segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Tout va bien

 

Qui finit bien, afinal. Mas é de prever o conteúdo dos quase 300 comentários - de desprezo, talvez, por Rio e de comprazimento pela vitória de Costa. Prefiro não ler e acreditar que posso ter-me enganado.

Costa absoluto promete ser diferente de Sócrates. Rio prepara saída

Texto de Rita Tavares e Miguel Santos Carrapatoso, fotografia de João Porfírio e Tomás Silva

É a segunda maioria do PS e apareceu inesperadamente. Por agora, Costa promete dialogar, mal seja indigitado e também um Governo "mais enxuto". V. Costa absoluto promete ser diferente de Sócrates.

Texto de MIGUEL SANTOS CARRAPATOSO,

(fotografia de JOÃO PORFÍRIO E TOMÁS SILVA)

OBSERVADOR, 21 Jan2022

 A noite começou com um ligeiro alívio, com o PS à frente das projecções, e acabou em euforia total, com o PS absoluto. Já ninguém o esperava, no meio socialista, e houve mesmo um recuo nesse pedido durante a campanha. No final a maior das ironias foi que a primeira admissão pública de uma maioria absoluta socialista chegou pela boca da líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins. O Altis não se calou mais em saltos e gritos e António Costa chegou para a confirmar, pela meia-noite. É mais curta do que a de José Sócrates, a primeira do PS, mas Costa promete que será diferente dessa. No PSD, o efeito desta vitória socialista foi devastador.

O PS conta com 117 sem os círculos da emigração (onde há dois anos os quatro mandatos foram divididos entre PS e PSD). Menos do que os 121 de Sócrates que chegou a pôr o pé na campanha para dizer ao líder socialista para “não desmerecer” a única maioria do PS. Costa respondeu-lhe este domingo, ao assumir que traz como “desafio” nesta legislatura “reconciliar os portugueses com a ideia das maiorias absolutas e que a estabilidade é boa para a democracia e não uma ameaça à democracia”. Além disso, também prometeu, logo a abrir “uma maioria que protege a independência do poder judicial e que cooperará com todas as instituições” e também com os outros órgãos de soberania, tocando em dois pontos — justiça e relação institucional — sensíveis no tempo da outra maioria socialista.

Aliás, sobre a Presidência da República, Costa diz mesmo esperar o que teve até agora: “Solidariedade institucional”. “Nunca houve um período tão longo da nossa história onde o relacionamento entre o Presidente, a Assembleia e o Governo seja tão pacífico e tão construtivo como nos últimos seis anos”, afirmou. Corrigiu um dos argumentos de campanha, em que chegou a usar Marcelo para garantir que os portugueses teriam uma válvula de segurança no Presidente, dizendo na noite da vitória que afinal “o primeiro garante” de que não “pisará o risco” será ele próprio.

 “Esta maioria só foi possível porque se juntaram aos socialistas vários votos de cidadãos das mais diferentes origens políticas que entenderam que neste momento era o PS que podia garantir as maiores condições de estabilidade”. É aqui que Costa funda a necessidade de procura de consensos. Mas é também esta maioria que o deixa agora preso ao cargo de primeiro-ministro, independentemente do que Bruxelas possa vir a pedir dele em 2024, altura em que há Europeias e, com elas, a reorganização dos cargos europeus para onde Costa é apontado com recorrência, precisamente para esse tempo. Mas disso Costa não falou.

Antes de seguirmos com o mandato Costa III, um parênteses para lembrar os resultados (quase finais): PS com 41,7% (117 deputados), PSD com 29,2%, juntando as coligações nas ilhas (76 deputados), Chega com 7,2% (12 deputados), IL com 5% (8 deputados), BE com 4,5% (5 deputados), CDU com 4,4% (mas 6 deputados), CDS com 1,6% (0 deputados), PAN com 1,5% (1 deputado) e Livre com 1,3% (1 deputado).

Indigitar, chamar todos-menos-o-Chega e fazer um “Governo mais enxuto”

Quanto ao futuro mais imediato, Costa aguarda agora a indigitação e, depois, promete que vai chamar todos os partidos para dialogar. “Uma maioria absoluta não é o poder absoluto, não é governar sozinho. É uma responsabilidade acrescida e governar é governar com e para todos os portugueses”, disse Costa, que ainda acrescentou que “esta maioria será de diálogo com todas as forças políticas que na Assembleia da República representam os portugueses na sua pluralidade”. Menos o Chega — uma promessa de campanha que mantém e que deixou a sala cheia de socialistas a gritar “não passarão”.

