domingo, 11 de abril de 2021

Struggle for life


A raspadinha é um engano. Um vício. Uma armadilha. Um erro. Mas… Errare humanum est. De vez em quando, para alimentar a ilusão...

OPINIÃO

Raspadinha do património: é isto um governo socialista?

Estamos a empurrar para cima das classes E e D a preservação dos monumentos nacionais, esmagadoramente frequentados pelas classes médias, e que, como é óbvio, deveriam ser pagos pelos impostos de todos.

JOÃO MIGUEL TAVARES

PÚBLICO, 3 de Abril de 2021

Há uma semana, o PÚBLICO dedicou quatro páginas à nova raspadinha do Património Cultural, uma daquelas decisões do governo que, pelo seu simbolismo, devia estar a causar um escândalo nacional. Infelizmente, não está. Já houve gente a escrever sobre este tema, como Luís Aguiar-Conraria (“Como pôr os mais pobres a pagar mais impostos? A Santa Casa da Miséria explica”) ou Daniel Oliveira (Raspar o pobre”), e eu junto-me às suas vozes para sublinhar a incrível hipocrisia de um governo, alegadamente socialista, se atirar à carteira dos pobres não para ajudar outros ainda mais pobres – devia ser esse o trabalho da Santa Casa da Misericórdia –, mas para reforçar o Fundo de Salvaguarda do Património Cultural. Estamos a empurrar para cima das classes E e D a preservação dos monumentos nacionais, esmagadoramente frequentados pelas classes médias, e que, como é óbvio, deveriam ser pagos pelos impostos de todos. Com a nova raspadinha do património, o governo de António Costa está a tirar aos pobres para dar aos ricos.

Isto não é uma opinião. São factos, justificados por números recolhidos pela própria Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, relativos a 2019, que o PÚBLICO divulgou há uma semana. É este o perfil dos jogadores de raspadinha em Portugal: 50% são da classe E (classe baixa); 26,6% são da classe D (média-baixa); 10,3% da classe C (média); e 13,1% da classe AB (média-alta/alta). Ou seja, três em cada quatro jogadores são pobres. Apenas um em cada dez jogadores é rico. E é através de um jogo com este tipo de perfil que a ministra da Cultura, grande adepta dos “drinks de fim de tarde”, planeia recolher cinco milhões de euros anuais. Pergunto: é isto o socialismo? São estes os grandes princípios sociais do PS? 

Aquando da apresentação desta medida, Graça Fonseca ainda teve a suprema lata de dizer que o objectivo do governo era não apenas salvaguardar o património cultural e sacar mais umas massas para os depauperados cofres da Cultura, mas – podem colocar o hino nacional a tocar – “envolver todos” os portugueses num desígnio comum, “para que cada cidadão se sinta parte da missão nacional de preservar o património”; para que “cada um de nós se sinta parte de algo que tem de ser de todos”. Palavras tão lindas, dignas do xerife de Notthingham.

No final de Fevereiro, o Expresso divulgou um estudo de dois professores da Universidade do Minho sobre o vício da raspadinha em Portugal, centrado no ano de 2018. Os autores constataram que, só nesse ano, os portugueses tinham gasto perto de 1,6 mil milhões de euros em raspadinhas. Nada mais, nada menos, do que 4,4 milhões por dia, o que representa um crescimento assustador face ao início da década (100 milhões de euros em 2010), e demonstra que a raspadinha é jogo de pobres, mesmo. Em Espanha, um país com 46 milhões de habitantes, foram gastos cerca de 600 milhões de euros em 2018. Três vezes menos.

E, no entanto, quando o PÚBLICO foi ouvir o provedor da Santa Casa, Edmundo Martinho, sobre o tema da raspadinha, a única coisa que encontrou foi a desvalorização do vício e do problema. Infelizmente, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa está transformada numa agência de emprego de boys e girls socialistas, como ainda esta semana demonstrava a revista Sábado (“Nomeações na Santa Casa: a grande e santa família”), e, portanto, as necessidades do governo têm clara prioridade em relação às necessidades dos mais pobres. Uns raspam – os outros ficam com o prémio.

