quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Uma peça de fôlego


Que me foi enviada por João Sena, a quem agradeço a sagaz intenção de me abrir as portas do saber, integrando-me nas modas de submissão às políticas dos grandes senhores, como esses americanos e quejandos, esquecidos de que também eles ocupam espaços continentais onde exterminaram os aborígenes para figurarem como donos e senhores desses espaços que ninguém pode reclamar, porque eles próprios se constituíram seus proprietários. Sempre foi do consenso universal que quem quer conhecer o vilão bastará pôr-lhe a vara a mão e a vara a eles pertence. Mas isto são resquícios de uma zanga passadista – infantil se dirá, ou obtusa, ou caprichosa, visto que a razão pertencerá sempre ao da vara. De resto, pouco importa tudo isso, assim lutássemos nós hoje por uma vitória, como lutámos ontem por uma derrota, aparatosamente florida… embora só depois da queda da cadeira do velho ditador. Mas a nossa luta hoje é pela permanência na esmola alheia, é essa a lição que deixamos aos nossos vindouros. Sem flores, é certo. Substituídas estas pela desfaçatez. Desvergonha também se chama.

Acrescento apenas dois excertos contidos em “Cravos Roxos” (1981), o primeiro, “Os Colonos”, um excerto de um texto meu de “Pedras de Sal” (I livro - em 2ª Edição - em “CRAVOS ROXOS”), o segundo  Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente” de “Lusos 74”, (III livro de “Cravos Roxos”), destinados a exemplificar - embora infimamente - como me fui apercebendo e vivendo alguns desses dados transpostos no excelente estudo de David Martelo:

«OS COLONOS:” A Metrópole chamava às suas colónias, colónias. Mais tarde disseram-lhe que isso parecia mal perante s estrangeiros que se iam desfazendo das deles e a Metrópole em zelo dedicado, passou a chamar-lhes províncias, conquanto aos seus habitantes não apelidasse de modo algum de provincianos.” (…) “Mas recentemente a designação de “províncias” foi ainda modificada para a de “estados”, a perspectivar, sem dúvida, o estado de perturbação que já se sabia havia de surgir. E surgiu finalmente. Parece que havia muitas pressões externas de outros povos também colonialistas, mas desejosos de se redimirem desses defeitos mostrando boa vontade para com os negros mal explorados por nós, para depois os poderem explorar eles melhor.” (…) “As colónias ou províncias ou estados passaram a ser um estorvo, e com grande alarido e profusão de flores românticas, entregaram os estados a quem os queria, voltando imediatamente a chamar- lhes colónias, sem sequer passarem pelo estado intermédio de províncias”…»

“Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente”: «”… Quanto ao cinismo da Inglaterra, o Guerra Junqueiro estava evidentemente escamado por causa da questão do mapa cor-de-rosa, quando a Inglaterra nos refutou a ocupação da parte da África em cor-de-rosa no mapa, mas de facto não vejo cinismo nisso, apenas um fenómeno de atracção pela cor, comum a diversos seres. O que me trouxe, todavia, à mente os versos de Junqueiro foi a notícia de que a Inglaterra não apoiaria a Rodésia nas suas pretensões ao governo unitário branco, visto que a maioria ali é preta, e por conseguinte com mais direitos. Constatei assim um acréscimo de concepções humanitárias em relação ao passado colonial inglês, passado sem tantos escrúpulos puritanos, e certamente ansioso por se remir disso.

“Já o abandono dos Estados Unidos no caso de Angola (e mesmo de Moçambique) me surpreendeu mas atribuí-o a uma ampla generosidade para com a Rússia, que tanto tem demonstrado a sua necessidade de se ampliar, e incluí a questão dentro de um justificativo de ordem bíblica, digo do apreço de Cristo e portanto do meu também, como sua afeiçoada.

“Quanto à Inglaterra, sinto-me perplexa, pois não descortino qualquer solução bíblica para justificação da sua aversão pelos irmãos brancos da região cor-de-rosa no mapa, e só vejo nisso repúdio actual pela cor dantes defendida com supremacia incontestável, apesar dos versos apostrofantes do Guerra Junqueiro.

“A menos que seja um jogo, não para inglês ver, mas sim para enganar o resto do mundo fazendo-o crer no seu colaboracionismo com os pretos maioritários africanos, de acordo com esse resto do mundo também hipocritamente colaboracionista, mas na realidade ajudando à socapa os brancos minoritários de origem inglesa das terras do sul de Africa- ….»

O Texto de David Martelo:

Revista Portuguesa de História Militar Ano I, nº 1 (Dezembro 2021).

Dossier: Início da Guerra de África 1961-1965 ISSN 2795-432

 

CONCEITO ESTRATÉGICO DO ESTADO NOVO 1945-1965

 (Artigo originalmente publicado no n.º 1 da Revista Portuguesa de História Militar)

Em 25-11-1947, na biblioteca da Assembleia Nacional, o Presidente do Conselho dirigia-se à Câmara para dar nota dessa sua ilusão sobre o mundo do pós-guerra. No que ao império colonial podia interessar, afirmava: Por feliz coincidência ou providencial disposição, os destinos de toda a África são solidários com a Europa do ocidente. Excepto no que respeita ao Egipto e à Abissínia (mas não à África do Sul, membro da Comunidade Britânica), a Inglaterra, a França, a Bélgica, a Itália, Portugal e a Espanha têm, através de regimes políticos ou económicos diversos, a direcção efectiva e a responsabilidade do trabalho, progresso e bem-estar do sentimento africano. Uma política concertada de defesa e de valorização económica porá ao dispor do Ocidente produtos e riquezas que aumentarão de maneira assombrosa as suas possibilidades de vida e a sua contribuição para o intercâmbio mundial. A África é a base suficiente para a política que se deseje fazer.


