quarta-feira, 14 de abril de 2021

O pão da nossa consistência


Mais um texto – este de Maria João Avillez, com o seu humor e sabedoria habituais – sobre o caso do nosso actual clamor justiceiro. Só me lembrei do Júlio Dinis, como comentário de apoio. É de um texto retirado de “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, sobre o fabrico do pão caseiro, como aquele a que eu também assisti na minha infância. Ana do Vedor, mãe do Clemente, falava com Maurício com a costumada energia e interrompeu o seu diálogo para ela própria rematar o trabalho que as moças ajudantes desenvolviam morosamente:

«”Ó raparigas, então esse pão ainda não está amassado?”  E não lhe sofrendo a impaciência de ânimo e inacção, aproximou-se da masseira, e afastando as moças que lhe cederam o lugar com deferência, remexeu, com o vigor dos seus desenvolvidos músculos, a massa que, sob tal motor, cedo adquiriu a consistência precisa. Depois amontoou-a alisou-a, traçou-lhe em cima com a mão uma cruz e murmurou: “ S. Vicente te acrescente S. Mamede te levede”. Cobriu-a com a baeta, e depois acrescentou, voltando-se para a sua gente: - “Ora aí o têm; agora olhem-me por esse forno, que são horas”.»

Assim amassamos nós a nossa justiça. Com o vigor da Ana Védor. E com S. Vicente a acrescentar e S. Mamede a levedar. Até ao pão seguinte, ou seja o caso, o forno sempre bem aquecido…

Os convictos e os inconsoláveis /premium

O caso divide o país transversalmente. É errado radiografá-lo à esquerda ou à direita. Não é todos os dias que se atira um processo ao chão com “deficiências” tão estrondosas.

MARIA JOÃO AVILLEZ     OBSERVADOR, 14 abr 2021

1Tantos equívocos, quantos enredos. Desgraçadamente, o Portugal da opinião publicada (o outro não sei e tenho pena de não saber) lembra um gigantesco Benfica-Sporting. De um lado, os inconsoláveis “acusadores” de Sócrates, que queriam mais sangue, do outro, os tão convictos defensores das decisões de Ivo Rosa, reduzindo, assim, com a leveza de uma valsa bem dançada, a questão do terrível estado da Justiça portuguesa a um combate quase escabroso. Como foi possível que o pilar essencial do Estado de Direito se tenha despenhado deste modo pelas suas próprias escadas abaixo, mesmo sendo certo que já as tinha começado a descer há muito?

Se há questão, por natureza, acima de qualquer outra, é a Justiça; se há gente que nos exigiria respeito automático, são os seus oficiantes; se há símbolo que por si só nos deveria transmitir confiança, são aquelas duas balanças. Deixou de acontecer uma coisa, e outra, e outra. Pobres de nós.

2Em vez de Justiça confiante e confiável há um terreno pulverizado. Não é, porém, de hoje, o daninho adubo nem de agora as piores suspeitas. O que é de hoje é a gelada constatação, a olho nu e ouvido agudo, do mal a larvar assim: impune, corroendo a Justiça e corrompendo o seu próprio tecido onde esgrimem sem piedade nem responsabilidade os seus diversos protagonistas. Do mal, sim. Para muitos, talvez quase todos, o mal seria Sócrates ele próprio, mas não é nele em quem penso neste momento. (José Sócrates apenas deu azo e razão aos que há muito o acham um produto de uma mente desconjuntada e doentia e que melhor prova disso, que o alucinante show que ele produziu, realizou e interpretou à saída da sessão instrutória?)

Não, o que me interpela, aflige e envergonha é o factor Justiça: o seu estado de saúde, a noção quase física, concreta, real, da indiferença que provoca a sua doença, a paulatina eternização de um malsão estado de coisas.