Jornalista

TÓPICOS

JOGOS SOCIAIS  PATRIMÓNIO  SANTA CASA DA MISERICÓRDIA  ANTÓNIO COSTA  GRAÇA FONSECA  EDMUNDO MARTINHO  CULTURA

COMENTÁRIOS

Joao Garrett  EXPERIENTE: Excelente artigo. Como sempre, o PS no seu melhor!     Jorge Sm MODERADOR: Pergunta o JMT se “isto é um Governo socialista”. JMT escreve uma crónica para nos dizer que isto não é socialismo. E é o quê? Do totobola criado no tempo do salazar aos mais recentes jogos criados pela Santa Casa, incluindo a “raspadinha” criada no tempo do Cavaco Silva, qual a ideologia política associada a todos eles? Qual é a ideologia política do jogo? Uma crónica sem pés, nem cabeça.          ganso.baraoINICIANTE: Neste caso a questão que se põe não é o produto em si mas sim o uso que se lhe dá.     Jorge Sm MODERADOR: O uso que se dá sempre foi o mesmo: o jogo como co-financiador de serviços públicos. E os clientes principais dos jogos da Santa Casa sempre foram classes mais pobres. Desde sempre. Já era assim com o totobola, quando era o único jogo que existia.          OldVic1  MODERADOR: Pois, mas agora introduz-se uma nova classe de beneficiados: as classes subsidiadas da "cultura" e populações associadas, através de um mecanismo de dependência psicológica que afecta sobretudo os mais desfavorecidos. É um símbolo perfeito de um Estado cuja regra de ouro é ir buscar o carcanhol onde puder, como puder e quanto puder; e se isso tornar os pobres mais pobres, temos pena.         Jorge Sm MODERADOR: As habituais indignações selectivas de JMT. A raspadinha foi criada por um governo de direita, com objectivos declarados que são os mesmos de hoje. Durante tantos anos, parece que não causou indignação nenhuma a JMT, nem nos negros tempos da "troika" e do governo de passos coelho. A indignação em JMT nasce por ser o governo do Costa. E omite, claro, que se trata de criação de um governo de direita, se calhar para que as pessoas concluam que foi ideia do Costa. Ou, se calhar, JMT está a querer dizer que estas "imoralidades" são normais quando o governo é de direita...          Carlos Diogo  MODERADOR: A raspadinha para suportar I ministério da cultura no seu orçamento não foi criação do Passos. Por essa situação ordem , o Passos tb não criou impostos , já existiam antes e o culpado foi o um rei qq que criou em primeiro lugar           Jorge Sm MODERADOR: Isso são lérias. Isto atravessa todos os governos e se fosse um Governo PSD/CDS o JMT podia escrever uma crónica igual e perguntar “é isto um governo social-democrata?” e “é isto um governo democrata-cristão?”. O que está em causa aqui é a velha questão polémica do jogo. Deve-se proibir, preferindo-se que o jogo vá para a clandestinidade e para o crime? Não se proibindo, é preferível ser o Estado a patrociná-lo, com regras e benefício para a comunidade? O que preferem os liberais? Serem os privados a patrocinar o jogo, ou seja, as pessoas gastam o mesmo dinheiro no jogo, mas o lucro vai para os bolsos de alguns? Tudo isto é controverso e não tem respostas óbvias. Reduzir isto a uma questão de ser PS vs. outros partidos é conversa ridícula para enganar totós.          jorge morais  INICIANTE: Jorge Sm sempre a sonhar com Passos Coelho. Se aquilo que ele criou para pagar a bancarrota de Sócrates foi errado, que tal Costa, que herdou um país com as contas na ordem, ainda não acabou com as raspadinhas e segundo consta até vai criar uma para a Cultura? Que tal dar a ideia lá no Largo do Rato? Não é só receber ordens, dê também uns bitaites lá no partido e deixe de ser fanático.         Nuno Silva  INICIANTE: O património deve ser sustentado na maior parte pelos impostos de todos, e nalguma parte por mecenas. Não se devem usar as raspadinhas, que se estão a tornar numa droga viciante (tal como os jogos de apostas online), e um problema de saúde mental em Portugal e nos outros países.       Mário Guimarães  EXPERIENTE: Meu Deus ao que isto chegou. Usar um jogo que se raspa, para ver se tem prémio por um senhor, ou senhora mal vestida com ar de pobreza estampada no rosto para manter o nosso património em condições. Estamos no nosso perfeito juízo? Não temos quem fale connosco (um padre por exemplo) que nos diga "não faças isso)..         O fantasma Gaspar INICIANTE: Em Portugal fomenta-se a sorte...não o trabalho honesto.          