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 David Martelo

“Eu devo desde já afirmar que o Plano de Fomento representa por si mesmo [...] uma afirmação de paz e um desejo de paz entre as nações, exprime a necessidade de que não se sacrifiquem as economias a incomportáveis esforços de defesa” (1) . SALAZAR, 28-05-1953

Resumo

O final da 2.ª Guerra Mundial sinaliza, para Portugal, o início de uma mudança de dependência estratégica. A preponderância adquirida pelos EUA na Europa e a assunção da sua qualidade de poder naval dominante implicam que a velha aliança com o Reino Unido se vá, progressivamente, acomodando à liderança americana e aos laços estabelecidos com a concessão de facilidades aéreas e navais no arquipélago dos Açores. Todavia, tendo as duas potências anglo-saxónicas, através da assinatura da Carta do Atlântico, em 1941, criado os fundamentos da ordem mundial do pós-guerra e da Organização das Nações Unidas, o governo de Lisboa ficava alertado para as implicações que daí poderiam ocorrer no tocante à sobrevivência dos territórios do Ultramar. O passo seguinte – a adesão ao Pacto do Atlântico Norteé assumido com a satisfação de um êxito de política externa, mas com a crescente consciência de que a defesa do Império seria, cada vez mais, um problema a resolver sem aliados. As independências pacíficas de colónias europeias, na Ásia e em África, assim como as problemáticas resistências de potências coloniais europeias a revoltas armadas de libertação, não contribuíram em nada para alterar a política colonial de Salazar. A fase seguinte, iniciada em 1961, é o envolvimento de Portugal em três conflitos armados desencadeados por movimentos de libertação, sucessivamente

 

(1)SALAZAR, António O., Discursos e Notas Políticas, Vol. V, p. 111. Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323) Palavras chave: Conceito estratégico; Portugal; Estado Novo; Ultramar Dossier: Início da Guerra de África 1961-1965 ISSN 2795-432

 

em Angola, Guiné e Moçambique, que prosseguiriam, com crescente violência, para lá de 1965, implicando um esforço de guerra de enormes dimensões, numa conjuntura internacional marcadamente adversa.

AntecedentesÚltimos anos da predominante influência britânica

 Do ponto de vista estratégico, o período inicial da 2.ª Guerra Mundial configurava ainda, para Portugal, um cenário de características semelhantes às que haviam existido desde 1661, quando se renovara a velha aliança com a Inglaterra, visando, então, já não só a independência no contexto ibérico mas também a defesa e conservação das possessões ultramarinas.

 O facto de a Grã-Bretanha continuar a ser a primeira potência marítima conferia a Portugal a garantia de Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323 acesso aos territórios de além-mar. O Tratado de Amizade e Não-Agressão entre Portugal e Espanha (também conhecido como Pacto Ibérico), firmado em Março de 1939, acrescentava a este cenário geopolítico uma garantia de paz no plano regional.

Ao iniciar-se a guerra na Europa, em 1939, os dois velhos aliados entenderam que seria mais útil o governo de Lisboa anunciar a não-beligerância, não fazer uma declaração formal de neutralidade e manter a liberdade para agir de modo diverso se, no futuro, as condições políticas o aconselhassem.

No Verão de 1941, o desenrolar da guerra colocara a Grã-Bretanha como única potência da Europa Ocidental que ainda resistia à Alemanha nazi. Como consequência de uma política de isolamento, reassumida após o final da 1.ª Guerra Mundial, os EUA mantinham uma neutralidade que a administração Roosevelt ia, progressivamente, ajustando a uma crescente simpatia pela Grã Bretanha.

Em 9 de Agosto, o presidente Franklin D. Roosevelt e o primeiro-ministro britânico Winston Churchill encontraram-se secretamente em Placenta Bay, na Terra Nova. Entre 9 e 12, os dois líderes discutiram novas fórmulas de auxílio da parte dos EUA à Grã-Bretanha. Todavia, no espírito do presidente americano, o auxílio que estava na disposição de disponibilizar implicava algumas transformações políticas, à escala mundial, sem as quais não faria sentido. No final das conversações, seria anunciado, em nome dos Estados Unidos e do Reino Unido, uma declaração de princípios das duas potências, com 8 parágrafos, que ficaria conhecido como Carta do Atlântico e seria a base para a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). No seu n.º 3, delineava-se um conceito que iria colidir com a ideia da perenidade do Império Português: Que respeitam o direito de todos os povos a escolherem a forma de governo sob a qual querem viver; e desejam que os direitos soberanos e a autonomia sejam devolvidos àqueles a que tenham sido arrancados pela força. Estava dado o primeiro impulso gerador da profunda mudança do pósguerra, com a ascensão dos EUA e o declínio colonial europeu.

Ao atingir-se o final do ano, a guerra deixa de ser europeia e propaga-se a todo o globo. Apesar da neutralidade de Portugal, em 17-12-1941, sem consulta prévia, uma força mista australiana e holandesa ocupa Timor-Leste, a pretexto de defenderem o território contra uma eventual invasão japonesa. O governador não aceita as condições do ultimato que lhe é apresentado e constitui-se prisioneiro do comandante invasor. Em 20-02-1942, as tropas japonesas atacam a colónia portuguesa e facilmente neutralizam a força ocupante. A penosa situação assim criada foi sendo gerida diplomaticamente, entre os governos de Lisboa e de Londres, sem que, inicialmente, os EUA se vissem envolvidos na sua resolução.

 Os pensamentos do governo de Washington relativamente a Portugal estavam, então, focados na necessidade da ocupação dos Açores, para aí instalar bases aéreas e navais. Em 18-06-1943, o embaixador britânico informa o governo português de que o governo de Sua Majestade resolveu, em nome da aliança existente entre Portugal e a Grã-Bretanha há seiscentos anos, pedir ao governo português para lhe prestar a sua colaboração concedendo-lhes as facilidades de que tem necessidade nos Açores.(2)

A nota do governo de Londres conclui com a garantia da retirada das forças britânicas, no fim da guerra, e da manutenção da soberania portuguesa em todos os territórios do Ultramar. Em 18-08-1943 (embora datado de 17) é assinado o acordo que concede à Grã-Bretanha as facilidades de utilização do aeródromo das Lajes e do porto da Horta, a partir de 8 de Outubro desse ano. Os termos do acordo sobre os Açores não foram do agrado do governo americano. De facto, o texto assinado não previa a concessão de facilidades às forças armadas dos EUA. Apenas a permissão de reabastecimento em combustível era extensiva a navios das Nações Unidas. Em Novembro de 1944, o governo americano aceita, finalmente, as condições do governo de Lisboa para a instalação de uma base aérea na ilha de Santa Maria: a participação de forças portuguesas nas operações militares para a reocupação de Timor. Obtido o acordo e cumprida a parte portuguesa, estava dado um passo para a ligação especial que então se iniciaria entre Portugal e a nova primeira potência marítima mundial.