António Costa só ainda não explica como vai conciliar esse diálogo (com todos menos o Chega) com a entrega do Orçamento que quer promover rapidamente e que prometeu na campanha passar à prática mal possa — agora tem condições para isso, sem precisar de negociações, pela primeira vez desde que é primeiro-ministro. A outra promessa é que o Governo será “seguramente mais enxuto, mais curto, uma verdadeira task force para a recuperação e o progresso”.

Na sala cheia do Hotel Altis, onde o PS costuma passar as noites eleitorais, contavam-se governantes aos pares, desde o início da noite, mas também outras figuras do socialismo (e não só, já que o independente Pedro Siza Vieira, até aqui ministro da Economia, foi uma das figuras que esteve desde o início da noite) que podem estar disponíveis para integrar um Governo, caso de Fernando Medina, o presidente da Câmara de Lisboa derrotado nas últimas autárquicas. Mal Costa entrou no Altis, Medina foi o primeiro a cumprimentar Costa na entrada. Nessa altura, o líder socialista ainda vinha sem certezas de maioria, apenas com a da vitória, e à RTP, durante a noite, até disse que a maioria “não era previsível”.

A verdade é que o próprio se assustou nesta campanha com o efeito negativo que lhe pareceu vir da maioria absoluta que chegou a pedir, para assumir dias depois, em Coimbra, que afinal, naqueles dias, o que tinha “ouvido e sentido” na rua era outra coisa. “O que os portugueses querem é uma solução estável mas que assente no diálogo e na criação de consensos”. Baniu mesmo o pedido dos seus discursos. E foi praticamente sem pedir, que chegou lá.

Morte do rioísmo e Costa absoluto deixam PSD em suspenso

Uma parte do partido em estado de choque, outra parte escangalhada a rir com o enorme trambolhão de Rui Rio. Mas não inteiramente satisfeita. A vitória absoluta de António Costa deixa todos os candidatos à sucessão de Rio de sobrolho franzido e com uma equação difícil para resolver: ser líder do PSD para quê? Contas feitas, o cargo de presidente do PSD é hoje um dos lugares menos apetecíveis da política portuguesa.

As perspetivas que se colocam à frente de qualquer candidato ao lugar não são exactamente animadoras. Num partido que se habituou a ser uma máquina trituradora de líderes (só Rio foi exceção), quem chegar ao topo da hierarquia social-democrata nos próximos meses terá pela frente uma travessia no deserto sem garantias de que venha a ter sequer oportunidade para disputar as próximas legislativas. Nem seria uma estreia: Marcelo Rebelo de Sousa, Luís Marques Mendes e Luís Filipe Menezes, por exemplo, aqueceram o lugar na oposição e caíram sem hipótese de irem a votos.

Os críticos internos de Rio estão, por isso, a fazer contas à vida. Paulo Rangel não quererá entrar nestas conversas para já. Miguel Pinto Luz vai pronunciar-se nos próximos dias, mas sabe que a margem para vencer é curta. Carlos Moedas apareceu na sede eleitoral, recusou qualquer tipo de especulação e jurou lealdade à Câmara Municipal de Lisboa. Ainda assim, há um fator que ninguém ignora: a bolsa de votos do que era o rioísmo está órfã e o mais sério candidato a herdá-la é Luís Montenegro. O antigo líder parlamentar, que fez campanha ao lado de Rio, está quieto – o palco (ainda) não é o dele.

Antes das directas do PSD, Rui Rio tinha contemplado a hipótese de perder estas legislativas e estava apaziguado com a ideia de apontar um sucessor natural. Essa figura seria Paulo Rangel se o eurodeputado não tivesse frustrado todos os planos de Rio. Ainda durante a campanha, uma fonte da comitiva de Rui Rio punha as coisas nestes termos: “Se perdermos, não vejo ninguém em melhores condições do que ele [Luís Montenegro].”

