Que me foi enviada por João Sena, a quem agradeço a sagaz intenção de me
abrir as portas do saber, integrando-me nas modas de submissão às políticas dos
grandes senhores, como esses americanos e quejandos, esquecidos de que também
eles ocupam espaços continentais onde exterminaram os aborígenes para figurarem
como donos e senhores desses espaços que ninguém pode reclamar, porque eles
próprios se constituíram seus proprietários. Sempre foi do consenso universal
que quem quer conhecer o vilão bastará pôr-lhe a vara a mão e a vara a eles
pertence. Mas isto são resquícios de uma zanga passadista – infantil se dirá,
ou obtusa, ou caprichosa, visto que a razão pertencerá sempre ao da vara. De
resto, pouco importa tudo isso, assim lutássemos nós hoje por uma vitória, como
lutámos ontem por uma derrota, aparatosamente florida… embora só depois da
queda da cadeira do velho ditador. Mas a nossa luta hoje é pela permanência na esmola
alheia, é essa a lição que deixamos aos nossos vindouros. Sem flores, é certo.
Substituídas estas pela desfaçatez. Desvergonha também se chama.
Acrescento apenas dois excertos contidos
em “Cravos Roxos” (1981), o
primeiro, “Os Colonos”, um excerto de
um texto meu de “Pedras de Sal” (I
livro - em 2ª Edição - em “CRAVOS ROXOS”), o segundo “Ó
cínica Inglaterra, ó bêbada impudente” de “Lusos 74”, (III livro de “Cravos
Roxos”), destinados a exemplificar - embora infimamente -
como me fui apercebendo e vivendo alguns desses dados transpostos no excelente
estudo de David Martelo:
«OS COLONOS:” A Metrópole
chamava às suas colónias, colónias. Mais tarde disseram-lhe que isso parecia
mal perante s estrangeiros que se iam desfazendo das deles e a Metrópole em
zelo dedicado, passou a chamar-lhes províncias, conquanto aos seus habitantes
não apelidasse de modo algum de provincianos.” (…) “Mas recentemente a
designação de “províncias” foi ainda modificada para a de “estados”, a
perspectivar, sem dúvida, o estado de perturbação que já se sabia havia de
surgir. E surgiu finalmente. Parece que havia muitas pressões externas de
outros povos também colonialistas, mas desejosos de se redimirem desses
defeitos mostrando boa vontade para com os negros mal explorados por nós, para
depois os poderem explorar eles melhor.” (…) “As colónias ou províncias ou
estados passaram a ser um estorvo, e com grande alarido e profusão de flores
românticas, entregaram os estados a quem os queria, voltando imediatamente a
chamar- lhes colónias, sem sequer passarem pelo estado intermédio de
províncias”…»
“Ó cínica Inglaterra, ó bêbada impudente”: «”… Quanto ao cinismo da Inglaterra, o Guerra Junqueiro
estava evidentemente escamado por causa da questão do mapa cor-de-rosa, quando
a Inglaterra nos refutou a ocupação da parte da África em cor-de-rosa no mapa,
mas de facto não vejo cinismo nisso, apenas um fenómeno de atracção pela cor,
comum a diversos seres. O que me trouxe, todavia, à mente os versos de
Junqueiro foi a notícia de que a Inglaterra não apoiaria a Rodésia nas suas pretensões
ao governo unitário branco, visto que a maioria ali é preta, e por conseguinte
com mais direitos. Constatei assim um acréscimo de concepções humanitárias em
relação ao passado colonial inglês, passado sem tantos escrúpulos puritanos, e
certamente ansioso por se remir disso.
“Já
o abandono dos Estados Unidos no caso de Angola (e mesmo de Moçambique) me
surpreendeu mas atribuí-o a uma ampla generosidade para com a Rússia, que tanto
tem demonstrado a sua necessidade de se ampliar, e incluí a questão dentro de
um justificativo de ordem bíblica, digo do apreço de Cristo e portanto do meu
também, como sua afeiçoada.
“Quanto
à Inglaterra, sinto-me perplexa, pois não descortino qualquer solução bíblica
para justificação da sua aversão pelos irmãos brancos da região cor-de-rosa no
mapa, e só vejo nisso repúdio actual pela cor dantes defendida com supremacia
incontestável, apesar dos versos apostrofantes do Guerra Junqueiro.
“A
menos que seja um jogo, não para inglês ver, mas sim para enganar o resto do
mundo fazendo-o crer no seu colaboracionismo com os pretos maioritários
africanos, de acordo com esse resto do mundo também hipocritamente
colaboracionista, mas na realidade ajudando à socapa os brancos minoritários de
origem inglesa das terras do sul de Africa- ….»
O Texto de David Martelo:
Revista Portuguesa de História Militar Ano
I, nº 1 (Dezembro 2021).
Dossier: Início da Guerra de África
1961-1965 ISSN 2795-432
CONCEITO ESTRATÉGICO DO ESTADO NOVO 1945-1965
(Artigo originalmente publicado
no n.º 1 da Revista Portuguesa de História Militar)
Em 25-11-1947, na biblioteca da
Assembleia Nacional, o Presidente do Conselho dirigia-se à Câmara para dar nota
dessa sua ilusão sobre o mundo do pós-guerra. No que ao império colonial podia
interessar, afirmava: Por feliz coincidência ou providencial disposição,
os destinos de toda a África são solidários com a Europa do ocidente. Excepto
no que respeita ao Egipto e à Abissínia (mas não à África do Sul, membro da
Comunidade Britânica), a Inglaterra, a França, a Bélgica, a Itália, Portugal e
a Espanha têm, através de regimes políticos ou económicos diversos, a direcção
efectiva e a responsabilidade do trabalho, progresso e bem-estar do sentimento
africano. Uma política concertada de defesa e de valorização económica porá ao
dispor do Ocidente produtos e riquezas que aumentarão de maneira assombrosa as
suas possibilidades de vida e a sua contribuição para o intercâmbio mundial. A
África é a base suficiente para a política que se deseje fazer.
