Hoje em dia. São pratos caros, muito vazios, mas trabalhados com requinte, a demonstrar arte e beleza e pouca substância alimentar, pratos que só ricos podem pagar, distinguidos com deferências que os donos e empregados dos restaurantes facultam a quem paga bem. Arte é arte, para todos os efeitos, e hoje em dia nada melhor para a demonstrar do que através do estômago delicadamente comedido, assim se restaurando a “aristocrática democracia das maneiras”, exigida por João Carlos Espada, saudoso dos tempos em que o “respeito democrático” presidia sobretudo ao comportamento dos súbitos de suas majestades britânicas, mas que nós por cá também íamos atamancando nas nossas relações sociais, baseadas em normas de catecismos vários, provenientes dum passado de valores mais racionais, que famílias e escolas iam incutindo, pesem embora as discrepâncias que sempre houve, talvez pela pouca densidade escolar que nos foi comum.
Restaurando a aristocrática democracia
das maneiras
O meu voto para 2022 é que tentemos
restaurar a aristocrática democracia das maneiras que distingue o Ocidente.
JOÃO CARLOS ESPADA
OBSERVADOR, 10 jan
2022
1Este
voto pode certamente parecer peculiar quando assistimos por todo o lado a
uma crescente guerra irredentista entre tribalismos rivais. Mas é em parte
por isso mesmo que gostaria de exprimir um voto antiquado a favor de um
pluralismo tranquilo — que tenho gosto em associar a uma aristocrática
democracia das maneiras.
O
conceito de ‘aristocrática
democracia das maneiras’ é certamente estranho
às culturas políticas autoritárias e revolucionárias, da chamada esquerda ou da
chamada direita — que em tudo descobrem guerras irredentistas entre tribos,
sistemas ou regimes rivais. Mas, de certa forma por isso mesmo, é um
conceito crucial nas culturas políticas liberais não-revolucionárias e também
não-rebeldes — em rigor, também não-militantes.
2Edmund
Burke (1729-1797) — um
parlamentar liberal britânico que apoiou os colonos americanos em 1776, liderou
a impugnação do Governador da Índia na Câmara dos Comuns [depois recusada na
Câmara dos Lordes] e a seguir condenou a revolução francesa de 1789 — defendeu
que as maneiras são mais importantes do que as leis. As maneiras a que se referia eram maneiras aristocráticas, no sentido britânico do
termo, mais tarde associadas à chamada austera era Vitoriana.
Essas
maneiras aristocráticas exigiam em primeiro lugar um sentido pessoal de honra,
de auto-controlo e de dever para com os outros — e condenavam enfaticamente
como sinais de vulgaridade não-aristocrática qualquer sentimento de arrogância
ou má-criação para com os outros (a começar por falar alto em locais públicos
e, hoje em dia, estacionar em segunda fila).
Eram maneiras ou virtudes
aristocráticas, na medida em que recusavam o abaixamento dos padrões de comportamento, ainda que esse
abaixamento pudesse ser reclamado, ou praticado, pelas ‘massas’ — ou, mais
exactamente, por agitadores revolucionários falando em nome do ‘povo’ (hoje
talvez pudéssemos dizer pelas ‘redes sociais’). Mas eram também inteiramente democráticas
porque eram acessíveis
a todos,
independentemente da origem social.
Ficaram por isso conhecidas como virtudes de ‘gentlemanship’, virtudes de carácter e não de origem
social.
E
eram democráticas também num adicional sentido crucial. Burke
argumentou que “todas as sociedades precisam de uma força de controlo
sobre os seus apetites e desejos. Quanto menos essa força vier de dentro, mais
terá de vir de fora.” Por outras
palavras, as virtudes do auto-controlo aristocrático eram garantias
espontâneas e civis contra o abuso do poder político estatal e/ou contra as
intemperadas paixões revolucionárias e contrarrevolucionárias.
3Na verdade, aquelas
virtudes aristocráticas foram curiosamente assumidas pela sociedade civil
britânica, inclusivamente
de forma muito enfática pelos movimentos trabalhistas originais, com forte
influência cristã — que acusaram a aristocracia tory (conservadora) de não ser
fiel às virtudes aristocráticos das boas maneiras e do sentido de dever para
com os outros, sobretudo para com os mais desfavorecidos.