O papel das tropas montenegristas não foi indiferente na disputa interna que manteve Rio no poder. Muitos dos apoiantes do antigo líder parlamentar sentiram que seria mais vantajoso deixar Rui Rio terminar o seu ciclo político do que permitir que Paulo Rangel iniciasse o seu próprio, atirando para as calendas as hipóteses de Montenegro (ou de alguém desse grupo) chegar à liderança. Outros tantos tiraram o pé do acelerador durante campanha interna, o que ajudou Rio a conseguir uma vitória contra Rangel e contra todas as expectativas que existiam. E uns quantos acabaram mesmo premiados com lugares nas listas de deputados.

A histórica sucessão começou a escrever-se nas estrelas: Rio perdia, Costa governava em minoria, tempo para desgastar, novas eleições antecipadas daqui a dois anos e, finalmente, a vitória do PSD. O que ninguém conseguiu antecipar na altura é que o próximo ciclo de António Costa vai durar quatro anos. Ninguém quer dar passos em falso nesta altura do campeonato, mas alguém terá de assumir o fardo.

Rui Rio, esse, já não está de pé. Na noite em que derrotou Paulo Rangel, o líder social-democrata fez tocar o “I’m Still Standing”, de Elton John, transformado rapidamente em hino daquela noite e uma ode à resiliência de Rio. Mas, tal como em 2019, a resiliência interna do líder social-democrata não teve reflexo nas urnas. Pelo contrário: depois de ter passado parte da campanha a aconselhar a António Costa que tivesse “dignidade” na hora da derrota, que Rio dava como certa, acabou ele próprio derrotado sem apelo nem agravo.

Desta vez, não houve música na sede eleitoral do PSD. Só apupos aos jornalistas e o alemão de uma (quase não) resposta de Rui Rio à sua continuidade à frente do PSD. O líder social-democrata reconheceu a responsabilidade pessoal na hora da derrota, assumiu que não vê como pode ser “útil” à frente do PSD durante quatro anos de maioria socialista, mas nunca, apesar da insistência da comunicação social, esclareceu se vai ou não demitir-se e quando.

“Sou o primeiro a dizer que, estando numa perspectiva de serviço, que é sempre como estive, eu não consigo argumentar como é que posso ser útil ao partido. Só se alguém argumentar. Não consigo, neste momento, havendo quatro anos de maioria absoluta”, foi repetindo Rio. A porta de saída está aberta, mas o líder social-democrata preferiu não dar para já esse passo.

Rui Rio fez a campanha que quis, como quis e quando quis. Tal como recordava o Observador no último dia de campanha eleitoral, o social-democrata teve as condições que sempre desejou para enfrentar António Costa: a ‘geringonça’ desmontou-se, as autárquicas deram o pântano sonhado, a conjuntura externa penalizou o socialista, as sondagens moralizaram o partido e a oposição interna calou-se e apareceu em peso ao beija-mão. Desta vez, não havia desculpas.

E Rio perdeu. E perdeu quando achava mesmo que ia ganhar. A direção do PSD tinha sondagens internas que lhe davam a vitória contra António Costa e agarraram-se a isso durante grande parte da campanha. Quando as sondagens oficiais puseram pela primeira vez o PSD à frente do PS, Rui Rio, que sempre desprezou as mesmíssimas sondagens, começou a fazer campanha como vencedor antecipado.

Pior: perdeu depois de ter passado grande parte da corrida eleitoral sem forçar o discurso do voto útil à direita, só o recuperando na recta final da corrida eleitoral, viu Chega e Iniciativa Liberal furarem e de que maneira a bipolarização, algo que não aconteceu à esquerda – bem pelo contrário.

Antes, tinha dispensado o CDS, o que lhe teria permitido eleger mais deputados em alguns pontos do país, e recusou qualquer tentação de ser uma força agregadora da família não socialista. Na hora da derrota, acabou a queixar-se da dispersão de votos à direita e da capacidade de António Costa impor a ideia de voto útil à esquerda — estratégia que, por decisão própria, preferiu não seguir.

Quando se julgava à frente nas intenções de votos, foi dizendo repetidamente aos socialistas que perder não era “morrer” e que António Costa não devia entrar em desesperos, nem perder a elevação. Acabou ele a perder em toda a linha. Com a derrota deste domingo foi o rioísmo que morreu.

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