Ser… parecer...
De facto, os
tempos mudam, como o escrevera Camões e muitos outros, fortalecidos de leitura
clássica: “Todo o mundo é composto de mudança
/ Buscando sempre novas qualidades”. Não me lembro de nos meus tempos de
criança se fazer tanto finca-pé na questão do “outro”, estoutro surgindo no acréscimo
dos preceitos educacionais que propunham a amizade, o respeito pelos mais
velhos, a compaixão pelos que sofrem como alguns dentre esses, que, de resto,
as histórias infantis ajudavam a fortalecer, contribuindo assim para a formação
do carácter. É certo que máximas como “help
yourself” também estavam contidas nesses preceitos, como forma de estímulo a
um crescimento que condenava a mândria e acentuava a valorização pessoal pelo
estudo, mas que era igualmente permissivo com as naturais brincadeiras
fortalecedoras do desenvolvimento físico e da amizade, e, por consequência, da solidariedade,
a ela apensa. Não, não é negativo o preceito do “help yourself” estimulante do respeito por si próprio, forçando-o a
não esperar pelo encosto alheio. O que não implica que não se preste ajuda ao
outro, a solidariedade sendo uma máxima a todos os títulos louvável.
O certo é que se
vive hoje numa sociedade de ruído e permissividade, o respeito pelo “outro”
falhando “ab initio”, desde que se desautorizam os pais e os professores, como
a cada passo se vê, a tal “solidariedade” que se reivindica a todo o custo não
parecendo mais do que artimanha para captar votos nas urnas.
A arte de ser atencioso
Como
esperar que os nossos filhos tenham esperança se os deixamos no nevoeiro dos
resignados? Como se pode mudar o mundo, se o que a vida lhes descobre são
apenas espreitadelas para o mundo dos outros?
23
jan 2022
Talvez
a solidariedade seja a forma de alargarmos a todos os outros a necessidade com
que os pais dizem aos filhos que têm de ser amigos. O que, quando se vive
cercado por ideais de um individualismo glutão, parece ir-se transformando mais
numa intenção do que, propriamente, numa espécie de arte de sermos atenciosos
uns para os outros; que, ao que parece, vai caindo em desuso. “Termos de ser”
amigos não é solidariedade. “Termos de ser” amigos é uma frágil intenção.
Solidariedade é mais que isso: é o “desaforo” de sermos, gostosamente,
atenciosos uns para os outros.
É
claro que sermos atenciosos não significa sermos subservientes, falsamente
amistosos ou, simplesmente, adequados. Supõe que estimamos quem não conhecemos.
E que esperamos dum gesto atencioso uma retribuição mais ou menos idêntica. Um
sinal, digamos assim, que do atencioso nos leve ao simpático (ao amistoso), e
do simpático ao empático. Contribuindo assim para que sintamos que não estamos
sozinhos. E que temos com quem fazer pontes entre diferenças que, quando
dialogam umas com as outras, nos trazem, a todos, a claridade da mudança.
Sempre que somos atenciosos começa a mudança.
Mas,
vendo bem, os nossos filhos vivem num tempo em que parece ter-se tornado
jurássico o desejo de mudar o mundo. Parecem demasiado apegados à ideia de que
o mundo deve adaptar-se mais aos seus desejos, que é, de certa forma, uma
maneira de o querer transformado só para si. Sem que as grandes mudanças que
ele lhes possa vir a trazer sejam transversais a mais pessoas que contribuam
para que ele mude mais, ainda. Um mundo que se adapte aos seus desejos e um mundo que
muda são duas ordens de grandeza diferentes.
Mudar o mundo nunca é um exercício solitário. Será um rasgo de paixão, que se
divide e se comunga. O que lhe dá furor e torna o desejo solidário. Adaptá-lo a
nós é uma esconsa conveniência que não precisa dos outros. Antes os dispensa.
Ao
mesmo tempo que parecem ser muito pouco atenciosos, escuto muitos adolescentes
a falar da ambição de serem diferentes; de serem bons, no sentido de estarem
entre os melhores. Por mais que mudar o mundo lhes mereça um esgar de algum
desprezo, como se isso fosse uma veleidade da juventude dos pais que eles
classificam entre a tontice e a insensatez. Eles talvez ainda não tenham
percebido que mudar o mundo é — “só” — um estado de espírito. Mas porque é que
eles, tão depressa, terão deixado para trás o desejo de mudar o mundo a
ponto de isso não entrar na agenda da esmagadora maioria dos adolescentes? Como é que
podemos esperar que os nossos filhos sejam amigos da esperança se, ao mesmo
tempo, parecemos deixar que baixe sobre eles o nevoeiro dos resignados? Porque é que eles passam a vida a querer fazer a
diferença se não lhes dizemos que a diferença se constrói com as pontes que
fazemos entre aquilo que somos e os outros de quem nos sentimos diferentes?
