segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Outras coisas ajudam


À formação do carácter, embora também confie na prática do desporto, pelo menos quando esse é traduzido em modéstia no alcance das vitórias e não, como hoje, sobretudo na ambição da riqueza. O exemplo da família é um reforço, a leitura das histórias, já mesmo as infantis, dominadas na sua maioria, pelos princípios da rectidão, ou, mais tarde, dos mestres na arte das filosofias ou das reflexões morais, para além dos enredos romanescos vários, dão o seu contributo para esse efeito. Julgo que, no nosso país, se houvesse mais o recurso às leituras, teríamos uma sociedade mais sã, moralmente falando.

Daqui parto para uma referência tantas vezes assistida, geralmente nos cafés, onde crianças de berço ou mais crescidinhas mesmo, gritam desalmadamente, ante a indiferença do pai ou da mãe, desatentos, debruçados nos seus telemóveis, ou conversando com os parceiros de mesa, indiferentes a quem está – e sobretudo indiferentes à criança ensonada, ou apenas sentindo-se menosprezada pelo pai ou mãe. Estou fugindo do tema posto pelo Sr. Embaixador Luís Soares de Oliveira, mas senti que esta questão a que tantas vezes assisto, e que contrasta com a atitude dos pais estrangeiros, atentos e carinhosos mas dentro de uma seriedade “britânica” excluindo a pieguice, é demonstrativa do nosso modus agendi lusitano bem reprovável em termos educativos. Mas peço desculpa pela achega, bem fora do tema - que não se via dantes, talvez por vivermos numa sociedade menos democratizada, embora, graciosamente houvesse quem se alargasse em alegres e despojados dizeres estudantis de “tudo ao molho e fé em Deus”.

 

DISCIPLINA E DESPORTO NA FORMAÇÃO DA VONTADE

LUIS SOARES DE OLIVEIRA

José Correia Guedes, psicólogo nato, aborda a pgs 46/7 do seu livro mais recente - «CARLOS BLECK, O HERÓI ESQUECIDO» - a questão do efeito que tem nas opções do adulto o modo da educação recebida durante a infância e deixa-nos uma dúvida. Terá sido a rígida disciplina prussiana que o Pai de Carlos lhe impôs acompanhada dos ousados e duros exercícios desportivos que praticava com o Avô a explicação da opção pelo pioneirismo aéreo e pela política opressiva a que viria a aderir quando adulto? Até onde os desejos de aventura, a paixão pela aviação, o gosto pelas expedições solitárias e as sinistras opções políticas repressivas do Carlos adulto foram produto dos rigores do sistema pedagógico a que os familiares o submeteram na sua infância? O autor faz a pergunta e deixa-nos sem resposta. Lança a pergunta ao vento mas anota que a dureza da disciplina pode ter sido causa de dissabores.

Correia Guedes será um dos raros autores portugueses que versou tão transcendente tema e este interessou-me especialmente pois que se dá aqui uma convergência: eu suportei a mesma liturgia bicéfala - disciplina prussiana e desportivismo anglo-saxão - tanto em casa (meu pai disciplinador, meu avô equitador) como no Colégio Militar, nos anos 1939/45, (durante a II guerra mundial), tempo em que a pedagogia escolar esteve ali dominada por oficiais que tinham feito estágios militares na Alemanha donde voltaram deslumbrados com o rigor do regime ali vigente. Porém, durante este período começaram também a aparecer entre os professores alguns instrutores civis milicianos, atletas por direito próprio, que nos deram conhecimento de artes que despertaram a nossa atenção.

A disciplina de origem prussiana - também conhecida por «ordem unida» - tinha por finalidade suprimir todo e qualquer pensamento do disciplinado. A função pensante era ali substituída pela pronta obediência e o discípulo passava a pensar pela cabeça do seu superior. O espantoso é que na Alemanha tal metodologia resultou, sobretudo quando enquadrado num ambiente militar. Porém, em Portugal - e no CM - o efeito foi outro. O excesso de disciplina deu lugar ao refractarismo que passou a ser a "cultura" de cerca de metade dos colegas de curso, eu incluído. Fundámos uma associação clandestina resistente chamada «Os Lingrinhas» de que fui Presidente (sempre contestado). Por seu turno, o recém-chegado desportivismo produziu que me lembre - só no meu Curso e post-Colégio - três recordes nacionais de atletismo, dois Grandes Prémios hípicos, um defesa da equipe de honra do Benfica e um nadador da seleção nacional.

Porquê esta adesão e aquela repulsa? Sobre o assunto achei curioso indagar o que diziam os pedagogos daquele tempo. Jules Payot psicólogo francês muito lido então (o seu livro "A formação da vontade" foi traduzido para português por Jaime Cortesão) diz-nos que as ideias que vão surgindo antes e durante a adolescência são sol de pouca dura. O que fica para toda a vida e pode influenciar futuras opções de adultos são sentimentos. Somos gratos para sempre a quem nos acarinhou. Ficamos gratos a tudo que, como o desporto, nos deu energia e nos permitiu a alegria da vitória sobre nós mesmos, sobre a nossa indolência nata, a nossa cobardia, o nosso medo da solidão e a nossa perplexidade perante os desafios da vida. Foi a energia cultivada na infância que permitiu a alguns passarem de leitores a escritores, mas não a decidir as suas opções. Simultaneamente odiamos a disciplina porque ela nos priva de nós mesmos. A raiva que ela nos inspirou, essa é persistente.

A então também famosa ensaísta Melanie Klein, (Escola Austríaca, professora em Londres antes da II Guerra Mundial), aceitava a tese que sentimentos desenvolvidos na infância são os que revelam o adulto - e não as ideias . Os sentimentos influenciam o carácter, e ia buscá-los mais atrás. Disse que são os afectos e desafectos da primeira infância que formam o homem real e, entre tais sentimentos , seriam determinantes a inveja e a gratidão.

Não me demoro mais com a Melanie, pois dela só tenho referências enciclopédicas. Diria contudo que os dois pedagogos têm razão. No meu caso, os modos e ideais dos «Lingrinhas» tiveram muito mais influência sobre as minhas decisões de adulto do que as prédicas do instrutor militar e outros professores, com excepção de Cristóvão de Lima, professor de português, miliciano, vencedor da primeira Taça da Portugal como defesa da Académica (que a malta ganhava a Taça…) e que, nas aulas, em vez de nos impingir teorias nos pôs a escrever histórias. Era um desportista.

Conclusão: ideias só por si não tem força persuasiva suficiente. Para influenciar seres humanos será preciso criar um estado afectivo. No caso, uma coisa me parece certa: Carlos Bleck tomou as suas decisões adultas movido ou por amor ou por raiva mas nunca por cálculo ou por submissão.

Luis Soares de Oliveira

 

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