Ler
mais: https://www.a-bigorna.pt/
David Martelo
“Eu devo desde já afirmar que o Plano de Fomento representa
por si mesmo [...] uma afirmação de paz e um desejo de paz entre as nações,
exprime a necessidade de que não se sacrifiquem as economias a incomportáveis
esforços de defesa” (1) . SALAZAR, 28-05-1953
Resumo
O final da 2.ª Guerra Mundial sinaliza, para Portugal, o início de uma mudança de dependência estratégica. A preponderância adquirida pelos EUA na Europa e a assunção da sua qualidade de poder naval dominante implicam que a velha aliança com o Reino Unido se vá, progressivamente, acomodando à liderança americana e aos laços estabelecidos com a concessão de facilidades aéreas e navais no arquipélago dos Açores. Todavia, tendo as duas potências anglo-saxónicas, através da assinatura da Carta do Atlântico, em 1941, criado os fundamentos da ordem mundial do pós-guerra e da Organização das Nações Unidas, o governo de Lisboa ficava alertado para as implicações que daí poderiam ocorrer no tocante à sobrevivência dos territórios do Ultramar. O passo seguinte – a adesão ao Pacto do Atlântico Norte – é assumido com a satisfação de um êxito de política externa, mas com a crescente consciência de que a defesa do Império seria, cada vez mais, um problema a resolver sem aliados. As independências pacíficas de colónias europeias, na Ásia e em África, assim como as problemáticas resistências de potências coloniais europeias a revoltas armadas de libertação, não contribuíram em nada para alterar a política colonial de Salazar. A fase seguinte, iniciada em 1961, é o envolvimento de Portugal em três conflitos armados desencadeados por movimentos de libertação, sucessivamente
(1)SALAZAR,
António O., Discursos e Notas Políticas, Vol. V, p. 111. Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1
ISSN 2795-4323) Palavras chave: Conceito estratégico; Portugal; Estado Novo;
Ultramar Dossier: Início da Guerra de África 1961-1965 ISSN 2795-432
em Angola, Guiné e
Moçambique, que prosseguiriam, com crescente violência, para lá de 1965,
implicando um esforço de guerra de enormes dimensões, numa conjuntura
internacional marcadamente adversa.
Antecedentes – Últimos
anos da predominante influência britânica
Do ponto de vista estratégico, o período
inicial da 2.ª Guerra Mundial configurava ainda, para Portugal, um cenário de
características semelhantes às que haviam existido desde 1661, quando se renovara a velha aliança com a Inglaterra,
visando, então, já não só a independência no contexto ibérico mas também a
defesa e conservação das possessões ultramarinas.
O facto de a Grã-Bretanha continuar a ser a
primeira potência marítima conferia a Portugal a garantia de Revista Portuguesa
de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323 acesso aos territórios de
além-mar. O Tratado de Amizade e Não-Agressão entre Portugal e
Espanha (também conhecido como Pacto Ibérico),
firmado em Março de 1939, acrescentava a este cenário geopolítico uma garantia
de paz no plano regional.
Ao
iniciar-se a guerra na Europa, em 1939, os dois velhos aliados entenderam que
seria mais útil o governo de Lisboa anunciar a não-beligerância, não fazer uma
declaração formal de neutralidade e manter a liberdade para agir de modo
diverso se, no futuro, as condições políticas o aconselhassem.
No
Verão de 1941, o desenrolar da guerra colocara a Grã-Bretanha como única
potência da Europa Ocidental que ainda resistia à Alemanha nazi. Como
consequência de uma política de
isolamento, reassumida
após o final da 1.ª Guerra Mundial, os
EUA mantinham uma neutralidade que a administração Roosevelt ia,
progressivamente, ajustando a uma crescente simpatia pela Grã Bretanha.
Em 9
de Agosto, o presidente Franklin D.
Roosevelt e o primeiro-ministro
britânico Winston
Churchill encontraram-se
secretamente em Placenta Bay, na Terra Nova. Entre 9 e 12, os dois líderes
discutiram novas fórmulas de auxílio da parte dos EUA à Grã-Bretanha. Todavia,
no espírito do presidente americano, o auxílio que estava na disposição de
disponibilizar implicava algumas transformações políticas, à escala mundial,
sem as quais não faria sentido. No final das conversações, seria anunciado,
em nome dos Estados Unidos e do Reino Unido, uma declaração de princípios das
duas potências, com 8 parágrafos, que ficaria conhecido como Carta do Atlântico e
seria a base para a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). No seu n.º 3, delineava-se um conceito que iria
colidir com a ideia da perenidade do Império Português: Que respeitam o direito de todos os povos a
escolherem a forma de governo sob a qual querem viver; e desejam que os
direitos soberanos e a autonomia sejam devolvidos àqueles a que tenham sido
arrancados pela força. Estava dado o primeiro impulso gerador da profunda mudança
do pósguerra, com a ascensão dos EUA e o declínio colonial europeu.
Ao
atingir-se o final do ano, a guerra deixa de ser europeia e propaga-se a todo o
globo. Apesar da neutralidade de Portugal,
em 17-12-1941, sem consulta prévia, uma força
mista australiana e holandesa ocupa Timor-Leste, a
pretexto de defenderem o território contra uma eventual invasão japonesa. O governador não aceita as condições do ultimato que
lhe é apresentado e constitui-se prisioneiro do comandante invasor. Em
20-02-1942, as tropas japonesas atacam a colónia portuguesa e facilmente
neutralizam a força ocupante. A penosa situação assim criada foi sendo
gerida diplomaticamente, entre os governos de Lisboa e de Londres, sem que,
inicialmente, os EUA se vissem envolvidos na sua resolução.
Os pensamentos do governo de Washington
relativamente a Portugal estavam, então, focados na necessidade da ocupação dos Açores, para aí instalar
bases aéreas e navais. Em
18-06-1943, o embaixador britânico informa o governo português de que o governo de Sua Majestade resolveu, em nome da
aliança existente entre Portugal e a Grã-Bretanha há seiscentos anos, pedir ao
governo português para lhe prestar a sua colaboração concedendo-lhes as
facilidades de que tem necessidade nos Açores.(2)
A
nota do governo de Londres conclui com a garantia da retirada das forças
britânicas, no fim da guerra, e da manutenção da soberania portuguesa em todos
os territórios do Ultramar. Em 18-08-1943 (embora datado de 17) é assinado o acordo que concede à Grã-Bretanha as
facilidades de utilização do aeródromo das Lajes e do porto da Horta, a partir
de 8 de Outubro desse ano. Os termos do acordo sobre os Açores não foram do agrado
do governo americano. De facto, o texto assinado não previa a concessão de
facilidades às forças armadas dos EUA. Apenas a
permissão de reabastecimento em combustível era extensiva a navios das Nações
Unidas. Em
Novembro de 1944, o governo americano aceita, finalmente, as condições do
governo de Lisboa para a instalação de uma base
aérea na ilha de Santa Maria: a
participação de forças portuguesas nas operações militares para a reocupação de
Timor. Obtido o
acordo e cumprida a parte portuguesa, estava dado um passo para a ligação
especial que então se iniciaria entre Portugal e a nova primeira potência
marítima mundial.
