À formação do carácter, embora também
confie na prática do desporto, pelo menos quando esse é traduzido em modéstia
no alcance das vitórias e não, como hoje, sobretudo na ambição da riqueza. O
exemplo da família é um reforço, a leitura das histórias, já mesmo as infantis,
dominadas na sua maioria, pelos princípios da rectidão, ou, mais tarde, dos
mestres na arte das filosofias ou das reflexões morais, para além dos enredos romanescos
vários, dão o seu contributo para esse efeito. Julgo que, no nosso país, se
houvesse mais o recurso às leituras, teríamos uma sociedade mais sã, moralmente
falando.
Daqui parto para uma referência tantas
vezes assistida, geralmente nos cafés, onde crianças de berço ou mais
crescidinhas mesmo, gritam desalmadamente, ante a indiferença do pai ou da mãe,
desatentos, debruçados nos seus telemóveis, ou conversando com os parceiros de
mesa, indiferentes a quem está – e sobretudo indiferentes à criança ensonada,
ou apenas sentindo-se menosprezada pelo pai ou mãe. Estou fugindo do tema posto
pelo Sr. Embaixador Luís Soares de
Oliveira, mas senti que esta questão a que tantas vezes assisto, e que
contrasta com a atitude dos pais estrangeiros, atentos e carinhosos mas dentro
de uma seriedade “britânica” excluindo a pieguice, é demonstrativa do nosso modus agendi lusitano bem reprovável em
termos educativos. Mas peço desculpa
pela achega, bem fora do tema - que não se via dantes, talvez por vivermos numa
sociedade menos democratizada, embora, graciosamente houvesse quem se alargasse
em alegres e despojados dizeres estudantis de “tudo ao molho e fé em Deus”.
DISCIPLINA E DESPORTO NA FORMAÇÃO DA
VONTADE
José Correia Guedes, psicólogo nato, aborda a pgs 46/7 do seu livro mais
recente - «CARLOS BLECK, O HERÓI ESQUECIDO» -
a questão do efeito que tem nas opções do adulto o modo da educação recebida
durante a infância e deixa-nos uma dúvida. Terá sido
a rígida disciplina prussiana que o Pai de Carlos lhe impôs acompanhada dos
ousados e duros exercícios desportivos que praticava com o Avô a explicação da
opção pelo pioneirismo aéreo e pela política opressiva a que viria a aderir
quando adulto? Até onde
os desejos de aventura, a paixão pela aviação, o gosto pelas expedições solitárias
e as sinistras opções políticas repressivas do Carlos adulto foram produto dos
rigores do sistema pedagógico a que os familiares o submeteram na sua infância?
O autor faz a pergunta e deixa-nos sem resposta. Lança a pergunta ao
vento mas anota que a dureza da disciplina pode ter sido causa de
dissabores.
Correia Guedes será um dos raros autores portugueses que versou
tão transcendente tema e este interessou-me especialmente pois que se dá aqui
uma convergência: eu suportei a mesma liturgia bicéfala - disciplina
prussiana e desportivismo anglo-saxão - tanto em casa (meu pai
disciplinador, meu avô equitador) como no Colégio Militar, nos anos
1939/45, (durante a II guerra mundial), tempo em que a pedagogia escolar
esteve ali dominada por oficiais que tinham feito estágios militares na
Alemanha donde voltaram deslumbrados com o rigor do regime ali vigente. Porém, durante este período começaram também
a aparecer entre os professores alguns instrutores civis milicianos, atletas
por direito próprio, que nos deram conhecimento de artes que
despertaram a nossa atenção.
A
disciplina de origem prussiana - também conhecida por «ordem unida» - tinha por
finalidade suprimir todo e qualquer pensamento do disciplinado. A função pensante era ali substituída pela pronta
obediência e o discípulo passava a pensar pela cabeça do seu superior. O
espantoso é que na Alemanha tal metodologia resultou, sobretudo quando
enquadrado num ambiente militar. Porém, em Portugal - e no CM - o efeito
foi outro. O excesso de disciplina deu lugar ao refractarismo que passou a
ser a "cultura" de cerca de metade dos colegas de curso, eu incluído.
Fundámos uma associação clandestina resistente chamada «Os Lingrinhas»
de que fui Presidente (sempre contestado). Por seu turno, o recém-chegado
desportivismo produziu que me lembre - só no meu Curso e post-Colégio - três
recordes nacionais de atletismo, dois Grandes Prémios hípicos, um defesa da
equipe de honra do Benfica e um nadador da seleção nacional.
Porquê esta adesão e aquela repulsa? Sobre o assunto achei curioso indagar o que diziam
os pedagogos daquele tempo. Jules
Payot psicólogo
francês muito lido então (o seu livro "A formação da vontade" foi traduzido para português por Jaime
Cortesão) diz-nos que as ideias que
vão surgindo antes e durante a adolescência são sol de pouca dura. O que
fica para toda a vida e pode influenciar futuras opções de adultos são
sentimentos. Somos gratos para sempre a quem nos acarinhou. Ficamos gratos a tudo que, como o desporto,
nos deu energia e nos permitiu a alegria da vitória sobre nós mesmos, sobre a
nossa indolência nata, a nossa cobardia, o nosso medo da solidão e a nossa
perplexidade perante os desafios da vida. Foi
a energia cultivada na infância que permitiu a alguns passarem de leitores a
escritores, mas não a decidir as suas opções. Simultaneamente odiamos a
disciplina porque ela nos priva de nós mesmos. A raiva que ela nos inspirou,
essa é persistente.
A
então também famosa ensaísta Melanie
Klein, (Escola
Austríaca, professora em Londres antes da II Guerra Mundial), aceitava a
tese que sentimentos desenvolvidos na infância são os que revelam o adulto - e não as ideias . Os sentimentos influenciam o carácter, e ia
buscá-los mais atrás. Disse que são os afectos e desafectos da primeira
infância que formam o homem real e, entre tais sentimentos , seriam
determinantes a inveja e a gratidão.
Não
me demoro mais com a Melanie, pois dela só tenho referências enciclopédicas.
Diria contudo que os dois pedagogos têm razão. No meu caso, os modos e ideais
dos «Lingrinhas» tiveram muito mais influência sobre as minhas decisões de
adulto do que as prédicas do instrutor militar e outros professores, com excepção
de Cristóvão de Lima, professor de português, miliciano, vencedor da
primeira Taça da Portugal como defesa da Académica (que a malta ganhava a
Taça…) e que, nas aulas, em vez de nos impingir teorias nos pôs a escrever
histórias. Era um desportista.
Conclusão:
ideias só por si não tem força persuasiva suficiente. Para influenciar seres
humanos será preciso criar um estado afectivo. No caso, uma coisa me parece
certa: Carlos Bleck tomou as suas decisões adultas movido ou por amor ou por
raiva mas nunca por cálculo ou por submissão.
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