Mas
não havia aqui, deve ser enfaticamente sublinhado, qualquer hostilidade
revolucionária contra o que no continente foi chamado de ‘capitalismo’,
nem sequer contra o que no continente se chama “a direita” [“direita” e “esquerda”, são aliás termos raramente
usados no debate político britânico, talvez apenas para referir movimentos
radicais sem expressão nem respeitabilidade parlamentar]. Também nunca
houve qualquer hostilidade trabalhista contra o sistema parlamentar nem contra
a Monarquia constitucional— sobre os quais trabalhistas, liberais e
conservadores sempre competiram e ainda hoje competem entre si como melhores
defensores [com a episódica excepção Trabalhista do sr. Corbyn, que não cantava
o hino nacional ‘God Save the Queen’, e foi entretanto democraticamente
sucedido pelo moderado Sir Keir Starmer].
4Inúmeros
distintos historiadores identificaram esta aristocrática democracia das
maneiras como um dos elementos cruciais para explicar o “mistério britânico”: o de ter feito, por vezes antecipado, todas as
revoluções da era moderna, sem recurso à Revolução. A mais recente
revolução britânica, deve ser recordado, teve lugar em 1688 —
e basicamente visou restaurar a democracia parlamentar e, por essa via,
tornar desnecessárias ulteriores revoluções.
Thomas Macaulay (1800-1859) é sem dúvida uma referência crucial, tal como George Macaulay Trevelyan (1876-1962). Mas talvez a distinta historiadora norte-americana
Gertrude Himmelfarb (1922-2019) — com quem tive o privilégio de privar e por quem
tive o privilégio de ser educado — nos tenha fornecido a mais abrangente
visão retrospectiva sobre o mistério britânico não-revolucionário e sobre o
contributo decisivo da aristocrática democracia das maneiras, emergindo
espontaneamente da sociedade civil.
Também o austro-britâncio [Sir] Karl
Popper (1902-1994) e o
germano-britânico [Lord] Ralf
Dahrendorf (1929-2009) [por ambos
também e sobretudo tive o privilégio de ser educado] sublinharam
enfaticamente o papel das maneiras da ‘gentlemanship’ na cultura política
reformista e não-revolucionária dos povos de língua inglesa.
5Um
crucial detalhe deve aqui ser acrescentado, sobretudo na era tribal que vivemos: nenhum dos autores que sublinharam a especificidade
não-revolucionária britânica alguma vez a associou a especificidades étnicas ou
raciais. [Himmelfarb, Popper e Dahrendorf, a propósito, não eram de origem britânica,
todos de certa forma imigrantes). Pelo contrário, todos sublinharam o cosmopolitismo do comércio
internacional britânico e, sobretudo, o enraizamento da sua cultura política
liberal na herança europeia e ocidental fundada em Atenas, Roma e Jerusalém.
Tratava-se,
por outras palavras, de uma especificidade cultural e não étnica. E, ainda por cima, essa especificidade cultural não era sequer britânica.
Ela tinha as suas raízes na herança cultural europeia e ocidental, fundada em
Atenas, Roma e Jerusalém. O que
talvez fosse especificamente britânico, sobretudo na época moderna das
revoluções e contra-revoluções continentais, era o sentido de preservação reformista de um legado europeu ancestral.
6Uma
das cruciais sedes dessa herança cultural residia nas Universidades, sobretudo nas ancestrais Oxford e Cambridge
[que sempre se referem entre si, sem se nomearem, como ‘the other place’).
E estas, por sua vez, tinham horror em reclamar-se como inovadoras: ’Reform?
Reform? Aren’t things bad enough already?’ foi a consagrada expressão do
director do ancestral All Souls College quando lhe disseram que o reitor de
Oxford o convocava para uma reunião sobre reformas centralmente desenhadas.
Olhares
radicais descrevem hoje aquela resposta como expressão de imobilismo
reaccionário. Mas tratava-se, pelo contrário, de um
tranquilo entendimento da Universidade como lugar de herança tranquila de um
legado ancestral, herdado de Atenas, Roma e Jerusalém. Este legado poderia e deveria ser gradualmente
adaptado a novas circunstâncias, mas não deveria ser centralmente
re-desenhado com base em planos centrais inspirados no racionalismo dedutivo
continental.
Paradoxalmente,
as universidades ocidentais, sobretudo britânicas e norte-americanas, são hoje
palco de tribalismos inovadores rivais.
De um lado, assistimos ao radicalismo fundamentalista, auto-designado
“woke”, que condena o Ocidente e pretende “cancelar” o discurso livre de todos
os que não concordam com a sua ortodoxia. Por outro lado, vemos emergir uma
reacção militante rival que pretende contrapor uma ortodoxia rival, em vez de
simplesmente restaurar a conversação livre entre argumentos rivais.
7Se devemos contrariar o tribalismo em todas
as esferas da vida social, a
prioridade em meu entender deve estar na Universidade. É ela a mais ancestral instituição ocidental que
permitiu preservar e transmitir a herança de Atenas, Roma e Jerusalém, à
revelia de múltiplos disparates políticos. E conseguiu fazê-lo porque se
recusou a ser sede de rivalidades políticas tribais. A Universidade é a sede por excelência da
aristocrática democracia das maneiras.