 

O cenário político do pós-guerra e a crescente predominância americana

Em 2 de Agosto de 1946, o embaixador de Portugal nos EUA, João de Bianchi, escreve uma carta ao secretário-geral da ONU, Arkady Sobolev, na qual formaliza o pedido de adesão do governo de Lisboa à nova organização internacional, objectivo que seria inviabilizado devido à imagem que o regime de Salazar construíra de afinidade política com as potências europeias derrotadas na guerra.3 No imediato, a questão da continuidade dos impérios coloniais parece não preocupar Salazar. Em 25-11-1947, na biblioteca da Assembleia Nacional, o Presidente do Conselho dirigia-se à Câmara para dar nota dessa sua ilusão sobre o mundo do pós-guerra. No que ao império colonial podia interessar, afirmava: Por feliz coincidência ou providencial disposição, os destinos de toda a África são solidários com a Europa do ocidente. Excepto no que respeita ao Egipto e à Abissínia (mas não à África do Sul, membro da Comunidade Britânica), a Inglaterra, a França, a Bélgica, a Itália, Portugal

 

(2)  NOGUEIRA, Franco, Salazar, Vol. III, p. 438.           (3) A concretização da admissão do país na ONU só viria ocorrer em 14 de Dezembro de 1955. Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323)

 

e a Espanha têm, através de regimes políticos ou económicos diversos, a direcção efectiva e a responsabilidade do trabalho, progresso e bem-estar do sentimento africano. Uma política concertada de defesa e de valorização económica porá ao dispor do Ocidente produtos e riquezas que aumentarão de maneira assombrosa as suas possibilidades de vida e a sua contribuição para o intercâmbio mundial. A África é a base suficiente para a política que se deseje fazer.(4) Era uma visão deveras optimista. O cenário internacional do pós-guerra estava a caminho de uma vincada reconfiguração. A cisão verificada entre os aliados ocidentais e a URSS foi criando um novo quadro de crescente tensão, que parecia ir conduzir a uma nova conflagração. As tropas soviéticas ocupavam grande parte dos países da Europa de Leste e não tinham procedido a uma desmobilização tão extensa como a que se verificara nos aliados ocidentais. Assim, face ao poderio militar da URSS, os governos americano e britânico abordam o governo português sobre a intenção de se constituir, com a participação de Portugal, uma aliança defensiva que abarcasse o Atlântico Norte, mas com a exclusão da Espanha. Esta imposição não deixa de causar algumas perplexidades, dados os compromissos existentes entre os dois países ibéricos. Mas a circunstância de a aliança, a concretizar-se, se destinar a fazer frente à ameaça do comunismo internacional, tornava o empreendimento aliciante aos olhos de Salazar. Também comportava riscos, é certo, designadamente as alusões que o texto do tratado fazia à Carta das Nações Unidas e à profissão de fé nos regimes democráticos. Anteviam-se dificuldades relativamente aos territórios ultramarinos e ao próprio regime do Estado Novo. É verdade que, quanto à questão da democraticidade do regime português, não houvera qualquer evolução que lhe conferisse uma imagem mais liberal. Se a Grã-Bretanha e os EUA tinham feito a Portugal o pedido de adesão, era porque estavam dispostos a perdoar os desvios ditatoriais do Estado Novo, a troco da utilização das estratégicas posições portuguesas no Atlântico. E esse perdão, a nível interno, iria surgir como um soberbo trunfo de Salazar perante a oposição democrática. Assim, em 04-04-1949, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Caeiro da Mata, subscreve, por Portugal, o Pacto do Atlântico, do qual vai nascer a respectiva organização político-militar designada por Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). (5) A adesão de Portugal, não pondo termo à validade da aliança britânica, transfere grande parte do seu significado para a nova primeira potência marítima – os Estados Unidos. No âmbito exclusivo da velha aliança, permanecem, contudo, as garantias no respeitante aos territórios ultramarinos portugueses. Pelo menos em teoria.

 

 (4)  SALAZAR, António O., Idem, Vol. IV, pp. 293-294.          (5) Ou NATO, na versão anglo-americana.

 

Em 25-07-1949, na sessão da Assembleia Nacional em que o governo justifica a adesão de Portugal à nova aliança, Salazar descreve, assim, o novo cenário geopolítico em que o país acabava de se inserir:

“O deslocamento do centro de gravidade da política mundial para oeste, verificado a seguir à primeira grande guerra, não só trouxe os Estados Unidos para o primeiro plano dessa política, mas aumentou o valor e os riscos do Atlântico, de cuja segurança passaram a depender quase exclusivamente a Europa, a África e a América. Em tais condições, o apoio dos Estados Unidos tornou-se necessário à segurança dos países ribeirinhos do Atlântico Norte na mesma medida em que as posições atlânticas passaram a ser necessárias à defesa americana.” (6) Estas palavras não eram mais do que a adequação do governo de Lisboa ao facto de o interesse dos EUA pelas bases dos Açores sempre se haver mantido na primeira linha das relações luso-americanas, mesmo depois do final da guerra. Do lado português, foram sendo concedidas autorizações temporárias de trânsito pelas bases, mas recusava-se qualquer acordo que não corporizasse um compromisso bilateral de defesa, com inclusão dos territórios ultramarinos. Era, no fundo, o retorno à política de aliança com a potência naval dominante, política essa seguida, desde a Restauração, através do reforço da aliança inglesa. Embora não questionasse, ainda, a presença de Portugal no Ultramar, a América não aceita essa cláusula, pelo que as negociações se prolongam num impasse. Esta negativa da parte dos EUA, conjugada com a decisão britânica de se desfazer do seu Império, estabelecia para Portugal – no que respeitava aos seus territórios ultramarinos – um verdadeiro cenário de isolamento. Ficava claro que, em caso de agressão militar às suas colónias, Portugal só poderia contar com a sua própria força – que era bem pouca. Esta nova conjuntura geoestratégica foi rapidamente entendida como vulnerabilidade histórica nos meios militares portugueses, mas seria deliberadamente ignorada pelo governo. Todavia, com a constituição da OTAN e a situação de tensão que tende a agravar-se entre os países ocidentais e a URSS, estão criadas as condições para um entendimento entre Portugal e o governo de Washington. Assim, em 07-09- 1951, é assinado entre os dois países um acordo de auxílio mútuo, que prevê a utilização permanente da base das Lajes pelas forças armadas americanas. A exclusão da Espanha da OTAN provoca algumas perplexidades, dados os compromissos existentes entre os dois países ibéricos, e é embaraçosa para o governo português, dando origem a um arrefecimento das relações com aquele país. A solução encontrada para minorar a mágoa espanhola foi a concessão de uma entrevista de Salazar à United Press, na qual aproveita a ocasião para reafirmar, publicamente, a validade do Pacto Ibérico e a sua compatibilidade com os princípios e objectivos da OTAN. No âmbito restrito das chancelarias, a

