Cinematográfica, desta vez, não a que se
propôs no primeiro Modernismo, de cambalhotas no discurso, pelo menos no que
toca a certos ismos, tais como paulismo, que não vêm ao caso. Trata-se, neste
caso, da politização do cinema, com as temáticas bem confortadas com os apegos das
fraternidades democráticas, como se viu com o filme português galardoado, o que
nos enche de orgulho. Uma excelente análise de Patrícia Fernandes, thank you.
A politização da arte
A crise da arte chegou aqui: já não discutimos o objecto
em si, mas as identidades dos artistas e a necessidade de as regras no mundo da
arte responderem a exigências identitárias.
PATRÍCIA FERNANDES Professora
na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 03 jan
2022
É
possível que tudo tenha começado em 1917, quando um artista francês apresentou um urinol como
peça artística na primeira exposição organizada pela Sociedade de Artistas
Independentes, em Nova Iorque. A
Fonte, assinada por R. Mutt, não chegou a
ser exposta, mas o seu criador tornou-se uma referência incontornável na
história da arte contemporânea. A palavra “criador” é, na verdade,
ambígua: esta, como
muitas outras peças de Marcel
Duchamp, consiste
num readymade,
isto é, um objecto do quotidiano elevado à categoria de objeto de arte. Ficava dado o impulso para a designada arte conceptual, que
se desloca do objeto para o conceito que o artista pretende convocar e que
permitirá obras tão peculiares como 4’33’’ do compositor John Cage, de 1952; a do artista
italiano Piero Manzoni, de
1961, elucidativamente designada Merda d’artista; a instalação de Guillermo Vargas, que apresentou um cão
faminto numa galeria em 2007; ou, em 2021, a de Salvatore Garau, que conseguiu leiloar por
15 mil euros uma escultura…invisível.
Dados
os exemplos, não é difícil compreender a longa polémica em torno da
arte contemporânea e o seu desvio dos tópicos que ocuparam os filósofos da
época moderna, com as ideias de belo e sublime a ficarem relegadas para segundo
plano. Ainda assim,
continuámos no domínio daquilo que designamos como reflexão estética e que tem
como alvo o objecto artístico. Não que isso seja fácil de definir. Os
estudantes de filosofia sabem que a questão estética central é, precisamente, a
de saber o que é a arte.
Se, até ao final do século XIX, arte era
entendida como representação, desde
então as ideias de emoção e
forma disputaram
a sua definição: estaríamos
perante um objecto de arte se ele for capaz de clarificar e
individualizar emoções específicas (R. G. Collingwood) ou
apresentar uma forma significante (Clive Bell e o formalismo do Bloomsbury Group).
O momento sísmico de Duchamp abriu brechas no entendimento formalista que era
prevalecente na crítica artística; no entanto, foi o
período entre guerras a reconfigurar o entendimento de arte: esta passou a
determinar a imagética dos movimentos totalitários e a ser utilizada como meio
de propaganda política. Gabriele D’Annunzio é
disso um bom exemplo, inaugurando o
movimento protofascista. Mas pensemos
igualmente em Filipo Tomaso
Marinetti e as ligações entre futurismo e fascismo italiano; Sergei Eisenstein e o cinema soviético; ou Leni
Riefenstahl e Albert Speer, com os seus contributos para o regime nazi. George Orwell,
no ensaio “As fronteiras entre a arte e a
propaganda”, diz-nos que este período
“prestou um grande serviço à crítica
literária, porque destruiu a ilusão do esteticismo puro. Relembrou-nos que a
propaganda, de um modo ou de outro, se esconde em todo o livro, que toda a obra
de arte tem um significado e um propósito – político, social e religioso – e
que os nossos juízos estéticos são sempre afetados pelos nossos preconceitos e
crenças. Pôs a nu a arte pela arte.”
Contudo,
ele conduziu-nos, simultaneamente, a um beco sem saída, pois gerou uma resposta
filosófica perversa, representada pelas palavras de Walter Benjamin: “Essa é a situação da estetização da
política que o fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a politização da
arte.”
Foi
esta politização da arte a marcar as últimas décadas no ocidente, com uma
subordinação do objeto estético a funções políticas, e que tem sido
particularmente explorada pelos movimentos políticos que, desde os anos 60 do
século XX, vêm defendendo o princípio de que o pessoal é político. As consequências ao nível artístico são evidentes:
o valor do objeto passa a estar no propósito político
que ele visa e não na competência artística.
Esta
tendência é particularmente evidente no cinema e o recente filme português Listen revela-se
um bom exemplo: premiado na
77.ª edição do Festival de Veneza, o seu reconhecimento é
justificado pela abordagem às questões sociais e reforçado com o destaque
dado pela própria realizadora às questões levantadas pelo filme. Esta
valorização política do cinema transformou a noção de sétima arte e tem
legitimado a produção de filmes de activismo social, com um descurar das
competências técnicas dos intervenientes – o que
interessa é o modo como os filmes podem contribuir para a luta social. A
crítica mordaz de Woody
Allen àquilo em
que o cinema se tornou é quase sempre certeira… Mas o impulso para pensar o
cinema actual como instrumento de sensibilização política e meio de acção
social parece quase inconsciente, como
se os realizadores se sentissem compelidos a cumprir esse papel, perdendo com
isso a própria irreverência artística.
