Pergunto-me como é que
um escritor tão extraordinariamente sagaz no seu estilo de relicário sagrado, feito
de todos os artifícios de uma joalharia requintada de mimos semânticos plenos de
uma desmontagem íntima de escritas, músicas ou pinturas mundiais, de vidas, em
suma, cujos caracteres se definem pela metáfora constante, pelo uso irrequieto
do verbo ser assertivo, em máximas pletóricas de sentidos – e peço perdão pelo
aparentemente rebuscado discurso, pobre, todavia, ante a maravilha das “definições”
ou conceitos que não se lêem sem espanto – pergunto-me, repito, como é que este
escritor António Ferro, surpresa de Natal, que ando a ler embasbacada, me trouxe
à memória um episódio da minha existência coimbrã, que para sempre definiria
para mim o espírito do machismo português, pese embora o meu caso totalmente
diverso na questão do “coup de foudre”
– deslumbrado, transparente, decisivo, na sinceridade de quem desde sempre se
habituara a reconhecer a verdade, impregnada, é certo, das dúvidas, zangas e
reconciliações tumultuosas a que tantas vezes foi sujeito. Não, não se trata do
meu caso, mas do de uma colega que me contou o seu: um “Manel” que um dia a
segue, numa rua coimbrã, a aborda e lhe pergunte: “Maria, dá-me licença”?
E foi assim que tudo
começou com esses. Acabou para ela da mesma forma que comigo, as naturais
facadas no matrimónio, do homem vaidoso e leviano, embora mais encobertamente
com a minha colega, que soube salvar as aparências, fingindo ignorar as
facadas.
E assim era outrora,
muitas vezes, o encetar respeitoso da vida conducente ao matrimónio: “Maria, dá-me licença?”
É esta a imagem que
prevalece, apesar das lantejoulas, deste escritor extraordinário, António Ferro, que leio na surpresa
encantada da sua prosa inesperada – luminosa, decisiva, faiscante de conceito
pontilhista, piscadelas de conceitos em todas as direcções, buscando o cerne da
alma humana, ou abarcando, num ápice, os valores ideológicos que traduzem os
artistas e os seres que conhece, numa expressão artística de extraordinária
dimensão.
Uma inesperada surpresa,
este grosso volume «ANTÓNIO FERRO – FICÇÃO» (Editor Hugo Xavier) - oferecido pela minha amiga Alice, que Deus abençoe - espécie de
virtuose expositivo, repito, nesses dados conceituosos resultantes de uma
extrema argúcia a respeito da alma humana, e dos escritores e artistas vários
que assim define – o presente do verbo “ser” sendo o arranque dos seus
aforismos.
Leio-o com encantamento,
sim, mas com a zanga de quem sempre viveu na distância dos conceitos machistas,
de que sempre enfermou a sociedade portuguesa, e que, se praticados ainda hoje,
o são, todavia, com a repulsa de uma sociedade que deixou de reconhecer a
Mulher como ser inferior ou boneca de luxo – também inferior – que António Ferro descreve repetidamente -
mesmo a sua “Leviana”, que ele próprio afirma ser um “tipo”, mas cujo percurso e intriga pré-definida
nesse objectivo, bem denunciam o seu sarcasmo machista.
Um escritor debruçado
sobre o mundo – o seu, o das suas leituras, dos seus prazeres culturais vários –
autêntico virtuose na reflexão, que talvez peque por algum pretensiosismo de
espírito, que a si próprio se achava superior.
Vou continuar a ler. Como
um jogo, onde as palavras são dados de um xadrez por vezes sem xeque-mate.
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