O cenário político do pós-guerra e a
crescente predominância americana
Em
2 de Agosto de 1946, o embaixador
de Portugal nos EUA, João de Bianchi,
escreve uma carta ao secretário-geral da ONU, Arkady Sobolev,
na qual formaliza o pedido de adesão do governo de Lisboa à nova organização
internacional, objectivo
que seria inviabilizado devido à imagem que o regime de Salazar construíra de
afinidade política com as potências europeias derrotadas na guerra.3 No imediato, a questão da continuidade dos impérios
coloniais parece não preocupar Salazar. Em
25-11-1947, na biblioteca da Assembleia Nacional, o Presidente do Conselho
dirigia-se à Câmara para dar nota dessa sua ilusão sobre o mundo do pós-guerra.
No que ao império colonial podia interessar, afirmava: Por feliz
coincidência ou providencial disposição, os destinos de toda a África são
solidários com a Europa do ocidente. Excepto no que respeita ao Egipto e à
Abissínia (mas não à África do Sul, membro da Comunidade Britânica), a
Inglaterra, a França, a Bélgica, a Itália, Portugal
(2)
NOGUEIRA,
Franco, Salazar, Vol. III, p. 438. (3) A
concretização da admissão do país na ONU só viria ocorrer em 14 de Dezembro de
1955. Revista Portuguesa de História
Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323)
e
a Espanha têm, através de regimes políticos ou económicos
diversos, a direcção efectiva e a responsabilidade do trabalho, progresso e
bem-estar do sentimento africano. Uma política
concertada de defesa e de valorização económica porá ao dispor do Ocidente
produtos e riquezas que aumentarão de maneira assombrosa as suas possibilidades
de vida e a sua contribuição para o intercâmbio mundial. A África é a
base suficiente para a política que se deseje fazer.(4) Era uma visão
deveras optimista. O cenário internacional do pós-guerra estava a caminho de
uma vincada reconfiguração. A cisão verificada entre os aliados ocidentais e a URSS
foi criando um novo quadro de crescente tensão, que parecia ir conduzir a uma
nova conflagração. As tropas soviéticas ocupavam grande parte dos
países da Europa de Leste e não tinham procedido a uma desmobilização tão
extensa como a que se verificara nos aliados ocidentais. Assim, face ao poderio
militar da URSS, os governos americano e britânico abordam o governo português
sobre a intenção de se constituir, com a participação de Portugal, uma aliança
defensiva que abarcasse o Atlântico Norte, mas com a exclusão da Espanha. Esta imposição não deixa de causar algumas
perplexidades, dados os compromissos existentes entre os dois países ibéricos.
Mas a circunstância de a aliança, a concretizar-se, se destinar a fazer frente
à ameaça do comunismo internacional, tornava o empreendimento aliciante aos
olhos de Salazar. Também
comportava riscos, é certo,
designadamente as alusões que o texto do tratado fazia à Carta das Nações Unidas e à profissão de fé nos
regimes democráticos. Anteviam-se
dificuldades relativamente aos territórios ultramarinos e ao próprio regime do
Estado Novo. É verdade
que, quanto à questão da democraticidade do regime português, não houvera
qualquer evolução que lhe conferisse uma imagem mais liberal. Se a Grã-Bretanha e os EUA tinham feito a Portugal o
pedido de adesão, era porque estavam dispostos a perdoar os desvios ditatoriais
do Estado Novo, a troco da utilização das estratégicas posições portuguesas no
Atlântico. E esse
perdão, a nível interno, iria surgir como um soberbo trunfo de Salazar perante
a oposição democrática. Assim, em 04-04-1949, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Caeiro da Mata, subscreve, por Portugal, o Pacto do Atlântico, do qual vai nascer a respectiva organização
político-militar designada por Organização
do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
(5) A
adesão de Portugal, não pondo termo à validade da aliança britânica, transfere
grande parte do seu significado para a nova primeira potência marítima – os
Estados Unidos. No âmbito exclusivo da velha aliança, permanecem,
contudo, as garantias no respeitante aos territórios ultramarinos portugueses.
Pelo menos em teoria.
(4) SALAZAR, António O., Idem, Vol. IV, pp. 293-294. (5) Ou NATO, na versão anglo-americana.
Em 25-07-1949,
na sessão da Assembleia Nacional em que o governo justifica a adesão de
Portugal à nova aliança, Salazar descreve, assim, o novo cenário geopolítico em
que o país acabava de se inserir:
“O
deslocamento do centro de gravidade da política mundial para oeste, verificado
a seguir à primeira grande guerra, não só trouxe os Estados Unidos para o
primeiro plano dessa política, mas aumentou o valor e os riscos do Atlântico,
de cuja segurança passaram a depender quase exclusivamente a Europa, a África e
a América. Em tais condições, o apoio dos Estados Unidos tornou-se necessário à
segurança dos países ribeirinhos do Atlântico Norte na mesma medida em que as
posições atlânticas passaram a ser necessárias à defesa americana.” (6) Estas palavras não eram mais do que a adequação do
governo de Lisboa ao facto de o interesse dos EUA pelas bases dos Açores sempre
se haver mantido na primeira linha das relações luso-americanas, mesmo depois
do final da guerra. Do lado português, foram sendo concedidas autorizações
temporárias de trânsito pelas bases, mas recusava-se qualquer acordo que não
corporizasse um compromisso bilateral de defesa, com inclusão dos territórios
ultramarinos. Era, no fundo, o retorno à política de aliança com a
potência naval dominante, política essa seguida, desde a Restauração, através
do reforço da aliança inglesa.