3Só há dois juízes, dois (quem não sabe, que pasme!), de instrução criminal… E se não desse vontade de chorar a assombrosa normalidade com que o próprio universo judicial convive com tão modesto número de juízes disponíveis para tão pesada função, daria uma hilariante vontade de rir. Os dois chamam-se Carlos Alexandre e Ivo Rosa e, azar nosso e actividade a deles, odeiam-se entre si, “desconfiam-se” e torpedeiam-se. Depois, há uma lendária, embora, infelizmente, também carnivoramente real guerra civil entre o Ministério Público e Ivo Rosa e vice-versa. Guerra dura, crua e antiga. Não se consideram nas respectivas funções, descrêem nos respectivos métodos de trabalho, o desprezo e a acidez escorrem das páginas e dos écrans onde escrevem. Depois ainda, muitos dos advogados que costumam defender os ricos e poderosos, ou só uns, ou só outros, militam também –  e audivelmente – contra o Ministério Público, a quem todos os dias acusam de tudo, das deficientes instruções que fazem os seus procuradores às fugas de informação, passando pelos supostos favores que fazem aos seus eleitos na media.

Mas – dizem alguns desses causídicos – “preferem” ter pela frente Ivo Rosa, que consideram mais “urbano” e frequentando meios “sofisticados”, em detrimento de Alexandre, um “rústico das Beiras”, a quem, por isso, olham com mal disfarçado fastio.

E last but not least, há, como uma sombra negra, a terrível e temível burocracia, pairando inamovível sobre o céu deste infeliz terceiro poder. Tentacular monstro que se amplia na razão inversa da celeridade exigida ao normal funcionamento das coisas.

Se acham que exagero ao considerar isto – como considero – um universo explosivo, talvez concordem que ele é, pelo menos, pouco recomendável. Deixa-nos inquietos e descrentes. E com medo, claro: e se fosse connosco? (Mas foi connosco: José Sócrates geriu o país onde nasci, levando-o directo ao abismo; Ricardo Salgado fez sumir as legítimas “reservas financeiras” de milhares de portugueses, cuidadosamente postas de lado para “um  dia que”…  um dia que fosse preciso acudir a alguém, assegurar uma velhice digna, cuidar de uma doença, dar uma casa a um filho, albergar uns pais idosos. Cada um desses Portugueses que confiaram,  já se arrependeu, estou certa, de ter confiado e… pode dizer-se pior? Não pode.)

4Ainda só vimos o primeiro acto desta novela, já requentada antes de tempo por ter passado tempo demais. E apesar de haver matérias já a andar –  não se sabe é se a passo, se a galope -, a caminho de um  julgamento, a segunda parte é mais incerta. E o desfecho também, apesar das certezas já entretanto disparadas por ambos os lados da guerra em curso. Mas não sabendo o fim, sabemos o essencial: está em falta na Justiça um bem de primeiríssima necessidade chamado confiança. Ser confiável seria, aliás, o único adjectivo permitido à Justiça, o único, justamente, que ela se deveria exigir a si mesma. Cega, surda e muda. Tudo o que não é. (Ainda há meses, a própria titular da pasta da Justiça não hesitou em fazer de conta que o resultado de um concurso para um cargo europeu não tinha sido ganho por quem foi, mas por quem ela queria que tivesse sido. E conseguiu: o falso vencedor lá abalou para Bruxelas, com o resultado que se sabe: a pública humilhação da real vencedora, face a uma plateia de Portugueses estupefactos. Justiça?)

Por isso falei de “mal” para além de José Sócrates e dos outros. O mal é, evidentemente, indesligável dos seus actores, mas dada a incredibilidade que rói o mundo judicial, consegue estar para além deles. O caso deixa mossa, dividiu o país e dividiu-o transversalmente. Não é todos os dias que um processo é atirado ao chão com “deficiências” tão estrondosas. Engana-se, por isso, quem olhar para o caso arrumando-o na gaveta da direita ou na prateleira da esquerda. Sim, vai deixar mossa e marca, terá consequências. O país a braços com a sua penúria, uma pandemia com vacinação, digamos, intermitente, uma classe política em acelerado downgrading e uma classe económica pobreta (e nem sequer alegreta…) dispensava bem um extra deste calibre.

5António Costa nem fez bem, nem fez mal, fez igual. Já tínhamos visto, a receita é única desde o  início: é como se não fosse nada com ele nem com o PS, nem sequer com um parente afastado da família socialista. Como se não conhecessem Sócrates e, ainda menos, como se nunca tivessem com ele partilhado o poder, as ambições, as escolhas, as decisões.