Esta ideia ancestral foi memoravelmente celebrada nas palavras de John Henry
Cardinal Newman (1801-1890):
“Uma
Universidade é um lugar onde o inquérito é promovido e as descobertas verificadas
e aperfeiçoadas, e a rudeza tornada inócua, e o erro exposto, pela conversação
de mente com mente e de conhecimento com conhecimento.”
8Esta
ideia fundamental de Universidade foi recordada por outro imigrante na América,
o distinto filósofo alemão Leo Strauss
(1899-1973). Disse ele
que “a educação liberal é o antídoto para a cultura de massas, […] para a
sua tendência para produzir somente especialistas sem espírito ou visão e
voluptuosos sem coração. A educação liberal é a escada pela qual tentamos
ascender da democracia de massas para a democracia no sentido original —
democracia, numa palavra, entendida como uma aristocracia que se alargou a uma
aristocracia universal”.
Post scriptum 1: Parabéns
enfáticos ao semanário
Expresso, que acaba de
celebrar 49 anos — sempre dedicados à liberdade de informação e de opinião.
Fundado corajosamente ainda durante a patética ditadura do chamado Estado Novo
[‘Novo’ como distintivo do despotismo da inovação, teria dito Edmund Burke, em
defesa da ancestral aristocrática democracia liberal], o Expresso manteve
sempre o sentido de liberdade e de pluralismo que distingue o jornalismo do
livre Ocidente. Mil obrigados ao Expresso e ao seu fundador, Francisco Pinto Balsemão, pelo aristocrático sentido democrático de dever para
com a liberdade. E um voto de genuína solidariedade contra o vil ataque
informático de que o jornal foi alvo precisamente quando assinalava o 49º
aniversário.
Post Scriptum 2: Parabéns
à Duquesa de Cambridge, Catherine
Middleton, que fez
ontem, domingo 9 de Janeiro, 40 anos. A sua elegância, sentido de dever e boas
maneiras constituem sinais encorajadores de que a herança exemplar da Rainha
Isabel II — símbolo primeiro da aristocrática democracia das maneiras — vai
perdurar contra a vulgaridade dos tribalismos rivais.
POLÍTICA
DEMOCRACIA
SOCIEDADEg
COMENTÁRIOS
Ping PongYang: Realmente a falta de maneiras é
uma coisa confrangedora. Não é um bem de luxo, não paga impostos, não é
afectada por factores hereditários, ambientais, etc... Ainda por cima é uma coisa que
fica bem na maioria das circunstâncias. Há no entanto algumas excepções. Maria Nunes: Excelente. Não Rio: Patético! Fazer acreditar que a
miséria da revolução industrial inglesa era aceite por um povo livre e
informado que assim decidia nas urnas... É mesmo história para crianças. Que
tal recorrerem a adultos para escreverem artigos de opinião? Esta malta sem
noção da realidade constrói cada narrativa. Nuno Fonseca: Tira o
"aristocrático" amigo, só boas maneiras. Bernardo Vaz Pinto: Muito bom , muito claro…mas a
relativização pós moderna não quer deixar nada por destruir , para se assumir
dona das cinzas… A V2:
E, já agora, que
comam de boca fechada e se arranjem de acordo com a ocasião (e nem sequer estou
a pensar em fraques até às 13h, chapéus até às 16h ou vestido de cocktail até
às 19h... só num simples fato vs jeans). Falem baixo e deixem a conversa e os
chocolates que usam e abusam na Gulbenkian em casa... civilité, se faz
favor... Maria
Cordes > A V2: Não metam a faca na boca, e não tirem o casaco para o pendurar na cadeira,
durante o jantar!
josé maria: Ó João Carlos Espada, olhe que essa
da "aristocrática democracia das maneiras" tem muito que se lhe
diga... Então você não conhece muitos exemplos históricos de podridão aristocrática?
Deixe lá o Nietzsche em paz com
o seu modelo aristocrático obsessivo... Lourenço de Almeida: muito bom...e útil. obrigado. bento guerra: Onde é que este vê
"aristocrática democracia" na Europa ?( e agora também nos States) Mario Guimaraes: Este estilo churchilliano de
raciocinar, a aristocracia do pensamento, a claridade das ideias parece
esconder uma conversão a este pensamento. Quem esteve do outro lado da imagem
do espelho e se converte defende a pureza dos actos e comportamentos. O povo
precisa de ser educado e os aristocratas estão aí. O civismo não pertence a uma
classe mas a uma educação, desde criança. Rogerio
Russo:_ Yes Sir!
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