Embora não questionasse, ainda, a presença de Portugal no Ultramar, a
América não aceita essa cláusula, pelo que as negociações se prolongam num
impasse. Esta negativa
da parte dos EUA, conjugada com a decisão britânica de se desfazer do seu
Império, estabelecia para Portugal – no que respeitava aos seus territórios
ultramarinos – um verdadeiro cenário de isolamento. Ficava claro que, em caso de agressão militar às
suas colónias, Portugal só poderia contar com a sua própria força – que era bem
pouca. Esta nova conjuntura geoestratégica foi rapidamente
entendida como vulnerabilidade histórica nos meios militares portugueses, mas
seria deliberadamente ignorada pelo governo. Todavia,
com a constituição da OTAN e a situação de tensão que tende a agravar-se entre
os países ocidentais e a URSS, estão criadas as condições para um entendimento
entre Portugal e o governo de Washington.
Assim, em 07-09- 1951, é assinado entre os dois países um acordo de auxílio
mútuo, que prevê a utilização permanente da base das Lajes pelas forças armadas
americanas. A exclusão da Espanha da OTAN provoca algumas
perplexidades, dados os compromissos existentes entre os dois países ibéricos,
e é embaraçosa para o governo português, dando origem a um arrefecimento das
relações com aquele país. A solução
encontrada para minorar a mágoa espanhola foi a concessão de uma entrevista de
Salazar à United Press, na qual aproveita a ocasião para reafirmar,
publicamente, a validade do Pacto Ibérico e a sua compatibilidade com os
princípios e objectivos da OTAN. No âmbito restrito das chancelarias, a
(6) SALAZAR, António O., Idem, Vol. IV, p. 413. Revista Portuguesa de
História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323
posição do governo português será
sempre de apoio à adesão da Espanha à nova aliança, condição considerada indispensável
para a defesa do conjunto ibérico. Quase
em simultâneo, começa a rodar o relógio da ofensiva anticolonial. Em
27-02-1950, o embaixador
da União Indiana em Lisboa, Menon,
formaliza, junto do Governo português, a reivindicação dos territórios de Goa, Damão e Diu, no que era o início de uma luta diplomática, na qual
o governo de Lisboa se aplicaria profundamente, na convicção de que não se
tratava de um conflito para o qual pudessem ser decisivas as armas portuguesas. Procurando ganhar tempo, sem, todavia, ceder às
pretensões indianas, o governo empenha-se, então, numa operação de cosmética legal, que deve ser entendida como uma clara opção
estratégica de Resistência. Assim, na revisão constitucional de 1951, o Acto Colonial
é revogado, as suas disposições – com algumas alterações – são integradas no
corpo da Constituição e os territórios sob domínio português deixam de se
designar Colónias e passam a denominar-se Províncias. Provavelmente, mais por necessidade do que por
convicção, Salazar faz, deste modo,
uma espécie de “descolonização” por via jurídica. Todavia, ao manter no artigo 133.º
que “É da essência orgânica da Nação
Portuguesa desempenhar a função histórica de colonizar as terras dos
Descobrimentos sob a sua soberania”, daí resultava a singular missão de colonizar sem que
houvesse colónias, contradição que só viria a ser eliminada na revisão de
Agosto de 1971. Todavia,
no estrito campo das ameaças, Salazar não deixa dúvidas quanto às prioridades
que entende deverem servir o interesse nacional. Em 10-07-1953,
discursando na 1.ª reunião plenária da União Nacional, sublinhava que “as
nações da Europa Ocidental, ante a ameaça do expansionismo russo, só têm que
seguir o caminho que lhes é indicado pela maior afinidade de interesses ou pelo
maior parentesco de tipos de civilização, quando não pelas imposições da
geografia. Que essa
reduzida Europa possa um dia representar uma força independente ou de
equilíbrio entre os dois blocos, é possível, mas não estão ao alcance da vista
nem o prazo nem os caminhos por onde lá pode chegar. De modo que, no momento
presente e no futuro próximo, a colaboração com os Estados Unidos, sob a
efectiva direcção destes, é, para não dizer a melhor, a única solução que se oferece para a magna
dificuldade dos nossos dias.”(7) A década de
1950 corresponde, portanto, a um período em que Salazar se sentiu constrangido
a adoptar uma atitude publicamente pró-americana, que o início da guerra em
Angola, em 1961, viria interromper. Mas o delineamento da posição de
Portugal junto dos seus aliados era apresentado, publicamente, com assinalada
clareza. No plano da política europeia, fora do contexto da Aliança
Atlântica, Salazar está atento ao movimento de integração europeia dos Estados
ocidentais. A ideia
(7) SALAZAR, Discursos e Notas Políticas, Vol. V, pp.
131-132.
não
o entusiasma e disso dá conta, em 19-01-1956: “Esse vago pensamento começa já a revestir aqui e além
formas jurídicas conhecidas, como a de federação ou confederação. Se ao meu
espírito é suficientemente nítida a razão por que alguns Estados defendem para
o Ocidente europeu tais formas de integração, não consegui ainda descortinar os
motivos que impelem outros a aceitar, senão a bem dizer, esta sorte de
liquidação nacional.”(8) Menos
clara se apresentava a situação fora da Europa. O conflito diplomático
com a Índia, por causa de Goa, Damão e Diu, atinge elevados níveis de tensão
política em 1954, levando Salazar a fazer uma longa intervenção perante a
Assembleia Nacional, em 30 de Novembro, na qual faz questão de sugerir a
viabilidade de uma épica resistência armada à ameaça indiana, deixando para a
História esta arrebatada quão inexequível directiva estratégica: “E se
apesar de tudo, a União Indiana levar a guerra ao pequeno território, o que
podem fazer as forças que ali se encontram ou vierem a ser concentradas?
Bater-se, lutar, não no limite das possibilidades, mas para além do impossível.
Devemos isso a nós próprios, a Goa, à civilização do Ocidente, ao mundo, ainda
que este sorria compadecidamente de nós. Depois de afagar as pedras das
fortalezas de Diu ou de Damão, orar na igreja do Bom Jesus, abraçar os pés do
Apóstolo das Índias, todo o português pode combater até ao último extremo,
contra dez ou contra mil, com a consciência de cumprir apenas um dever. Nem o caso
seria novo nos anais da Índia.”(9)
A força da realidade iria conduzir, no
entanto, a um dos mais dolorosos golpes no prestígio do Exército – a invasão do Estado da Índia, em Dezembro de 1961.