 

(6) SALAZAR, António O., Idem, Vol. IV, p. 413. Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323

 

posição do governo português será sempre de apoio à adesão da Espanha à nova aliança, condição considerada indispensável para a defesa do conjunto ibérico. Quase em simultâneo, começa a rodar o relógio da ofensiva anticolonial. Em 27-02-1950, o embaixador da União Indiana em Lisboa, Menon, formaliza, junto do Governo português, a reivindicação dos territórios de Goa, Damão e Diu, no que era o início de uma luta diplomática, na qual o governo de Lisboa se aplicaria profundamente, na convicção de que não se tratava de um conflito para o qual pudessem ser decisivas as armas portuguesas. Procurando ganhar tempo, sem, todavia, ceder às pretensões indianas, o governo empenha-se, então, numa operação de cosmética legal, que deve ser entendida como uma clara opção estratégica de Resistência. Assim, na revisão constitucional de 1951, o Acto Colonial é revogado, as suas disposições – com algumas alterações – são integradas no corpo da Constituição e os territórios sob domínio português deixam de se designar Colónias e passam a denominar-se Províncias. Provavelmente, mais por necessidade do que por convicção, Salazar faz, deste modo, uma espécie de “descolonização” por via jurídica. Todavia, ao manter no artigo 133.º que “É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de colonizar as terras dos Descobrimentos sob a sua soberania”, daí resultava a singular missão de colonizar sem que houvesse colónias, contradição que só viria a ser eliminada na revisão de Agosto de 1971. Todavia, no estrito campo das ameaças, Salazar não deixa dúvidas quanto às prioridades que entende deverem servir o interesse nacional. Em 10-07-1953, discursando na 1.ª reunião plenária da União Nacional, sublinhava que “as nações da Europa Ocidental, ante a ameaça do expansionismo russo, só têm que seguir o caminho que lhes é indicado pela maior afinidade de interesses ou pelo maior parentesco de tipos de civilização, quando não pelas imposições da geografia. Que essa reduzida Europa possa um dia representar uma força independente ou de equilíbrio entre os dois blocos, é possível, mas não estão ao alcance da vista nem o prazo nem os caminhos por onde lá pode chegar. De modo que, no momento presente e no futuro próximo, a colaboração com os Estados Unidos, sob a efectiva direcção destes, é, para não dizer a melhor, a única solução que se oferece para a magna dificuldade dos nossos dias.”(7) A década de 1950 corresponde, portanto, a um período em que Salazar se sentiu constrangido a adoptar uma atitude publicamente pró-americana, que o início da guerra em Angola, em 1961, viria interromper. Mas o delineamento da posição de Portugal junto dos seus aliados era apresentado, publicamente, com assinalada clareza. No plano da política europeia, fora do contexto da Aliança Atlântica, Salazar está atento ao movimento de integração europeia dos Estados ocidentais. A ideia

 

(7) SALAZAR, Discursos e Notas Políticas, Vol. V, pp. 131-132.

 

não o entusiasma e disso dá conta, em 19-01-1956: “Esse vago pensamento começa já a revestir aqui e além formas jurídicas conhecidas, como a de federação ou confederação. Se ao meu espírito é suficientemente nítida a razão por que alguns Estados defendem para o Ocidente europeu tais formas de integração, não consegui ainda descortinar os motivos que impelem outros a aceitar, senão a bem dizer, esta sorte de liquidação nacional.”(8) Menos clara se apresentava a situação fora da Europa. O conflito diplomático com a Índia, por causa de Goa, Damão e Diu, atinge elevados níveis de tensão política em 1954, levando Salazar a fazer uma longa intervenção perante a Assembleia Nacional, em 30 de Novembro, na qual faz questão de sugerir a viabilidade de uma épica resistência armada à ameaça indiana, deixando para a História esta arrebatada quão inexequível directiva estratégica: “E se apesar de tudo, a União Indiana levar a guerra ao pequeno território, o que podem fazer as forças que ali se encontram ou vierem a ser concentradas? Bater-se, lutar, não no limite das possibilidades, mas para além do impossível. Devemos isso a nós próprios, a Goa, à civilização do Ocidente, ao mundo, ainda que este sorria compadecidamente de nós. Depois de afagar as pedras das fortalezas de Diu ou de Damão, orar na igreja do Bom Jesus, abraçar os pés do Apóstolo das Índias, todo o português pode combater até ao último extremo, contra dez ou contra mil, com a consciência de cumprir apenas um dever. Nem o caso seria novo nos anais da Índia.”(9) A força da realidade iria conduzir, no entanto, a um dos mais dolorosos golpes no prestígio do Exército – a invasão do Estado da Índia, em Dezembro de 1961.

