) designou outrora como a «novilíngua» soviética, homóloga à linguagem nazi! À nossa pequena escala, trata-se de uma tentativa do Conselho de Concertação Social para camuflar as diferenças objectivas entre sexos, que continuam a prevalecer do ponto de vista laboral, atrás da «novilíngua» que tem vindo a impor-se nos meios de comunicação social.

Quem duvide deste processo de pretensa des-sexualização linguística, cuja velocidade se junta à da despenalização da eutanásia mediante uma votação restrita no Parlamento mas que seria derrotada em referendo, basta que se dê ao trabalho de ler o brado entusiástico de uma conhecida deputada do PS acerca da mudança linguística em curso, bem como a violência ideológica com que a mudança está a ser promovida com a bênção do PS e consócios!

Além de uma permanente violência simbólica, sempre inquietante, por parte das «palavras» sobre as «coisas» e destas sobre aquelas, esta descarada campanha do PS, que tanto agrada ao BE, favorece deliberadamente uma «novilíngua» sem controlo nem respeito pelo conjunto de uma sociedade antiga e complexa como a nossa. Conduzida no segredo dos gabinetes e no palco de exibição parlamentar, tal campanha não deixará de ferir os sentimentos, como se dizia antigamente, de uma parte muito substancial do eleitorado.

Lamentavelmente, o brutal processo de submissão da população – primeiro com o isco de empregos e ordenados de baixo custo, como no turismo, depois com o terror da pandemia e das perdas de toda a natureza que esta acarretadesmantelou qualquer oposição eficaz. Com efeito, à parte os «micropartidos» surgidos nas últimas eleições, a velha oposição conservadora perdeu não só cadeiras no Parlamento como deixou de apresentar a expectável face de uma oposição compacta e determinada quanto a objectivos que essa oposição efectivamente já não tem ou já não é capaz de defender… Sem verdadeiro governo nem começo de oposição, resta o poder pelo poder e um inquietante palavreado ideológico no lugar das coisas concretas!

IGUALDADE   SOCIEDADE   RACISMO   DISCRIMINAÇÃO   IGUALDADE DE GÉNERO   POLÍTICA

COMENTÁRIOS

Luisa CS: Excelente artigo! pode continuar exemplificando...         Carminda Damiao: Obrigada por este excelente artigo.           Gil Lourenço: Que artigo excelente!          Fernando Fernandes: Como nada é imutável, há que identificar os novos traidores que subscrevem a novilingua para que oportunamente justiça possa ser feita. Nunca Orwell esteve tão actual. Não esquecer igualmente que o acordo ortográfico é parte desta novilingua.      Anarquista Coroado: Fez bem em lembrar Foucault: um dos principais gurus da mistura ideológica que se chama de Teoria Crítica.      Anarquista Coroado  > Anarquista Coroado: Rigorosamente falando, este novo movimento contestatário é um eclectismo de Teoria Crítica pós-marxista e de Desconstrucionismo Pós-Moderno, sobretudo de Foucauld e Derrida, exportados para os EUA e misturados com a atitude Calvinista.           josé maria: O BE, com a posição, de charneira, assumida nos caso dos apoios sociais, marcou pontos. O PS cometeu um dos seus maiores erros políticos. O resto são as habituais minudências da espuma dos dias, que servem ao escriba para algo nos dizer.            João Alves > josé maria: Ainda esperei que aproveitasse este artigo sobre linguagem para esclarecer a diferença entre denotação e conotação.          Gil Lourenço > João Alves: Muito bom! Esse zé maria é mesmo fanático esquerdista.           Manuel Magalhães: Objectivos da perniciosa esquerda, descaracterização da portugalidade e degenerescência dos costumes com o fim de desorientarem a população e assim melhor imporem os seus dictats! Não serve para nada mas serve para eles (esquerda)...             Jal Morgado: Perfeitamente de acordo com Manuel Villaverde Cabral: «Esta descarada campanha do PS, que tanto agrada ao BE, favorece deliberadamente uma «novilíngua» sem controlo nem respeito pelo conjunto de uma sociedade antiga e complexa como a nossa». Os marxistas não olham a meios para atingir os seus fins...          João Alves > Jal Morgado: A manipulação da linguagem é uma das componentes da estratégia hegemónica dos neo-marxistas populistas de inspiração gramsciana.  bento guerra: A "deslíngua"só aparece porque jornalistas e locutores a promovem. Há uma cobardia cultural, de quem vendeu a alma e a ética          Adelino Lopes: Como concordo. A “novilíngua” (e os censores que para ela trabalham) é do mais repugnante que a democracia e a liberdade conhecem.            Maria Nunes: Excelente e oportuno artigo. 

 

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