quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

O estranho é


Que limitando-se exclusivamente a um exsudar piedoso de uma bondade universal pelos desfavorecidos, essa esquerda  reivindicativa de direitos – apenas desses desfavorecidos, é certo, no repúdio por quem quer que seja organizador do seu próprio universo racional e  independente – afasta-se voluntariamente dos valores que a inteligência humana sempre distinguiu como imprescindíveis ao desenvolvimento do Homem, levando à confusão e ao caos na formação das novas gerações, caso o equilíbrio da razão não venha impor-se na sociedade de mândria e parasitismo em que nos vamos tornando, por conta alheia.

O único debate

O liberalismo e a social-democracia partilham um universo comum, constituindo-se como pontos de vista diversos sobre esse universo. O socialismo representa, pelo seu lado, um outro universo.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 13 jan 2022

De todos os debates para as legislativas que vi, só num, que tenha reparado, foram verdadeiramente discutidos projectos de sociedade: o debate entre Rui Rio e João Cotrim Figueiredo. Mais exactamente, sem obviamente navegar num plano teórico elevado, que seria despropositado no contexto, a discussão mostrou as diferenças e as afinidades entre a concepção liberal e a concepção social-democrata da sociedade, duas possibilidades no interior da direita, se usarmos, como devemos, “direita” numa acepção ampla, abarcando um pouco do centro-esquerda. Não são apenas concepções políticas entre outras: representam provavelmente as duas mais significativas tradições do pensamento político das democracias ocidentais contemporâneas.

Social-democracia e liberalismo correspondem a duas atitudes diversas face ao problema da justiça social, e é natural que entrem em conflito. Mas, sendo a sociedade o que é – uma coisa largamente indeterminada e indeterminável que não pode ser objecto de uma teoria única -, as duas atitudes estão destinadas a comporem-se uma com a outra em graus diversos, consoante os momentos e as necessidades da sociedade. O mesmo indivíduo pode, de resto, oscilar ao longo da vida entre as duas posições, sem esquizofrenia alguma. Diria até que é bom que o faça.

Em contrapartida, o socialismo, quaisquer que sejam os seus laços históricos com a social-democracia tal como hoje a entendemos, é insusceptível de composição real com o liberalismo. Não se trata de um simples conflito, mas de uma oposição radical. O liberalismo e a social-democracia partilham um universo comum, constituindo-se como pontos de vista diversos sobre esse universo. O socialismo representa, pelo seu lado, um outro universo. Vejam o horror com que um socialista típico se refere ao liberalismo – e não é preciso ir a Pedro Nuno Santos. Do comunismo não vale a pena falar.

Isso explica em parte como os debates com a esquerda e entre a esquerda, sendo obviamente debates políticos, no sentido em que lidam com o modo como a sociedade se deve organizar, contêm sempre em si uma estranha irrealidade. Há sempre, mesmo no discurso do PS, um sentido que escapa ao sentido comum que é partilhado por social-democratas e liberais, por mais conflitos que entre eles existam. E esse sentido exprime-se, na sua dimensão mais aparente, sob a forma da afirmação de uma superioridade moral.

Não quer dizer isto que entre esquerda e direita, numa acepção ampla, o debate seja impossível. Claro que é possível em muitos pontos importantes e em questões que relevam da pura luta pelo poder, que, se exercida livremente, é a condição política da democracia. Mas há uma assimetria de base que não é nunca eliminável, mesmo quando a esquerda adopta vestes pragmáticas. A direita pode procurar reformar a sociedade das democracias liberais, mas não põe em questão a legitimidade destas. A esquerda não pode existir sem a íntima suposição da sua intrínseca ilegitimidade (o que, é claro, é tudo menos incompatível com a tentação de obter o máximo de poder sobre essa sociedade). Foi assim no princípio e assim continua a ser. O que é explícito no PC e no BE é implícito em muito do PS.

