Que limitando-se exclusivamente a um exsudar
piedoso de uma bondade universal pelos desfavorecidos, essa esquerda reivindicativa de direitos – apenas desses
desfavorecidos, é certo, no repúdio por quem quer que seja organizador do seu
próprio universo racional e independente
– afasta-se voluntariamente dos valores que a inteligência humana sempre distinguiu
como imprescindíveis ao desenvolvimento do Homem, levando à confusão e ao caos
na formação das novas gerações, caso o equilíbrio da razão não venha impor-se na
sociedade de mândria e parasitismo em que nos vamos tornando, por conta alheia.
O único debate
O liberalismo e a social-democracia
partilham um universo comum, constituindo-se como pontos de vista diversos
sobre esse universo. O socialismo representa, pelo seu lado, um outro universo.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 13 jan
2022
De
todos os debates para as legislativas que vi, só num, que tenha reparado, foram
verdadeiramente discutidos projectos de
sociedade: o debate entre Rui Rio e João Cotrim Figueiredo. Mais exactamente, sem obviamente navegar num plano
teórico elevado, que seria despropositado no contexto, a discussão mostrou as diferenças e as afinidades
entre a concepção liberal e a concepção social-democrata da sociedade, duas
possibilidades no interior da direita, se usarmos, como devemos, “direita” numa
acepção ampla, abarcando um pouco do centro-esquerda. Não são apenas concepções políticas entre outras:
representam provavelmente as duas mais significativas tradições do pensamento
político das democracias ocidentais contemporâneas.
Social-democracia e liberalismo
correspondem a duas atitudes diversas face ao problema da justiça social, e é
natural que entrem em conflito.
Mas, sendo a sociedade o que é – uma coisa largamente
indeterminada e indeterminável que não pode ser objecto de uma teoria única -, as duas atitudes estão destinadas a comporem-se uma
com a outra em graus diversos, consoante os momentos e as necessidades da
sociedade. O mesmo
indivíduo pode, de resto, oscilar ao longo da vida entre as duas posições, sem
esquizofrenia alguma. Diria até que é bom que o faça.
Em contrapartida, o socialismo,
quaisquer que sejam os seus laços históricos com a social-democracia tal como
hoje a entendemos, é insusceptível de composição real com o liberalismo. Não se trata de um simples conflito, mas de uma
oposição radical. O
liberalismo e a social-democracia partilham um universo comum, constituindo-se
como pontos de vista diversos sobre esse universo. O socialismo representa, pelo seu lado, um outro
universo. Vejam o horror com que um socialista típico se refere ao liberalismo
– e não é preciso ir a Pedro Nuno Santos. Do comunismo não vale a pena falar.
Isso
explica em parte como os debates com a esquerda e entre a esquerda, sendo
obviamente debates políticos, no sentido em que lidam com o modo como a
sociedade se deve organizar, contêm sempre em si uma estranha irrealidade. Há sempre, mesmo no discurso do PS, um sentido que
escapa ao sentido comum que é partilhado por social-democratas e liberais, por
mais conflitos que entre eles existam.
E esse sentido exprime-se, na sua dimensão mais aparente, sob a forma da
afirmação de uma superioridade moral.
Não
quer dizer isto que entre esquerda e direita, numa acepção ampla, o debate seja
impossível. Claro que é possível em muitos pontos importantes e em questões
que relevam da pura luta pelo poder, que, se exercida livremente, é a condição
política da democracia. Mas há uma assimetria de base que não é
nunca eliminável, mesmo quando a esquerda adopta vestes pragmáticas. A direita pode procurar reformar a sociedade das democracias
liberais, mas não põe em questão a legitimidade destas. A esquerda não
pode existir sem a íntima suposição da sua intrínseca ilegitimidade (o que, é
claro, é tudo menos incompatível com a tentação de obter o máximo de poder
sobre essa sociedade). Foi assim no princípio e assim continua a ser. O que é
explícito no PC e no BE é implícito em muito do PS.