As Forças Armadas portuguesas no contexto da OTAN

Na sequência da adesão ao Pacto do Atlântico, as Forças Armadas portuguesas vão passar por nova reforma estrutural. Da parte da Aliança, é patente o maior interesse na modernização dos meios navais e aéreos. No Exército, muito mais desactualizado nos planos mental e tecnológico, e com os defeitos de uma longa permanência como força de “ordem pública” do regime, tudo será mais difícil e demorado. Com a criação do cargo de Ministro da Defesa, no âmbito da Presidência do Conselho de Ministros (DL 37.909, de 1 de Agosto de 1950), o Ministério da Guerra passava a designar-se por Ministério do Exército. Para primeiro titular do novo Ministério da Defesa é designado o coronel Santos Costa, já bastante desgastado pelas funções governamentais que, no âmbito do Exército, vinha desempenhando havia mais de catorze anos. Sucede-lhe, na pasta do Exército, o brigadeiro Abranches Pinto. Como Subsecretário do Exército é nomeado o major Horácio Sá Viana Rebelo. No âmbito deste ramo, o levantamento de

 

(8) Ibidem, p. 319. (9) Ibidem, pp. 277-278. Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323

 

uma Grande Unidade de combate – a 3.ª Divisão de Infantariainiciada no final de 1952, conduz a transformações significativas nos aspectos doutrinários e na aquisição de equipamento de combate moderno. Esta decisão explicita de forma eloquente a prioridade estratégica da Defesa Nacional: a Europa e o enfrentamento da ameaça soviética. Não era no Ultramar que se vislumbravam ameaças ao futuro da nação portuguesa. Na reestruturação então efectuada, importa destacar o que respeita ao desenvolvimento do Serviço de Informações Militares e a sua ligação aos serviços congéneres da aliança. Com o funcionamento desta estrutura, as Forças Armadas passam a ter acesso directo e autónomo a uma informação estratégica que não é ‘filtrada’ pelo governo. Esta autonomia, conjugada com os contactos pessoais, ao mais alto nível, dos chefes militares portugueses com os seus homólogos da OTAN, conduz, directamente, à percepção dos riscos que Portugal corre se mantiver inalterada a sua política ultramarina. A derrota do exército francês em Dien-Bien-Phu e o deflagrar da revolta na Argélia (1954), as conclusões da conferência de Bandung (1955) e, por fim, o fracasso político-militar anglofrancês na crise do Suez (1956), são sinais de um tempo novo, cujo significado não passa despercebido aos militares portugueses. A formulação de um conceito estratégico adequado ao difícil cenário de então implicava um estudo desapaixonado das condicionantes do potencial nacional, nas suas vertentes económica, diplomática, ideológica, geográfica e militar. Com os elementos que hoje se conhecem, poder-se-á dizer que, no tocante aos responsáveis militares de então, esse estudo foi conduzido com lucidez e consciência da gravidade da situação. Do antecedente, a estratégia de defesa do Ultramar assentara em pressupostos de natureza diplomática, com especial relevo para o complexo e imprevisível papel da aliança com o Reino Unido, que fazia da nossa presença em África e na Ásia uma presença acompanhada, o que consentia um módico custo financeiro na defesa do Império, como sempre preconizara o pensamento político de Salazar.

Do Atlântico para a África – Percepção de vulnerabilidade

Os movimentos de inspiração anticolonial que se reforçam após a conferência de Bandung despertam Salazar para a importância da África relativamente à Europa Ocidental. Inquieto pelo acesso de alguns países norte-africanos à independência, o chefe do governo, discursando na Sociedade de Geografia, em 30-05-1956, entende deixar as seguintes notas de análise geopolítica:Não nos temos cansado de dizer que a África é complemento natural da Europa, necessário à sua vida, à sua defesa, à sua subsistência. Sem a África, a Rússia pode desde já ditar ao Ocidente os termos em que lhe permite viver. [...] Um vento de revolta sopra em várias regiões de África, atiçado por potências conhecidas em obediência a conhecidos interesses e ambições. Esse vento parece justificar o anticolonialismo em moda, ao mesmo passo que dele se alimenta. [...] O princípio da autodeterminação fundamenta e legitima a independência dos povos, quando o grau de homogeneidade, consciência e maturidade política lhe permite governar-se por si com benefício para a colectividade.”(10) Na visão de Salazar, era essa falta de ‘homogeneidade, consciência e maturidade política’ que desaconselhava a adopção por Portugal do princípio da autodeterminação. No essencial, através do seu chefe, o governo português acabava de esboçar um conceito que iria sustentar a política ultramarina e a sua vertente militar, nos 18 anos seguintes. E, esse conceito fora elaborado e anunciado sem cuidar de saber se existiam os meios para a sua aplicação. Ainda em 1956, é nomeado Subsecretário de Estado do Exército o coronel Almeida Fernandes. É através dele que entra no ministério uma nova sensibilidade no tocante aos problemas do Ultramar. De facto, estava o Exército de tal modo fascinado pela integração na estrutura da OTAN que tudo o resto parecia secundário. Havia planos de transferência de tropas entre as parcelas portuguesas no mundo, mas apenas para reforço do Teatro de Operações europeu. A evolução da situação internacional – sobretudo após o fiasco da Crise de Suez (Outubro/Novembro de 1956), do qual as potências coloniais França e Reino Unido saíram fragilizadas – passava a impor, agora, que se previsse o reforço dos territórios ultramarinos com forças metropolitanas. A reorientação do esforço de defesa não iria, no entanto, revelar-se tarefa fácil. A figura de Salazar ergue-se, então, como o maior obstáculo à desejada reorganização:chocava-me a todo o momento”, diria mais tarde o então Subsecretário, “a opinião expressa pelo Dr. Salazar de que havíamos atingido já há muito uma exagerada percentagem de encargos com as Forças Armadas, percentagem essa que não podia ser, de forma alguma, ultrapassada”.(11) A verdade é que podia mesmo, como se apuraria após o início da guerra em Angola, em 1961. Mas essa atitude de Salazar apenas sublinha a predominância das Finanças sobre a Defesa, cenário no qual as questões estratégicas são remetidas para o plano dos estudos, mais ou menos académicos. E, para completar essa realidade que ia decorrendo na sombra dos gabinetes, havia, ainda, as atitudes públicas do chefe do governo em matéria tão eminentemente estratégica, como se deduz desta passagem de um discurso proferido em 23 de Maio de 1959: “Nós não pensamos em negar o relativo atraso de algumas regiões e a deficiência de alguns serviços. É evidente faltarem estradas e pontes, faltarem hospitais, faltarem escolas, e faltarem até,