finas EXPERIENTE: Sem dúvida. Para que trabalhar se o dinheiro aparece na mesma ao fim do mês.          finas EXPERIENTE: Acho que o JMT poderá não estar a ver a totalidade da questão. Efectivamente são os pobres que mais gastam dinheiro em raspadinhas, mas de onde vem esse dinheiro em primeiro lugar. Será de subsídios? Se assim for, acabamos por ser todos nós e os que ainda não nasceram a pagar por elas.       A2  EXPERIENTE: Acho que falta é dizer qual é a fracção daquelas classes na população. É claro que há mais pobres que ricos, afinal somos os 99%.          Carlos Diogo MODERADOR: O problema é que esses dois ou três euros diários deveriam ser usados para alimentar melhor os filhos ou para terem melhores condições de vida          finas  EXPERIENTE: Concordo Carlos. Eu acho é que não é a distribuir dinheiro às pessoas que se criam melhores condições de vida de forma sustentada. Sem dúvida que o dinheiro dá jeito, o problema, é que o dinheiro fácil não transforma os pobres em ricos. Transforma os pobres em pobres dependentes de ricos. E os ricos não duram sempre, como se vê em Portugal. Estamos já a endividar portugueses que ainda nem nasceram porque já não temos ricos suficientes para sustentar o país. É criando escolas, hospitais, justiça célere, enfim, usando o dinheiro dos impostos em obras que beneficiem todos ao longo de muitas gerações ao invés de o gastar em algo (dinheiro) que depois se esfuma num momento ao ser usado para comprar raspadinhas.          viana EXPERIENTE: Poucas vezes concordo com JMT, mas nisto estou totalmente de acordo. Pena que não vá mais longe e defenda a ilegalização de todo o jogo a dinheiro. Ou não há vício entre quem joga nos outros jogos da Misericórdia ou nos Casinos?... Não há qualquer justificação para tais actividades serem legais.      finas EXPERIENTE: Talvez a justificação de que as pessoas têm o direito de fazerem o que bem entenderem com elas e com o que é delas desde que isso não se intrometa com o direito dos outros?        X5 EXPERIENTE: " A 31 de julho de 1995 foi lançada a Lotaria Instantânea, com o principal objectivo de financiar as políticas sociais do Estado com particular abrangência nas áreas da Saúde, Solidariedade Social, Desporto e Cultura. " (Sendo primeiro ministro à data Aníbal Cavaco Silva ) " Em Março de 2010, a Lotaria Instantânea assumiu uma nova identidade, sob a marca comercial “Raspadinha”. Nesse mesmo ano, foi lançado um jogo (nº 151) com o mesmo nome – Raspadinha –, que assinalou a introdução de mais e melhores prémios, previstos após as alterações fiscais já efectuadas, em Outubro de 2009, nos jogos sociais do Estado, quando os prémios dos jogos deixaram de ser tributados em sede de IRS." Imputar o jogo da raspadinha aos socialistas é no mínimo fraudulento e manipulador.        francisco cruz  EXPERIENTE: JMT, estou em desacordo consigo, no que toca a nomear socialista este ou outro governo com matriz do Partido "Socialista" - isto vale também para o PCP. As organizações políticas que se auto-nomeiam de esquerda, são ponta de lança essencial para manter o status quo capitalista impoluto, ou seja: uma grandiosa mentira para incautos. Quanto à Santa Casa da Misericórdia e suas congéneres, deviam ser controladas com mão férrea por uma comissão independente. Durante 2 anos pratiquei voluntariado na Santa Casa da Misericórdia, o que presenciei exaustivamente nesses 2 anos foi decisivo; desenvolvi enérgica aversão a esse tipo de organização falsamente solidária com a pobreza alheia. A única solidariedade é entre-portas para engordar mais e mais o incomensurável património.         ATV EXPERIENTE: O problema é a inexistência de uma lei de mecenato a sério. Desde quando é que se paga por visitar museus em Londres, NY ou Washington? Paga-se em Lisboa, onde as pessoas simplesmente não têm recursos para o fazer. Aliás, o mecenato nos demais países é visto como uma obrigação ilustre que permite não só manter as estruturas e o seu funcionamento, como promove a visita dos mesmos por todos. Mas aqui não: são os mais pobres a pagar por aquilo que serve aos menos pobres. É uma vergonha completa.       