Como
disse, o mais aparente sinal disso é o preconceito
da superioridade moral. E esse
preconceito manifesta-se no que convém chamar o seu ufanismo.
Vejam um qualquer debate com Catarina
Martins, por exemplo.
O seu discurso, mesmo que sob um modo calmo, contido e
não agressivo que seria inimaginável em Louçã, e que vale muitos votos ao
Bloco, não contém um momento que não transpire de moralização, de pretensão à
educação das massas e de amor desmesurado à própria ideia de esquerda. Catarina
ufana-se de ser de esquerda e mostra-o a todo o tempo.
Costa, por razões simultaneamente ideológicas e
pessoais, é mais contido. Mas,
quando passa ao ataque, não resiste ao mesmo ufanismo – ao regozijo ilimitado
por pertencer à gloriosa família da esquerda, com toda a superioridade moral
que a coisa comporta. Lembrem-se
daquele vídeo em que, a propósito de uma aparente transigência de Rio com
Ventura, logo nos esclareceu: “Quero
ser muito claro: em circunstância alguma podemos ceder nos princípios ou nos
valores. O combate ao populismo exige linhas vermelhas inultrapassáveis. Os
valores do humanismo que inspiram a nossa sociedade não são transacionáveis. Um
político responsável tem sempre os seus princípios e os nossos valores no
centro”. Eis um perfeito ufanista de esquerda a dar-nos lições do alto da sua
elevada estatura moral. Vamos ter mais disto, aposto, no debate de hoje à noite
com Rio. Costa não resistirá a ufanar-se dos seus “princípios” e dos seus
“valores” de proprietário da sociedade.
Em
contrapartida, a direita, desde os primórdios da democracia, é tudo menos
ufanista. Ventura é
talvez uma excepção, mas Ventura copia a esquerda, como devia ser óbvio
para todos, e, de resto, o seu ufanismo é um simples expediente. A direita,
no seu conjunto, não se ufana de nada, o que é incontestavelmente um ponto a
seu favor, quaisquer que sejam os seus defeitos. As lições
de moral vêm-nos invariavelmente da esquerda, com aquele contentamento seráfico
típico dos bem-aventurados, e são sistematicamente proferidas a partir de um
ponto de vista que é o da superioridade de um mundo – o da esquerda – sobre o
outro – o da, no fundo ilegítima, direita.
Mas
tudo isto – ou, pelo menos, uma boa parte disto – é consequência da
concepção que se tem da sociedade. Porque se a discussão é difícil com a
esquerda é porque o seu
projecto de sociedade é, muito genericamente, assente na ideia de uma ilegitimidade
última da sociedade presente, que deve dar lugar a uma outra sociedade mais
justa. O resto decorre daí. Enquanto
que a conversa entre liberais e social-democratas é, quase por definição, feita
de acomodações recíprocas.
Não
se deduz de nada que se disse que a posição de esquerda seja ilegítima, o que
seria replicar a atitude da esquerda face à direita. Há até um interesse particular à posição da
esquerda, sobretudo da extrema-esquerda: o ela
colocar, de um modo que a direita não coloca, ou pelo menos não coloca com
idêntico vigor, a questão dos fundamentos da sociedade, a ideia da sociedade
como uma criação humana, embora cada vez mais numa linguagem que torna essa
mesma questão dificilmente compreensível, ocultando-a no próprio gesto que a
enuncia. Quis
apenas dizer que a viabilidade e a possibilidade de desenvolvimento da
sociedade actual só pode ser assegurada pelo conflito das posições liberais e
social-democratas (que extravasam de longe os partidos com esses nomes – o CDS,
por exemplo, cabe perfeitamente aqui) e pelas negociações que o conflito
permita.
Se
as pessoas vão ter isso em conta no dia de votar é uma questão completamente
diferente. Era bom que tivessem, mas isso é tudo menos seguro. A esquerda
criou, com método e sábia premeditação, clientelas tão numerosas que o voto
mais provável é um voto na estagnação, retoricamente disfarçada com a promessa
de uma sociedade mais justa.
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