As Forças Armadas portuguesas no contexto da OTAN
Na
sequência da adesão ao Pacto do Atlântico, as Forças Armadas portuguesas vão
passar por nova reforma estrutural. Da
parte da Aliança, é patente o maior interesse na modernização dos meios navais
e aéreos. No Exército, muito mais desactualizado nos planos mental e
tecnológico, e com os defeitos de uma longa permanência como força de “ordem
pública” do regime, tudo será mais difícil e demorado. Com a
criação do cargo de Ministro da Defesa, no âmbito da Presidência do Conselho de
Ministros (DL 37.909, de 1 de Agosto de 1950), o Ministério da Guerra passava a
designar-se por Ministério do Exército. Para primeiro titular do novo Ministério da Defesa
é designado o coronel
Santos Costa, já
bastante desgastado pelas funções governamentais que, no âmbito do Exército,
vinha desempenhando havia mais de catorze anos. Sucede-lhe, na pasta do
Exército, o brigadeiro
Abranches Pinto. Como Subsecretário
do Exército é nomeado o major Horácio
Sá Viana Rebelo. No âmbito
deste ramo, o levantamento de
(8)
Ibidem, p. 319. (9) Ibidem, pp.
277-278. Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323
uma Grande Unidade de combate – a 3.ª
Divisão de Infantaria – iniciada
no final de 1952, conduz a transformações significativas nos aspectos
doutrinários e na aquisição de equipamento de combate moderno. Esta decisão
explicita de forma eloquente a
prioridade estratégica da Defesa Nacional: a Europa e o enfrentamento da ameaça
soviética. Não era no
Ultramar que se vislumbravam ameaças ao futuro da nação portuguesa. Na
reestruturação então efectuada, importa destacar o que respeita ao
desenvolvimento do Serviço de Informações Militares e a sua ligação aos
serviços congéneres da aliança. Com
o funcionamento desta estrutura, as Forças Armadas passam a ter acesso directo
e autónomo a uma informação estratégica que não é ‘filtrada’ pelo governo.
Esta autonomia, conjugada com os contactos pessoais, ao mais alto nível, dos
chefes militares portugueses com os seus homólogos da OTAN, conduz,
directamente, à
percepção dos riscos que Portugal corre se mantiver inalterada a sua política
ultramarina. A derrota do exército francês em Dien-Bien-Phu e o
deflagrar da revolta na Argélia (1954), as conclusões da conferência de Bandung
(1955) e, por fim, o fracasso político-militar anglofrancês na crise do Suez
(1956), são sinais de um tempo novo, cujo significado não passa despercebido
aos militares portugueses. A
formulação de um conceito estratégico adequado ao difícil
cenário de então implicava um estudo desapaixonado das condicionantes do potencial
nacional, nas suas vertentes económica, diplomática, ideológica, geográfica e
militar. Com os
elementos que hoje se conhecem, poder-se-á dizer que, no tocante aos
responsáveis militares de então, esse estudo foi conduzido com lucidez
e consciência da gravidade da situação. Do antecedente, a estratégia de defesa
do Ultramar assentara em pressupostos de natureza diplomática, com especial
relevo para o complexo e imprevisível papel da aliança com o Reino Unido, que
fazia da nossa presença em África e na Ásia uma presença acompanhada, o que
consentia um módico custo financeiro na defesa do Império, como sempre
preconizara o pensamento político de Salazar.
Do Atlântico para a África – Percepção de vulnerabilidade
Os
movimentos de inspiração anticolonial que se reforçam após a conferência de
Bandung despertam Salazar para a importância da África relativamente à Europa
Ocidental. Inquieto
pelo acesso de alguns países norte-africanos à independência, o chefe do
governo, discursando na Sociedade de Geografia, em 30-05-1956, entende deixar
as seguintes notas de análise geopolítica: “Não nos temos cansado de dizer que a África é
complemento natural da Europa, necessário à sua vida, à sua defesa, à sua
subsistência. Sem a África, a Rússia pode desde já ditar ao Ocidente os termos
em que lhe permite viver. [...] Um vento de revolta sopra em várias regiões de África,
atiçado por potências conhecidas em obediência a conhecidos interesses e
ambições. Esse vento parece justificar o anticolonialismo em moda, ao mesmo
passo que dele se alimenta. [...] O princípio da autodeterminação fundamenta e
legitima a independência dos povos, quando o grau de homogeneidade, consciência
e maturidade política lhe permite governar-se por si com benefício para a
colectividade.”(10) Na visão
de Salazar, era essa falta de ‘homogeneidade, consciência e maturidade
política’ que desaconselhava a adopção por Portugal do princípio da autodeterminação. No essencial, através do seu chefe, o governo português
acabava de esboçar um conceito que iria sustentar a política ultramarina e a
sua vertente militar, nos 18 anos seguintes.
E, esse conceito fora elaborado e anunciado sem cuidar de saber se existiam os
meios para a sua aplicação. Ainda em 1956, é nomeado Subsecretário de Estado do Exército o coronel Almeida Fernandes. É através dele que entra no ministério uma nova
sensibilidade no tocante aos problemas do Ultramar. De facto, estava o
Exército de tal modo fascinado pela integração na estrutura da OTAN que tudo o
resto parecia secundário. Havia planos de transferência de
tropas entre as parcelas portuguesas no mundo, mas apenas para reforço do
Teatro de Operações europeu. A evolução da
situação internacional – sobretudo após
o fiasco da Crise de Suez
(Outubro/Novembro de 1956), do qual as potências coloniais França e Reino
Unido saíram fragilizadas – passava a impor, agora, que se previsse o reforço
dos territórios ultramarinos com forças metropolitanas. A reorientação do
esforço de defesa não iria, no entanto, revelar-se tarefa fácil. A figura de Salazar ergue-se, então, como o maior
obstáculo à desejada reorganização: “chocava-me
a todo o momento”, diria mais tarde o então Subsecretário, “a opinião expressa
pelo Dr. Salazar de que havíamos atingido já há muito uma exagerada percentagem
de encargos com as Forças Armadas, percentagem essa que não podia ser, de forma
alguma, ultrapassada”.(11) A verdade é
que podia mesmo, como se apuraria após o início da guerra em Angola, em 1961.