Luis_Morgado EXPERIENTE: Isso mesmo, ao mecenato acrescento o voluntariado. Na América do Norte, por exemplo, o trabalho voluntário em instituições culturais, é visto como uma coisa séria onde jovens e mais velhos contribuem para a comunidade com profissionalismo, orgulho e dedicação. ramalheira63 INICIANTE: Faz prática dos Governos da 3ª República Portuguesa, especialmente os do século XXI, tirar custos ao Estado, escondendo-os das mais diversas formas. É o caso em causa. Mas é um escândalo utilizarem a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, organização criada em 1482 por D. Leonor viúva do rei D. João II para prover o tratamento e sustento de enfermos e inválidos e dar assistência a "expostos" ou seja recém-nascidos abandonados, para o efeito. Mas um precedente já tinha sido aberto quando a Santa Casa ajudou a resolver os problemas do banco Montepio criados pelos seus gestores, isto no governo socialista de António Costa. O Zé do Telhado, no século XIX, roubava os ricos para dar aos pobres, agora, no século XXI, roubam-se os pobres para dar aos ricos.         João Pereira INICIANTE: A ideia até nem é original. É a lotaria que em Inglaterra paga muita recuperação de património, compra de obras para museus, aquisição de bens móveis e imóveis que dizem respeito à história da Inglaterra etcetera etcetera. E não são as marquesas inglesas que jogam na lotaria... como muitas vezes, nesta crónica, lá está o pé a fugir para a chinela. Não é crónica é crónico. OldVic1  MODERADOR: A casta que nos suga há séculos é agora socialista pelo simples facto de que a situação é socialista. Essa casta já foi salazarista, republicana, monárquica, "liberal", absolutista, feudal, e por aí fora até 1143. O que conta é manter o seu acesso à pouca riqueza que o povo consegue criar apesar dos esforços da dita casta para o impedir de o fazer.        Mario Coimbra INFLUENTE: Excelente crónica. Não só concordo como vou partilhar. É de facto um escândalo. Obrigado e cumprimentos. Luís Azenha Bonito EXPERIENTE: Do princípio ao fim da sua exposição, JMT, à excepção de um ou outro detalhe que não acrescentaria valor, trata-se de uma lição magistral sobre a redundância da pobreza. É grotesca, verdadeiramente grotesca, a argumentação de Graça Fonseca. Impossível não estar inteira e honestamente de acordo consigo, JMT. EXPERIENTE: Infelizmente há muitos anos a Santa Casa se tornou mais uma das empresas públicas, que por ser rica, serve propósitos sociais mas também políticos e partidários. A raspadinha prova que o vicio, nasce do analfabetismo de uma cultura de irracionalidade financeira, que é apanágio do povo português. Discordo da obsessão com a raspadinha cultural: não foi por criar uma nova forma de jogo que surgiu o problema do vício. E se o jogo arruina vidas, ou se proibe e persegue todo o jogo a dinheiro, ou que se mantenha no controlo do estado. Para mim não faz sentido o governo manter os casinos on-line, ou sites de apostas, por exemplo.    Vasco Ferreira.888089 INICIANTE: Sejamos práticos. A ilusão e possibilidade, embora ínfima, que a raspadinha traz ao quotidiano do comum cidadão, serve como máscara de forma a camuflar os dividendos úteis que daí advêm dos crentes. O socialismo, apesar de ser alicerçado por correntes dotadas de nobrezas e solidariedade, em nada difere com os restantes modelos, valorizando os fins independentemente dos meios  ricardo.andre INICIANTE: A raspadinha deveria ser proibida. É um mau jogo, apenas feito para viciar. A2  EXPERIENTE: Discordo. Se não houver jogos legais, passa a haver ilegais, e o estado não ganha nada com esses. O jogo é o desespero do pobre; se não tem dinheiro, tempo ou inteligência para investir na sua educação ou num negócio, estes jogos, ainda assim não viciados (!), são a melhor, se bem que remota, hipótese de um pobre sonhar com dias muito melhores.    graça dias EXPERIENTE: @A2 - A sua analogia sobre o tema/problema aqui em foco é de uma pobreza e mediocridade intelectual confrangedora.      Miguel Leitão 77  INICIANTE: Caro A2, este comentário é o típico pensamento de esquerda burguesa: Coitadinhos dos pobrezinhos, deixem-nos estar entretidos, eles assim podem sonhar, não têm inteligência para mais... Ah e se não conseguimos impostos com outros vícios, vamos sacar com este.

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