 

(10) Ibidem, pp. 371-373.               (11) ANTUNES, J. Freire, A Guerra de África (1961-1974), p. 163. Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323

 

senhores, elementos de polícia e forças de defesa. Por que milagre então, de Timor a Cabo Verde, há paz e todos podem notar o tranquilo viver das populações? Porque pode atravessar-se de lés a lés Angola ou Moçambique, não se contando senão com a boa disposição do nativo, a sua fraterna ajuda, no fundo o seu portuguesismo?” (12) A escassez de forças policiais e militares no Ultramar’ é, portanto, não só do pleno conhecimento do chefe do governo, como resulta, segundo ele, de uma situação de paz que o indefectível portuguesismo das populações em absoluto garante. O certo é que a afirmação pública desta crença como que dita uma espécie de directiva de planeamento estratégico, na qual, pela lógica das coisas, a probabilidade de uma guerra revolucionária em Angola ou na Guiné não será maior do que no Minho ou no Algarve. Sendo assim, também se não justifica o envio de tropas para o Ultramar – o que, segundo alguns responsáveis políticos da época, poderia, até, assustar os colonos brancos. É a adesão acrítica a esta linha de pensamento e à figura de Salazar que pode explicar o comportamento hesitante de parte dos chefes militares nas semanas que antecedem a proclamação da necessidade de “andar depressa e em força” para socorrer Angola. No entanto, apesar deste aparente optimismo, o governo, através dos ministérios militares, apercebe-se de que chegara a hora de proceder a uma modificação nas prioridades de defesa. São, por conseguinte, feitas recomendações no sentido de não serem aceites novos encargos no âmbito da OTAN, para não incrementar os encargos financeiros, embora se devam honrar os compromissos anteriores. A tempestade aproxima-se Em 1958, ao iniciar-se o primeiro mandato do presidente Américo Tomás, Salazar efectua uma ampla remodelação no governo. Conhecedor da animosidade do Exército relativamente a Santos Costa, é chegado o momento oportuno para o seu afastamento. Para o seu lugar de Ministro da Defesa será nomeado o general Júlio Botelho Moniz. Sem grandes surpresas, Almeida Fernandes ascende a Ministro do Exército, entrando para as suas anteriores funções o tenente-coronel Francisco da Costa Gomes. A nova equipa do Ministério do Exército vai, então, rever o dispositivo das forças terrestres em Angola. Num Estudo elaborado em Abril de 1959 pela Repartição de Gabinete do Ministério do Exército e intitulado Política Militar Nacional - Elementos para a sua definição, colocava-se em evidência a inadequação das Forças Armadas ao cumprimento das missões que lhes estavam cometidas e adiantava-se: “...tudo se conjuga para que, num prazo mais ou menos breve, sejamos confrontados com situações mais difíceis do que as anteriores, em especial no que toca aos territórios ultramarinos. As perspectivas desse confronto

 

(12) SALAZAR, Discursos e Notas Políticas, Vol. VI, p. 69. Sublinhado nosso.

 

implicam que se proceda a uma análise, corajosa e realista, da nossa política militar e das principais deficiências que ela possa enformar, em ordem a, com ainda maior urgência, corrigir e preparar adequadamente o aparelho militar (...) Não existe ou é insuficiente uma estratégia verdadeiramente nacional, em particular que tenha em vista o emprego do nosso potencial militar na segurança dos territórios ultramarinos.” (13) Quando era o próprio Gabinete do Ministro do Exército a sugerir a inexistência de uma estratégia nacional é porque, seguramente, não existiria, sequer, um documento cuja aprovação decorresse de um imperativo legal. No centro das preocupações do ministro situava-se a falta de equipamentos para distribuir às unidades que tivessem que acorrer ao Ultramar. Segundo as suas palavras, essas forças “não dispunham de meios para se moverem e para estacionarem ou mesmo pernoitarem em pleno mato, tais como: cantinas, barracas de campanha ou abrigos de qualquer espécie, nem de meios de transmissão e de material sanitário; nem de armas ligeiras modernas próprias para enfrentar as ameaças previstas e das respectivas munições.(14) Ainda em 1960, formam-se as primeiras Companhias de Caçadores Especiais, três das quais seguem para Angola ainda nesse ano. Eram unidades de elite do Exército que iriam para operações armadas com a espingarda Mauser m/1937, uma arma de repetição que não permitia elevados volumes de fogo em situações de combate próximo. Caçadores Especiais de Mauser fica, assim, como a dolorosa legenda de uma negligência sem nome. A aquisição de armas automáticas como a G-3 ou a FN ainda estava fora de questão, como estavam, na Força Aérea, os tão imprescindíveis helicópteros. Apesar de todos os entraves financeiros à preparação das Forças Armadas para a provação que se anunciava, em 30-11-1960, perante a Assembleia Nacional, Salazar acaba por conceder, publicamente, que se aproximam tempos particularmente difíceis:Não vejo que possa haver descanso para o nosso trabalho nem outra preocupação que a de segurar com uma das mãos a charrua e com outra a espada, como durante séculos usaram nossos maiores. Esta nova tarefa [...] é desafio lançado à geração presente e vai ser uma das maiores provas da nossa história. É preciso ter o espírito preparado para ela; exigirá de nós grandes sacrifícios [...] e também o sangue das nossas veias...”(15) 1961 – Grandes sacrifícios e sangue Janeiro de 1961 traz consigo a concretização das ameaças que se haviam pressentido no passado recente. Ao sequestro do paquete Santa Maria, na noite

 

(13)  Política Militar Nacional - Elementos para a sua definição, p. 3. (AHM, 1.ª Div. – 39.ª Sec. - Cx. 1 – N.º 56). Sublinhado nosso.           (14) ANTUNES, J. Freire, Idem, p. 161.                   (15) SALAZAR, António O., Discursos e Notas Políticas, Vol. VI, pp. 106-107 (sublinhado nosso). Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323 de 21/22