Houve o que houve, mas não houve mea culpa, uma comunicação ao país, um pedido de desculpa, um sinal de arrependimento, surpresa, espanto, aflição. Nem um som, em tantos anos.

Outra vergonha.

6A Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, que compreende “alguma perplexidade e o desconforto” face a tudo isto, considera que pode ser este “o momento para reflectir e aprofundar certas temas que estão em cima da mesa”. Daqui e com todo o respeito, pergunto à Sra. Procuradora: pode mesmo?            JUSTIÇA   OPERAÇÃO MARQUÊS   JOSÉ SÓCRATES   POLÍTICA

COMENTÁRIOS:

António Sennfelt: Todo o nosso aparelho de "Justiça", desde o TC até ao seu mais modesto serventuário - sem esquecer, é claro, os nossos senhores deputados e o seu diligente afã em não aprovar legislação criminalizando o enriquecimento ilícito - precisa de uma grande e urgente barrela!      Manuel Magalhães: Pois Maria João, é exactamente isso, o principal mal são as nossas leis (vide nosso parlamento) feitas propositadamente para que haja sempre uma escapatória para quem possa pagar a bons advogados, não quero com isso ilibar o tal Sócrates mas penso que ele ou é apenas um demente mental que não tem a noção do que diz e do que faz, ou um simples burlão sem qualquer vergonha e que não olha a meios para atingir os seus fins ou até ambas as coisas, o problema para todos nós é ele ter sido primeiro ministro e de quem o pôs lá que também demonstra uma incrível irresponsabilidade...          advoga diabo: Alguém tem que contar a MJA que actualmente o mundo é um imenso Porto/Benfica, permita-se-me alargar a clubite para além de Cascais e arredores...Salva-se da mesquinhez da análise a constatação incontornável, apesar de repetido ad nauseam, que o povo não está esmagadoramente convencido da culpa de Sócrates.          Maria Clotilde > Osório advoga diabo: Desengane-se. O povo que eu conheço, mesmo os adeptos do FCP como eu, não metem as mãos no fogo nem pelo Pinto de Sousa nem pelo Pinto da Costa. Até o Fernando Madureira sabe que não há fumo sem fogo.          FME > advoga diabo: E por falar em Porto/Benfica, já há pouca gente que não vê um penalti na transacção de fotocópias. Até o Medina, e quando se fala no Medina, podemos ver a sombra de Costa por trás, chegou à conclusão que a rasteira de Sócrates é um penalti flagrante!  Agora, haverá sempre aqueles que vendo, não querem ver!             Maria Clotilde Osório: "Ainda a procissão vai no adro" e: 1 - ficamos a saber dum acórdão do TC de Jan/2019 que estabelece que o prazo de 5 anos (estabelecido na lei pelos deputados, suponho) para prescrição de um crime de corrupção começa a contar a partir da data em que é combinado entre as partes (ver artigo de João Miguel Tavares). 2 - ficamos a saber que, como dizia o "saudoso" Almeida Santos a propósito do caso FP 25/A, não vale a pena amnistiar ninguém porque as próprias leis feitas na AR para o nosso sistema judicial acabarão por se encarregar disso  3 - ficamos a saber que quem, no exercício de um cargo público, mercadejar, não comete fraude fiscal ao não declarar esse rendimento ao fisco. E eu que achava que devia passar factura e pagar IVA de todo o dinheiro que recebo por serviços prestados! Vou deixar de o fazer e, se for apanhada, invoco a decisão instrutória do juiz Ivo.  Se isto é a procissão no adro, imagino o que vai ser quando chegar a meio do caminho. Quanto a este e outros senhores, eleitos pela 4a vez, só me ocorre o dito: À primeira cai quem quer, à segunda quem quer cai, à terceira só quem é burro        FME: Em todos os serviços do mundo existem divergências entre colaboradores (trabalhadores). Nas redacções dos jornais certamente que existem divergências viscerais. Na redacção do Expresso, o articulista Henrique Raposo não deve ser companheiro de café do Daniel Oliveira. A Mariana Mortágua e André Ventura terem um filho seria como ver a famosa vaca de António Costa a voar. Mas até dentro da mesma casa, não imagino um convívio de cervejolas e tremoços entre Marcelo e Passos, ou entre Costa e o ministro da TAP. Na construção