quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

O Manel e a Maria


Pergunto-me como é que um escritor tão extraordinariamente sagaz no seu estilo de relicário sagrado, feito de todos os artifícios de uma joalharia requintada de mimos semânticos plenos de uma desmontagem íntima de escritas, músicas ou pinturas mundiais, de vidas, em suma, cujos caracteres se definem pela metáfora constante, pelo uso irrequieto do verbo ser assertivo, em máximas pletóricas de sentidos – e peço perdão pelo aparentemente rebuscado discurso, pobre, todavia, ante a maravilha das “definições” ou conceitos que não se lêem sem espanto – pergunto-me, repito, como é que este escritor António Ferro, surpresa de Natal, que ando a ler embasbacada, me trouxe à memória um episódio da minha existência coimbrã, que para sempre definiria para mim o espírito do machismo português, pese embora o meu caso totalmente diverso na questão do “coup de foudre” – deslumbrado, transparente, decisivo, na sinceridade de quem desde sempre se habituara a reconhecer a verdade, impregnada, é certo, das dúvidas, zangas e reconciliações tumultuosas a que tantas vezes foi sujeito. Não, não se trata do meu caso, mas do de uma colega que me contou o seu: um “Manel” que um dia a segue, numa rua coimbrã, a aborda e lhe pergunte: “Maria, dá-me licença”?

E foi assim que tudo começou com esses. Acabou para ela da mesma forma que comigo, as naturais facadas no matrimónio, do homem vaidoso e leviano, embora mais encobertamente com a minha colega, que soube salvar as aparências, fingindo ignorar as facadas.

E assim era outrora, muitas vezes, o encetar respeitoso da vida conducente ao matrimónio: “Maria, dá-me licença?”

É esta a imagem que prevalece, apesar das lantejoulas, deste escritor extraordinário, António Ferro, que leio na surpresa encantada da sua prosa inesperada – luminosa, decisiva, faiscante de conceito pontilhista, piscadelas de conceitos em todas as direcções, buscando o cerne da alma humana, ou abarcando, num ápice, os valores ideológicos que traduzem os artistas e os seres que conhece, numa expressão artística de extraordinária dimensão.

Uma inesperada surpresa, este grosso volume «ANTÓNIO FERRO – FICÇÃO» (Editor Hugo Xavier) - oferecido pela minha amiga Alice, que Deus abençoe - espécie de virtuose expositivo, repito, nesses dados conceituosos resultantes de uma extrema argúcia a respeito da alma humana, e dos escritores e artistas vários que assim define – o presente do verbo “ser” sendo o arranque dos seus aforismos.

Leio-o com encantamento, sim, mas com a zanga de quem sempre viveu na distância dos conceitos machistas, de que sempre enfermou a sociedade portuguesa, e que, se praticados ainda hoje, o são, todavia, com a repulsa de uma sociedade que deixou de reconhecer a Mulher como ser inferior ou boneca de luxo – também inferior – que António Ferro descreve repetidamente - mesmo a sua “Leviana”, que ele próprio afirma ser um “tipo”, mas cujo percurso e intriga pré-definida nesse objectivo, bem denunciam o seu sarcasmo machista.

Um escritor debruçado sobre o mundo – o seu, o das suas leituras, dos seus prazeres culturais vários – autêntico virtuose na reflexão, que talvez peque por algum pretensiosismo de espírito, que a si próprio se achava superior.

Vou continuar a ler. Como um jogo, onde as palavras são dados de um xadrez por vezes sem xeque-mate.

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