Como se pode mudar o mundo se os descobrimentos que a vida lhes traz são,
quando muito, espreitadelas para o mundo dos outros, e pouco mais?
O
que se passa é que de tanto os querermos a fazer história só com aquilo que a
escola lhes traz, lhes resta muito pouco tempo para que, na medida do que eles
vivem, reúnam as histórias com que se chega às clareiras de onde se vêem outras
maneiras de mudar o mundo. Sermos todos insubstituíveis fica sempre bem no
plano dos princípios. Mas, depois, o que eles acabam por ver é que a maioria
das pessoas parece transformar a sua vida numa mercadoria, e vive com a
sensação de que com os seus passos nunca se abre um trilho nem se constrói um
caminho. A maioria de nós vive a vida como se saber viver fosse
transformar em atalhos todos os passos que são indispensáveis para mudarmos,
sobretudo quando precisamos que a vida nos mude e transforme em entusiasmo de
crescer a modorra que nos torna pessoas cansadas de tanto fugir de viver. Ora –
num mundo que apela ao individualismo e fala das mudanças como tudo o que se
conquista sem dor, sem muito trabalho e quase sempre com vitórias – podem eles
ser diferentes e ajudarem a escrever a história, se parecem tão pouco
incentivados a construir a sua própria história, ancorada em tudo aquilo que
vivem, desde os seus sucessos aos seus fracassos? Porque é que deixámos que se
crie a ideia que, quando pedimos ajuda, somos fracos (quando, na verdade,
aquilo que se passa é exactamente o contrário)?
A
verdade é que vivemos num mundo onde pedir ajuda chega a ser quase
revolucionário. E não pode ser. É raro que exista quem peça ajuda! É, por isso,
urgente que os nossos filhos percebam que sempre que ajudam estão a aceitar ser
ajudados a tornarem-se melhores. Ajudar é sempre um novo recomeço. Um mundo
melhor não é, portanto, um mundo que fica paredes-meias com o paraíso. Um mundo
bom é um mundo onde as pessoas não enjeitam ser, com a ajuda umas das outras,
pessoas melhores.
E,
no entanto, é mais fácil que os nossos filhos nos vejam mais a mexericar e a
escarnecer do que a admirar ou, mesmo, a elogiar. Serem bons ou pessoas
melhores, por culpa nossa, passa mais, aos olhos deles, por identificar o que
os outros fazem de mal – o que, aparentemente, nos torna melhores – em vez de
reconhecermos aquilo em que eles são melhores que nós. Mudar é um exercício de
humildade. Ao contrário daquilo que lhes dizemos quando os incentivamos à
mudança. Já mudar o mundo não significa pôr as mudanças dos outros em primeiro
lugar. Significa que aquilo que está em primeiro lugar dentro de nós não se faz
sem os outros, sobretudo quando eles nos ajudam a fazer com que aquilo que traz
sentido à nossa vida não deixe de estar sempre primeiro.
Mudar
não é mau. Antes pelo contrário. Na verdade, só crescemos quando mudamos. Mas
como podem os nossos filhos ser felizes, como desejamos que sejam, quando a
relação que têm com a mudança é acomodada ou, até mesmo, resignada (ou, nalguns
momentos, aparentemente incomodada)? Como podem eles ser amigos da mudança
quando lhes alimentamos a ilusão que é o mais fácil que os torna mais felizes e
que os muda mais depressa? “Mudar” assim é supor que para se ir muito depressa
até à felicidade não é necessário que se mude quase nada. É querer “tudo”
mexendo em nada.
Deixarmos
que cresçam num mundo pouco solidário é aceitarmos que os nossos filhos mudem o
mundo sozinhos. Ora, a mudança começa quando aceitamos que ajudar os outros faz
deles parte do nosso crescimento. E quando aprendemos com eles a arte de ser
atencioso. Solidariedade não é, por isso, “termos de ser amigos”. É
incentivá-los à estima. É olharem o outro como parte da sua mudança. E
adverti-los, sempre que não percebam para que serve serem amistosos e ajudar. E
é encaminhá-los para compreenderem que mudar o mundo começa quando, com a sua
mudança e com os outros, eles se tornam pessoas melhores. Afinal, sempre que
somos atenciosos começa a mudança.
FILHOS
FAMÍLIA LIFESTYLE COMPORTAMENTO SOCIEDADE
Madalena Sa: Grande
artigo!
bento guerra: Estranho,
porque nunca comunicaram entre eles, tão facilmente, como nestes tempos.
Pobre Portugal: Parabéns. O
"individualismo é algo que hoje os adolescentes cultivam, e que nunca
acaba bem.
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