Notemos
agora a segunda consequência problemática que decorre da
politização da arte: ao mesmo
tempo que há uma desvalorização do objecto enquanto objecto artístico, o foco
da atenção passa gradualmente para a identidade do sujeito que
apresenta o objecto. O cinema encheu-se de quotas e a atribuição de
prémios passou a ser avaliada a partir da identidade das pessoas premiadas.
A lógica é sempre a mesma: todas as dimensões da vida pertencem à esfera política
pelo que a luta pela justiça social deve sobrepor-se a tudo, até mesmo ao
mérito artístico.
No
caso recente da escolha do artista para
representar Portugal na Bienal de Veneza, os problemas convocados
por esta politização da arte tornam-se evidentes. O concurso parece ser mais
uma trapalhada do governo, tendo gerado críticas generalizadas quanto a
prazos, regras e mecanismos. Mas os artistas e os curadores concorreram tendo
conhecimento das regras estabelecidas e aceitaram-nas no momento da
candidatura. Naturalmente, os derrotados têm legitimidade para recorrer do
resultado se entenderem que as regras não foram cumpridas – no entanto, a
polémica que tem ocupado o espaço público é outra: dentro da lógica
identitária e antissistema, o que se tem questionado é o facto de as regras
previamente estabelecidas não terem conduzido ao resultado que foi pré-definido
por aqueles que têm contestado a decisão final do concurso. A crise
da arte chegou aqui: já não discutimos o objeto em si, mas as identidades
dos artistas e a necessidade de as regras no mundo da arte responderem a
exigências identitárias. E este
concurso revela a lógica
perversa da dinâmica identitária: na
verdade, todos os concorrentes pertencem, de uma maneira ou de outra, a grupos
identitários defendidos pelo movimento de justiça social – ainda assim,
permanece a recusa pelas regras do jogo que não determinem a decisão considerada justa,
dando origem a uma avaliação subjetiva que se
pretende naturalizada. O resultado é uma política do
ressentimento, que serve apenas para esconder a incapacidade de lidar com a
frustração da derrota.
Como já
assinalámos, o efeito redentor do argumento de justiça social é
poderoso: afinal, quem é que está contra a justiça social? Mas a proposta
identitária de justiça social é perigosa e profundamente iliberal. É
iliberal, porque não admite pluralismo nem espaço de dissidência: mesmo aqueles
que, de boa-fé, pareciam posicionar-se como seus aliados são rapidamente
abalroados quando questionam os seus princípios. Assim, antigos aliados tornam-se
rapidamente inimigos, acusados de todas as malícias que antes cabiam
aos adversários mais puros. E é perigosa, porque consubstancia uma visão
totalitária da vida. Essa visão totalitária decorre da própria supressão das fronteiras entre
esfera pública e esfera privada quando afirmamos que o pessoal é político. Ao fazê-lo, eliminamos a possibilidade da diferença,
da criatividade e da crítica livres e da
arte como objeto de beleza e admiração, porque
tudo o que fazemos deve subordinar-se à
lógica política. Como diz Orwell,
“não podemos realmente sacrificar a nossa integridade intelectual em nome de um
credo político – ou pelo menos não podemos fazê-lo e permanecer escritores”.
E
não deixa de ser assinalável que, oitenta anos depois de Orwell ter reflectido
no ensaio “Literatura e Totalitarismo”
sobre a (im)possibilidade da literatura em contexto totalitário, tenhamos
regressado ao mesmo tipo de reflexão. Isto revela como a deriva
politizadora e identitária repete a mesma lógica da utilização da arte por
parte dos regimes totalitários do século XX – pelo que devemos acautelar-nos da sua entrada pela porta principal e não
saudá-la candidamente.
Na
verdade, ainda que possamos reconhecer as limitações da ideia de arte pela
arte, começa a sentir-se uma ânsia crescente por uma lufada de ar fresco que
nos liberte desta visão claustrofóbica da vida e que liberte a arte da opressão
politizadora. Uma lufada
de ar fresco que nos traga um pouco do espírito de Oscar Wilde: “Podemos
perdoar um homem que faça uma coisa útil, desde que não a admire. A única
desculpa para fazermos uma coisa inútil é admirarmo-la intensamente. Toda a arte é perfeitamente inútil.”
Professora da
Universidade da Beira Interior
ARTE CONTEMPORÂNEA ARTE
CULTURA POLÍTICA POLITICAMENTE CORRETO SOCIEDADE
Nenhum comentário:
Postar um comentário