Mas essa atitude de Salazar apenas sublinha a predominância das Finanças sobre
a Defesa, cenário no qual as questões estratégicas são remetidas para o plano
dos estudos, mais ou menos académicos. E, para completar essa realidade que ia
decorrendo na sombra dos gabinetes, havia, ainda, as atitudes públicas do chefe
do governo em matéria tão eminentemente estratégica, como se deduz desta
passagem de um discurso proferido em 23 de Maio de 1959: “Nós não pensamos em negar o relativo atraso de algumas
regiões e a deficiência de alguns serviços. É evidente faltarem estradas e
pontes, faltarem hospitais, faltarem escolas, e faltarem até,
(10) Ibidem, pp. 371-373. (11) ANTUNES,
J. Freire, A Guerra de África (1961-1974), p. 163. Revista Portuguesa de
História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323
senhores,
elementos de polícia e forças de defesa. Por que milagre então, de Timor a Cabo
Verde, há paz e todos podem notar o tranquilo viver das populações? Porque pode
atravessar-se de lés a lés Angola ou Moçambique, não se contando senão com a
boa disposição do nativo, a sua fraterna ajuda, no fundo o seu portuguesismo?”
(12) A escassez
de forças policiais e militares no Ultramar’ é, portanto, não só do pleno
conhecimento do chefe do governo, como resulta, segundo ele, de uma situação de
paz que o indefectível portuguesismo das populações em absoluto garante. O certo é que a afirmação pública desta crença como
que dita uma espécie de directiva de planeamento estratégico, na qual, pela
lógica das coisas, a probabilidade de uma guerra revolucionária em Angola ou na
Guiné não será maior do que no Minho ou no Algarve. Sendo assim, também se
não justifica o envio de tropas para o Ultramar – o que, segundo alguns responsáveis
políticos da época, poderia, até, assustar os colonos brancos. É a
adesão acrítica a esta linha de pensamento e à figura de Salazar que pode
explicar o comportamento hesitante de parte dos chefes militares nas semanas
que antecedem a proclamação da necessidade de “andar depressa e em força” para
socorrer Angola. No entanto, apesar deste aparente optimismo, o governo,
através dos ministérios militares, apercebe-se de que chegara a hora de proceder
a uma modificação nas prioridades de defesa.
São, por conseguinte, feitas recomendações no sentido de não serem aceites
novos encargos no âmbito da OTAN, para não incrementar os encargos financeiros,
embora se devam honrar os compromissos anteriores. A
tempestade aproxima-se Em 1958, ao iniciar-se o primeiro mandato do presidente
Américo Tomás, Salazar efectua uma ampla remodelação no governo. Conhecedor da
animosidade do Exército relativamente a Santos Costa, é chegado o momento
oportuno para o seu afastamento. Para o seu lugar de Ministro da Defesa será
nomeado o general Júlio Botelho Moniz. Sem grandes surpresas, Almeida Fernandes
ascende a Ministro do Exército, entrando para as suas anteriores funções o
tenente-coronel Francisco da Costa Gomes. A
nova equipa do Ministério do Exército vai, então, rever o dispositivo das
forças terrestres em Angola. Num Estudo elaborado em Abril de 1959 pela Repartição
de Gabinete do Ministério do Exército e intitulado Política Militar Nacional -
Elementos para a sua definição, colocava-se em evidência a inadequação das
Forças Armadas ao cumprimento das missões que lhes estavam cometidas e
adiantava-se: “...tudo se conjuga para que, num prazo mais ou menos breve,
sejamos confrontados com situações mais difíceis do que as anteriores, em
especial no que toca aos territórios ultramarinos. As perspectivas desse
confronto
(12) SALAZAR,
Discursos e Notas Políticas, Vol. VI, p. 69. Sublinhado nosso.
implicam
que se proceda a uma análise, corajosa e realista, da nossa política militar e
das principais deficiências que ela possa enformar, em ordem a, com ainda maior
urgência, corrigir e preparar adequadamente o aparelho militar (...) Não
existe ou é insuficiente uma estratégia verdadeiramente nacional, em particular
que tenha em vista o emprego do nosso potencial militar na segurança dos
territórios ultramarinos.” (13) Quando era o próprio Gabinete do Ministro do Exército
a sugerir a inexistência de uma estratégia nacional é porque, seguramente, não
existiria, sequer, um documento cuja aprovação decorresse de um imperativo
legal. No centro das preocupações do ministro situava-se a falta de
equipamentos para distribuir às unidades que tivessem que acorrer ao Ultramar.
Segundo as suas palavras, essas forças “não dispunham de meios para se
moverem e para estacionarem ou mesmo pernoitarem em pleno mato, tais como:
cantinas, barracas de campanha ou abrigos de qualquer espécie, nem de meios de
transmissão e de material sanitário; nem de armas ligeiras modernas próprias
para enfrentar as ameaças previstas e das respectivas munições.”(14) Ainda em
1960, formam-se as primeiras Companhias de Caçadores Especiais, três das quais
seguem para Angola ainda nesse ano. Eram unidades de elite do Exército
que iriam para operações armadas com a espingarda Mauser m/1937, uma arma de
repetição que não permitia elevados volumes de fogo em situações de combate
próximo. Caçadores Especiais de Mauser fica, assim, como a dolorosa legenda
de uma negligência sem nome. A aquisição de armas automáticas como a G-3 ou
a FN ainda estava fora de questão, como estavam, na Força Aérea, os tão
imprescindíveis helicópteros. Apesar de todos os entraves
financeiros à preparação das Forças Armadas para a provação que se anunciava,
em 30-11-1960, perante a Assembleia Nacional, Salazar acaba por conceder,
publicamente, que se aproximam tempos particularmente difíceis: “Não vejo que
possa haver descanso para o nosso trabalho nem outra preocupação que a de
segurar com uma das mãos a charrua e com outra a espada, como durante séculos
usaram nossos maiores. Esta nova tarefa [...] é desafio lançado à geração
presente e vai ser uma das maiores provas da nossa história. É preciso ter o
espírito preparado para ela; exigirá de nós grandes sacrifícios [...] e também
o sangue das nossas veias...”(15)
1961 – Grandes sacrifícios e sangue Janeiro de 1961 traz consigo a
concretização das ameaças que se haviam pressentido no passado recente. Ao sequestro do paquete Santa Maria, na noite
(13) Política Militar Nacional - Elementos para a
sua definição, p. 3. (AHM, 1.ª Div. – 39.ª Sec. - Cx. 1 – N.º 56). Sublinhado
nosso. (14) ANTUNES, J. Freire, Idem, p. 161. (15) SALAZAR,
António O., Discursos e Notas Políticas, Vol. VI, pp. 106-107 (sublinhado
nosso). Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323 de
21/22
segue-se um grave incidente na Baixa do Cassange, em Angola. Como
protesto contra o cultivo obrigatório do algodão e o atraso no pagamento de
salários, trabalhadores nativos revoltam-se contra a presença dos europeus.