Como disse, o mais aparente sinal disso é o preconceito da superioridade moral. E esse preconceito manifesta-se no que convém chamar o seu ufanismo. Vejam um qualquer debate com Catarina Martins, por exemplo. O seu discurso, mesmo que sob um modo calmo, contido e não agressivo que seria inimaginável em Louçã, e que vale muitos votos ao Bloco, não contém um momento que não transpire de moralização, de pretensão à educação das massas e de amor desmesurado à própria ideia de esquerda. Catarina ufana-se de ser de esquerda e mostra-o a todo o tempo.

Costa, por razões simultaneamente ideológicas e pessoais, é mais contido. Mas, quando passa ao ataque, não resiste ao mesmo ufanismo – ao regozijo ilimitado por pertencer à gloriosa família da esquerda, com toda a superioridade moral que a coisa comporta. Lembrem-se daquele vídeo em que, a propósito de uma aparente transigência de Rio com Ventura, logo nos esclareceu: “Quero ser muito claro: em circunstância alguma podemos ceder nos princípios ou nos valores. O combate ao populismo exige linhas vermelhas inultrapassáveis. Os valores do humanismo que inspiram a nossa sociedade não são transacionáveis. Um político responsável tem sempre os seus princípios e os nossos valores no centro”. Eis um perfeito ufanista de esquerda a dar-nos lições do alto da sua elevada estatura moral. Vamos ter mais disto, aposto, no debate de hoje à noite com Rio. Costa não resistirá a ufanar-se dos seus “princípios” e dos seus “valores” de proprietário da sociedade.

Em contrapartida, a direita, desde os primórdios da democracia, é tudo menos ufanista. Ventura é talvez uma excepção, mas Ventura copia a esquerda, como devia ser óbvio para todos, e, de resto, o seu ufanismo é um simples expediente. A direita, no seu conjunto, não se ufana de nada, o que é incontestavelmente um ponto a seu favor, quaisquer que sejam os seus defeitos. As lições de moral vêm-nos invariavelmente da esquerda, com aquele contentamento seráfico típico dos bem-aventurados, e são sistematicamente proferidas a partir de um ponto de vista que é o da superioridade de um mundo – o da esquerda – sobre o outro – o da, no fundo ilegítima, direita.

Mas tudo isto – ou, pelo menos, uma boa parte disto – é consequência da concepção que se tem da sociedade. Porque se a discussão é difícil com a esquerda é porque o seu projecto de sociedade é, muito genericamente, assente na ideia de uma ilegitimidade última da sociedade presente, que deve dar lugar a uma outra sociedade mais justa. O resto decorre daí. Enquanto que a conversa entre liberais e social-democratas é, quase por definição, feita de acomodações recíprocas.

Não se deduz de nada que se disse que a posição de esquerda seja ilegítima, o que seria replicar a atitude da esquerda face à direita. Há até um interesse particular à posição da esquerda, sobretudo da extrema-esquerda: o ela colocar, de um modo que a direita não coloca, ou pelo menos não coloca com idêntico vigor, a questão dos fundamentos da sociedade, a ideia da sociedade como uma criação humana, embora cada vez mais numa linguagem que torna essa mesma questão dificilmente compreensível, ocultando-a no próprio gesto que a enuncia. Quis apenas dizer que a viabilidade e a possibilidade de desenvolvimento da sociedade actual só pode ser assegurada pelo conflito das posições liberais e social-democratas (que extravasam de longe os partidos com esses nomes – o CDS, por exemplo, cabe perfeitamente aqui) e pelas negociações que o conflito permita.

Se as pessoas vão ter isso em conta no dia de votar é uma questão completamente diferente. Era bom que tivessem, mas isso é tudo menos seguro. A esquerda criou, com método e sábia premeditação, clientelas tão numerosas que o voto mais provável é um voto na estagnação, retoricamente disfarçada com a promessa de uma sociedade mais justa.

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