 

 segue-se um grave incidente na Baixa do Cassange, em Angola. Como protesto contra o cultivo obrigatório do algodão e o atraso no pagamento de salários, trabalhadores nativos revoltam-se contra a presença dos europeus. Tratando-se de uma rebelião localizada numa pequena área, é possível às poucas forças do Exército presentes em Angola, apoiadas por meios aéreos, reprimir com violência os protestos dos agricultores. Depois, em 4 de Fevereiro, em Luanda, elementos independentistas levam a efeito ataques contra instalações prisionais e forças da Polícia de Segurança Pública, provocando diversos mortos e feridos. Ainda em Fevereiro de 1961, o embaixador dos EUA em Lisboa, Elbrick, convidou (16) o ministro da Defesa para um almoço íntimo. Presentes, igualmente, um Adido da embaixada e o chefe de gabinete de Botelho Moniz, major Viana de Lemos. Segundo o relato deste último, este contacto entre Elbrick e Moniz destinava-se, segundo o primeiro, a aconselhar-se com um membro influente do governo, sobre a melhor maneira de abordar o assunto com o Presidente do Conselho. Era portador de uma proposta de apoio a uma evolução da política portuguesa em África: “o Embaixador insistia particularmente em que os Estados Unidos não pediam a Portugal uma declaração de concessão de independência ou de autodeterminação imediata, mas apenas que declarássemos nas Nações Unidas que estávamos envidando todos os esforços para assegurar o progresso desses territórios aos quais iríamos conceder uma autonomia progressiva no sentido de, num futuro indeterminado, poderem escolher o seu destino. Lembro-me bem que insistiu que não era necessário falar em prazos mas que podiam ser dez, vinte ou trinta anos. Em contrapartida, os Estados Unidos estavam dispostos a conceder um auxílio económico generoso para o desenvolvimento de Portugal metropolitano, permitindo assim que verbas portuguesas fossem libertadas para o desenvolvimento do Ultramar, visto que, com essa solução, os Estados Unidos poderiam defender-se da acusação de estarem a ter uma ingerência em África.”(17) É sob o efeito destes acontecimentos que, no final desse mês, se realiza uma reunião do Conselho Superior Militar. Após uma primeira intervenção do Subsecretário da Aeronáutica, Kaúlza de Arriaga, o Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA), general Albuquerque de Freitas, expôs ao Conselho o conteúdo de um memorando por si elaborado. O CEMFA começa por analisar o impacto internacional do assalto ao paquete Santa Maria e formula algumas interrogações, de conteúdo estratégico e político, denunciadoras de profunda perplexidade, nomeadamente “o valor real da nossa posição internacional, atenta a

 

(16) Na obra Kennedy e Salazar, o leão e a raposa, p. 153, J. FREIRE ANTUNES atribui a iniciativa do almoço ao próprio Botelho Moniz e localiza parte do relato como pertencendo a um segundo almoço, a 6 de Março.          (17) LEMOS, Viana de, Duas crises, pp. 29-30.

 

atitude reticente dos governos de potências, sempre ditas amigas, face aos «piratas»” e destaca a atitude assumida pelos governos dos Estados Unidos da América, da Inglaterra e do Brasil, a qual provocara, simultaneamente, “surpresa, desapontamento e desânimo, por ter revelado uma posição que se supunha diferente.”(18) Esta passagem como que sinaliza a identificação de um cenário estratégico completamente novo e o receio de isolamento que poderia seguir-se a uma ruptura com os pressupostos estratégicos das alianças a que Portugal pertencia. Na avaliação da situação, pesavam, também, os recentes acontecimentos relacionados com o conflito da Argélia. Em 8 de Janeiro de 1961, os franceses tinham sido chamados a decidir, em referendo, sobre a autodeterminação da Argélia. Com o sentimento de quem se liberta de um pesadelo, 75,2% dos votos expressos na metrópole optam pelo SIM. Entretanto, a 15 e 16 de Março de 1961, nova vaga de violência se abate sobre Angola. Em diversas zonas do noroeste da província, elementos da União dos Povos de Angola (UPA) levam a efeito um autêntico massacre contra as populações europeias e os africanos que se mantiveram com elas. Devido à escassez das forças militares disponíveis – 1.500 militares europeus e cerca de 5.000 indígenas –, as populações não tiveram outro recurso se não procederem à sua própria defesa, até à chegada de socorros. Perante a gravidade da situação, o ministro da Defesa, general Botelho Moniz, decide, nos últimos dias de Março, enviar ao Presidente do Conselho uma extensa carta, onde convergem corajosas críticas e premonitórios alertas. Afirmava o ministro: “A gravidade do actual momento político internacional enche de preocupações o País, a que as Forças Armadas não podem ser indiferentes [...] É sentimento geral que a acção política da nossa diplomacia desde há muito tempo se revela inadequada, e que os factos demonstram não ter estado à altura da sua missão histórica. [...] No que mais propriamente diz respeito às Forças Armadas, a situação destas é angustiosa e caminhamos para uma situação insustentável, onde poderemos ficar à mercê de um ataque frontal, com forças dispersas por quatro continentes, sem meios bastantes e com uma missão de suicídio da qual não seremos capazes de sair, uma vez que a política não lhe encontra solução nem parece capaz de a procurar. Perdidas as esperanças de podermos ser auxiliados pelos nossos mais antigos amigos, a descrença invade todos e as acções emocionais passageiras nada estruturam.”(19. Mentalmente, Botelho Moniz permanece fiel a um conceito estratégico que mantém Portugal na esfera política dos aliados ocidentais. Além disso, tem a percepção de que fazer a experiência da opção militar não está sequer ao alcance dos meios disponíveis. Os exemplos dos insucessos das outras potências coloniais

 

18 AHM, 1.ª Div. – 39.ª Sec. - Cx. 3 – N.º 1. Sublinhados nossos.                 (19) AHM, 1.ª Div. – 39.ª Sec. - Cx. 3 – N.º 1. Sublinhados nossos. Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323