civil, o meu meio, muitas vezes destas divergências acabam à “castanhada”, mas curiosamente, nunca, mas nunca assisti a um colaborador boicotar o trabalho do outro por divergências pessoais. Nunca vi um canalizador rebentar às escondidas com os cabos do electricista, ou o pedreiro tamponar os tubos do canalizador com cimento. Há situações de trabalhadores que não se falam há anos e que colaboram os dois a montar um andaime, por exemplo. Portanto, na minha opinião, a divergência entre Ivo Rosa (IR) e Carlos Alexandre (CA) pode ser aceitável, natural e até saudável, o que não pode acontecer, e não é tolerável, é um boicotar o trabalho do outro por questões de ego ou pessoais. Ivo Rosa boicotou com o despacho o trabalho do MP, é um facto. Possivelmente já houve um passado recente em que o MP ou CA também boicotaram o trabalho de Ivo Rosa. O trabalho não pode servir como campo de batalha, e alguém, acima destes jogos de egos tem de saber colocar os pontos nos iis, meter os dois na rua, se for o caso. O exemplo do andaime que dei é verdadeiro. Os dois trabalhadores que não se falavam eram irmãos que se zangaram por causa de, imagine-se, partilhas. Se a razão da zanga recaísse sobre a montagem do andaime, os que depois iriam trabalhar nele é que sofreriam as consequências. Mas a plebe das obras, que não faz parte de nenhum grupo prioritário para a vacinação, funciona com códigos de honra, que nunca permitiria que se boicotasse um trabalho por divergências pessoais. Uma das razões, é porque o trabalho é o seu ganha-pão, e no dia em que o trabalho for o campo de batalha, eles sabem, que o pão começa a faltar na mesa! Mas para além disso, nunca iriam permitir que os outros é que pagassem por causa da divergência deles.           josé maria: Ainda a procissão vai no adro e as aves agourentas já fazem sentenças definitivas sobre um processo que ainda acabou de sair da fase instrutória... Já tem no nome José e Maria... Só lhe falta Jesus, para o idílio crédulo com a justiça nacional ser completo... Se há algo em Portugal que raras vezes foi omissa ou negligente por acidente ou por acaso, foi a justiça... É vício com capa de virtude vai para séculos...           António Lamas: Pois é MJA, mas o mal começa no parlamento onde são aprovadas leis propositadamente complexas e dúbias, a maior parte produzidas nos grandes escritórios dos advogados do regime, e sempre a favor dos seus ricos clientes (sempre os mesmos). Lembram-se da história da vírgula?          rita Taveira: A todos os comentários que aqui se fazem aos artigos publicados, deviam os seus autores, a exemplo do que fazem os articulistas, ser identificados pelo seu nome verdadeiro. É uma questão de justiça. Vamos chamar os bois pelos nomes.          Madalena Magalhães Colaço: Diz a Maria João que há uma classe política em acelerado downgrading, não, há muito que já não existe uma classe política mas sim uns administrativos que tomaram conta do poder e que agora auto alimentam-se bloqueando tudo para de lá não saírem. Aos políticos exige-se que tomem decisões e riscos. Hoje em Portugal ninguém corre riscos, nem os políticos nem os erradamente chamados capitalistas. Há sim uma política de conivência em que o estado apoia com garantias os erradamente chamados privados. Estes não arriscam o seu capital, antes tem garantia do estado que se o negócio correr mal o estado apoia, veja-se o que se passa com os negócios das energias renováveis em que os privados não correm riscos, e claro que Sócrates lá estava. Esta conivência entre estado e falsos capitalistas levou a que fossemos obrigados a injectar na CGD 5 mil milhões e no BES ainda mais onde pelo meio uma PT ficou em estilhaços, e nós portugueses a pagar esses desmandos, mas Ivo Rosa não consegue ver nada, nem na CGD nem na PT nem em lado nenhum, mas nós estamos aqui a pagar através de impostos elevadíssimos.  O MP, usando e abusando da tradicional credulidade do portugueses, tentou normalizar e introduzir um unicórnio na realidade nacional... Correu mal...

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