Tratando-se de uma rebelião localizada numa pequena área, é possível às poucas
forças do Exército presentes em Angola, apoiadas por meios aéreos, reprimir com
violência os protestos dos agricultores. Depois, em 4 de Fevereiro, em Luanda,
elementos independentistas levam a efeito ataques contra instalações prisionais
e forças da Polícia de Segurança Pública, provocando diversos mortos e feridos. Ainda em Fevereiro de 1961, o embaixador dos
EUA em Lisboa, Elbrick, convidou (16) o ministro da Defesa para um almoço íntimo. Presentes,
igualmente, um Adido da embaixada e o chefe
de gabinete de Botelho Moniz, major Viana de Lemos. Segundo o relato deste último, este
contacto entre Elbrick e Moniz destinava-se, segundo o primeiro, a
aconselhar-se com um membro influente do governo, sobre a melhor maneira de
abordar o assunto com o Presidente do Conselho. Era portador de uma proposta de apoio a uma evolução
da política portuguesa em África: “o
Embaixador insistia particularmente em que os Estados Unidos não pediam a
Portugal uma declaração de concessão de independência ou de autodeterminação
imediata, mas apenas que declarássemos nas Nações Unidas que estávamos
envidando todos os esforços para assegurar o progresso desses territórios aos
quais iríamos conceder uma autonomia progressiva no sentido de, num futuro
indeterminado, poderem escolher o seu destino. Lembro-me bem que insistiu
que não era necessário falar em prazos mas que podiam ser dez, vinte ou trinta
anos. Em contrapartida, os Estados Unidos estavam dispostos a conceder um
auxílio económico generoso para o desenvolvimento de Portugal metropolitano,
permitindo assim que verbas portuguesas fossem libertadas para o
desenvolvimento do Ultramar, visto
que, com essa solução, os Estados Unidos poderiam defender-se da acusação de
estarem a ter uma ingerência em África.”(17) É
sob o efeito destes acontecimentos que, no final desse mês, se realiza uma
reunião do Conselho Superior Militar. Após uma primeira intervenção do Subsecretário da Aeronáutica, Kaúlza de Arriaga, o
Chefe do Estado-Maior da Força Aérea (CEMFA), general Albuquerque de Freitas, expôs ao Conselho o conteúdo de um memorando por si
elaborado. O CEMFA
começa por analisar o impacto internacional do assalto ao paquete Santa
Maria e formula algumas interrogações, de conteúdo estratégico e político,
denunciadoras de profunda perplexidade, nomeadamente “o valor real da nossa
posição internacional, atenta a
(16)
Na obra Kennedy e Salazar, o leão e a
raposa, p. 153, J. FREIRE ANTUNES atribui a iniciativa do almoço ao próprio
Botelho Moniz e localiza parte do relato como pertencendo a um segundo almoço,
a 6 de Março. (17) LEMOS, Viana de, Duas crises, pp. 29-30.
atitude
reticente dos governos de potências, sempre ditas amigas, face aos «piratas»” e
destaca a atitude assumida pelos governos dos Estados Unidos da América, da
Inglaterra e do Brasil, a qual provocara, simultaneamente, “surpresa,
desapontamento e desânimo, por ter revelado uma posição que se supunha
diferente.”(18) Esta passagem como que sinaliza a identificação de um
cenário estratégico completamente novo e o receio de isolamento que poderia
seguir-se a uma ruptura com os pressupostos estratégicos das alianças a que
Portugal pertencia. Na
avaliação da situação, pesavam, também, os recentes acontecimentos relacionados
com o conflito da Argélia. Em 8 de Janeiro de 1961, os
franceses tinham sido chamados a decidir, em
referendo, sobre a autodeterminação da Argélia. Com o
sentimento de quem se liberta de um pesadelo, 75,2% dos votos expressos na
metrópole optam pelo SIM. Entretanto, a 15 e 16 de Março de 1961, nova vaga de violência se
abate sobre Angola. Em
diversas zonas do noroeste da província, elementos da União dos Povos de Angola
(UPA) levam a efeito um autêntico massacre contra as populações europeias e os
africanos que se mantiveram com elas. Devido à escassez das forças militares
disponíveis – 1.500 militares europeus e cerca de 5.000 indígenas –, as
populações não tiveram outro recurso se não procederem à sua própria defesa,
até à chegada de socorros. Perante a gravidade da situação, o ministro da Defesa, general Botelho Moniz, decide, nos últimos dias de Março, enviar ao
Presidente do Conselho uma extensa carta, onde convergem corajosas críticas e
premonitórios alertas. Afirmava o ministro: “A gravidade do actual
momento político internacional enche de preocupações o País, a que as Forças
Armadas não podem ser indiferentes [...] É sentimento geral que a acção
política da nossa diplomacia desde há muito tempo se revela inadequada, e que
os factos demonstram não ter estado à altura da sua missão histórica. [...] No
que mais propriamente diz respeito às Forças Armadas, a situação destas é
angustiosa e caminhamos para uma situação insustentável, onde poderemos ficar à
mercê de um ataque frontal, com forças dispersas por quatro continentes, sem
meios bastantes e com uma missão de suicídio da qual não seremos capazes de
sair, uma vez que a política não lhe encontra solução nem parece capaz de a
procurar. Perdidas as esperanças de podermos ser auxiliados pelos nossos mais
antigos amigos, a descrença invade todos e as acções emocionais passageiras
nada estruturam.”(19. Mentalmente, Botelho Moniz permanece fiel a um
conceito estratégico que mantém Portugal na esfera política dos aliados
ocidentais. Além disso, tem a percepção de que fazer a experiência da opção
militar não está sequer ao alcance dos meios disponíveis. Os exemplos dos
insucessos das outras potências coloniais
18 AHM,
1.ª Div. – 39.ª Sec. - Cx. 3 – N.º 1. Sublinhados nossos. (19) AHM, 1.ª Div. – 39.ª Sec. - Cx. 3 – N.º 1. Sublinhados
nossos. Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323
antecipavam
o actual conceito das guerras não-ganháveis (non winnable
wars). A
carta para Salazar constitui, porventura, o último documento de um processo
político-militar que seria interrompido, em 13 de Abril de 1961, pela demissão
da maioria dos principais chefes militares. No ano seguinte, era publicado o livro Portugal, o Ultramar e o Futuro, de Manuel José Homem de Mello, com um prefácio do ex-presidente Craveiro Lopes. Em
consonância ideológica com o espírito da mudança preconizada por Moniz, Homem
de Mello haveria de resumir todo o pensamento estratégico subjacente ao malogrado
pronunciamento: Afastemos, de vez, a concepção que procura impor manu
militari “a nossa presença no mundo. Portugal terá tudo a seu favor (história,
missionação, razão, etc.). Seria trágico tentar ficar ao sabor da única coisa
que não tem – a força”!”(20) No plano internacional, o início da luta armada em
Angola iria provocar o distanciamento político entre o governo de Lisboa e
alguns dos seus aliados tradicionais. Apesar da
importância dos Açores para a defesa da Europa, o governo dos EUA não só prontamente
reduz o auxílio militar a Portugal (21) como não
se coíbe de votar na ONU contra a resistência portuguesa ao movimento de
descolonização. Salazar, em
entrevista à revista LIFE, de 04-05-1962, sendo-lhe perguntado “Julga V.