 

antecipavam o actual conceito das guerras não-ganháveis (non winnable wars). A carta para Salazar constitui, porventura, o último documento de um processo político-militar que seria interrompido, em 13 de Abril de 1961, pela demissão da maioria dos principais chefes militares. No ano seguinte, era publicado o livro Portugal, o Ultramar e o Futuro, de Manuel José Homem de Mello, com um prefácio do ex-presidente Craveiro Lopes. Em consonância ideológica com o espírito da mudança preconizada por Moniz, Homem de Mello haveria de resumir todo o pensamento estratégico subjacente ao malogrado pronunciamento: Afastemos, de vez, a concepção que procura impor manu militari “a nossa presença no mundo. Portugal terá tudo a seu favor (história, missionação, razão, etc.). Seria trágico tentar ficar ao sabor da única coisa que não tem – a força”!”(20) No plano internacional, o início da luta armada em Angola iria provocar o distanciamento político entre o governo de Lisboa e alguns dos seus aliados tradicionais. Apesar da importância dos Açores para a defesa da Europa, o governo dos EUA não só prontamente reduz o auxílio militar a Portugal (21) como não se coíbe de votar na ONU contra a resistência portuguesa ao movimento de descolonização. Salazar, em entrevista à revista LIFE, de 04-05-1962, sendo-lhe perguntado “Julga V. Ex.ª que será do interesse de Portugal e da Europa Ocidental renovarem-se com os EUA as facilidades na base dos Açores?” não hesitou em afirmar: “Desejaria não responder a esta pergunta e pediria que a mesma não fosse formulada”. (22) Se era esta a posição publicamente assumida, facilmente se deduz o que se passava nos bastidores da diplomacia. Portugal deixou arrastar as negociações para além da data de termo do acordo vigente, que expiraria no final de 1962, avisando que permitiria a permanência das forças americanas até ao encerramento das mesmas. Na prática, o governo de Lisboa pretendia assegurar-se de que os EUA iriam recuar, com carácter duradouro, para posições mais favoráveis à permanência de Portugal em África, sem o que não haveria acordo para continuarem nos Açores. Esta posição de firmeza lograria fazer abrandar a hostilidade americana a partir de Agosto de 1962. No plano regional africano, é no ano de 1964 que Portugal procura entendimentos com os vizinhos da África Austral, apoiando Tschombé e Mobutu na República Democrática do Congo (ex-belga) e o movimento de independência branca na Rodésia do Norte, sob a liderança de Ian Smith. Davam-se, assim, os primeiros passos para uma aliança de facto entre os territórios de dominação branca, no qual seria incluída, como elemento principal, a República da África do Sul.

 

(20) HOMEM DE MELLO, Manuel J., Portugal, o Ultramar e o Futuro, p. 116.              (21) ANTUNES, J. Freire, Kennedy e Salazar – O leão e a raposa, p. 240.               (22) SALAZAR, Oliveira, Entrevistas, p. 97.

 

 Aparentemente confiante, Salazar profere, em 18-02-1965, um dos discursos mais elucidativos das suas convicções: “Vamos em quatro anos de lutas e ganhou-se alguma coisa com o dinheiro do povo, o sangue dos soldados, as lágrimas das mães? Pois atrevo-me a responder que sim. No plano internacional, começou por condenar-se sem remissão a posição portuguesa; passou depois a duvidar-se da validade das teses que se lhe propunham, e acabaram muitos dos homens mais responsáveis por vir a reconhecer que Portugal se bate afinal não só para firmar um direito seu mas para defender princípios e interesses comuns a todo o Ocidente. No plano africano, quatro anos de sacrifícios deram tempo a que se esclarecesse melhor o problema das províncias ultramarinas portuguesas... [...] Assim, bastantes povos africanos nos parecem mais compreensivos das realidades e mais moderados de atitudes. Eis o ganho positivo desta batalha em que – os portugueses europeus e africanos – combatemos sem espectáculo e sem alianças, orgulhosamente sós.” (23) Salazar terá querido tirar algum efeito emocional e literário da expressão “orgulhosamente sós”, a qual, tendo um fundo de verdade, configurava um certo exagero. No campo diplomático, o governo português procurou contrariar a crescente animosidade anticolonialista dos países da OTAN, realçando a circunstância de a luta que as Forças Armadas portuguesas travavam em África se inserir na lógica do conflito Este-Oeste, para o qual eram de enorme importância as posições detidas por Portugal no Atlântico e no Índico. Além do apoio da Espanha e da África do Sul, Portugal foi conseguindo adquirir armamento e outro equipamento militar de países como a França e a República Federal da Alemanha, o que não impediu, porém, que, no confronto da qualidade do armamento, a situação das forças portuguesas começasse a ficar em crescente desvantagem. O ano de 1965 iria terminar sem que o acordo da base das Lages, caducado no final de 1962, fosse renovado. A tensão entre os dois países já não atinge a intensidade dos primeiros dois anos da administração Kennedy, mas tarda a retomar a configuração habitual entre aliados. A crise da Rodésia do Norte agudiza-se com a declaração unilateral de independência, em 11-11-1965, atitude que é vista com simpatia pelo governo português. O que vai seguir-se é uma resposta militar da Grã-Bretanha na África Austral, colocando os dois velhos aliados em rota de colisão. Admitir que, por essa altura, Portugal estivesse a aplicar um conceito estratégico clássico é, assim, uma presunção de difícil dedução académica. De relações tensas com as duas principais potências marítimas – os EUA e a Grã Bretanha – e procurando “novos amigos” nos países africanos dominados pela minoria branca, Portugal empenhava-se, se não num novo conceito estratégico, numa opção pragmática que anunciava, simplesmente, que a resistência ia continuar.

 

(23) SALAZAR, António O., Antologia, p. 274. Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323

 

 

DAVID MARTELO Coronel de infantaria (reformado), autor de diversas obras de História Militar, entre as quais “A Espada de Dois Gumes. As Forças Armadas do Estado Novo”, “As Mágoas do Império” e “1974 Cessar Fogo em África”. Tradutor de figuras famosas como Tucídides, Maquiavel, Garibaldi, Jomini e Mussolini. É administrador do blogue de História Militar “A Bigorna”, em www.a-bigorna.pt. Citar este texto: MARTELO, David – Conceito Estratégico do do Estado Novo, 1945-1965. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Início da Guerra de África 1961-1965. Lisboa. ISSN 2795-4323. Ano I, nº 1 (Dezembro 2021).

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