Ex.ª que será do interesse de Portugal e da Europa Ocidental renovarem-se com
os EUA as facilidades na base dos Açores?” não hesitou em afirmar: “Desejaria
não responder a esta pergunta e pediria que a mesma não fosse formulada”. (22) Se era esta a posição publicamente assumida, facilmente
se deduz o que se passava nos bastidores da diplomacia. Portugal deixou
arrastar as negociações para além da data de termo do acordo vigente, que
expiraria no final de 1962, avisando que permitiria a permanência das forças
americanas até ao encerramento das mesmas. Na prática, o governo de
Lisboa pretendia assegurar-se de que os EUA iriam recuar, com carácter
duradouro, para posições mais favoráveis à permanência de Portugal em África,
sem o que não haveria acordo para continuarem nos Açores. Esta
posição de firmeza lograria fazer abrandar a hostilidade americana a partir de
Agosto de 1962. No plano
regional africano, é no ano de 1964 que Portugal procura entendimentos com os
vizinhos da África Austral, apoiando Tschombé
e Mobutu na República Democrática do Congo (ex-belga) e o movimento de independência branca na Rodésia do Norte, sob a liderança de Ian Smith.
Davam-se, assim, os primeiros passos para uma aliança de facto entre os
territórios de dominação branca, no qual seria incluída, como elemento
principal, a República
da África do Sul.
(20)
HOMEM DE MELLO, Manuel J., Portugal, o
Ultramar e o Futuro, p. 116. (21) ANTUNES, J. Freire, Kennedy e Salazar – O leão e a
raposa, p. 240. (22)
SALAZAR, Oliveira, Entrevistas, p. 97.
Aparentemente confiante, Salazar
profere, em 18-02-1965, um dos discursos mais elucidativos das suas
convicções: “Vamos em quatro anos de lutas e ganhou-se alguma coisa com o
dinheiro do povo, o sangue dos soldados, as lágrimas das mães? Pois atrevo-me a
responder que sim. No plano internacional, começou por condenar-se sem remissão
a posição portuguesa; passou depois a duvidar-se da validade das teses que se
lhe propunham, e acabaram muitos dos homens mais responsáveis por vir a
reconhecer que Portugal se bate afinal não só para firmar um direito seu mas
para defender princípios e interesses comuns a todo o Ocidente. No plano
africano, quatro anos de sacrifícios deram tempo a que se esclarecesse melhor o
problema das províncias ultramarinas portuguesas... [...] Assim, bastantes
povos africanos nos parecem mais compreensivos das realidades e mais moderados
de atitudes. Eis o ganho positivo desta batalha em que – os portugueses
europeus e africanos – combatemos sem espectáculo e sem alianças,
orgulhosamente sós.” (23) Salazar terá querido tirar algum efeito emocional e
literário da expressão “orgulhosamente sós”, a qual, tendo um fundo de verdade,
configurava um certo exagero. No campo diplomático, o governo
português procurou contrariar a crescente animosidade anticolonialista dos países
da OTAN, realçando a circunstância de a luta que as Forças Armadas portuguesas
travavam em África se inserir na lógica do conflito Este-Oeste, para o qual
eram de enorme importância as posições detidas por Portugal no Atlântico e no
Índico. Além do apoio
da Espanha e da África do Sul, Portugal foi conseguindo adquirir armamento e
outro equipamento militar de países como a França e a República Federal da
Alemanha, o que não
impediu, porém, que, no confronto da qualidade do armamento, a situação das
forças portuguesas começasse a ficar em crescente desvantagem. O ano de 1965 iria terminar sem que o acordo da base
das Lages, caducado no final de 1962, fosse renovado. A tensão entre os dois
países já não atinge a intensidade dos primeiros dois anos da administração
Kennedy, mas tarda a retomar a configuração habitual entre aliados. A crise da Rodésia
do Norte agudiza-se com a declaração unilateral de independência, em
11-11-1965, atitude que é vista com simpatia pelo governo português. O que vai
seguir-se é uma resposta militar da Grã-Bretanha na África Austral, colocando
os dois velhos aliados em rota de colisão. Admitir que, por essa altura, Portugal estivesse a
aplicar um conceito estratégico clássico é, assim, uma presunção de difícil
dedução académica. De relações tensas com as duas principais potências
marítimas – os EUA e a Grã Bretanha – e procurando “novos amigos” nos países
africanos dominados pela minoria branca, Portugal empenhava-se, se não num
novo conceito estratégico, numa opção pragmática que anunciava, simplesmente,
que a resistência ia continuar.
(23)
SALAZAR, António O., Antologia, p. 274.
Revista Portuguesa de História Militar, Ano I, n.º 1 ISSN 2795-4323
DAVID MARTELO Coronel de infantaria (reformado), autor
de diversas obras de História
Militar, entre as
quais “A Espada
de Dois Gumes. As Forças Armadas do Estado Novo”, “As Mágoas do Império” e
“1974 Cessar Fogo em África”.
Tradutor de figuras famosas como Tucídides,
Maquiavel, Garibaldi, Jomini e Mussolini.
É administrador
do blogue de História Militar
“A Bigorna”, em www.a-bigorna.pt. Citar este texto: MARTELO, David – Conceito Estratégico do do Estado
Novo,
1945-1965. Revista Portuguesa de História Militar - Dossier: Início da Guerra
de África 1961-1965. Lisboa. ISSN 2795-4323. Ano I, nº 1 (Dezembro 2021).
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