Mais uma bela lição de teologia adaptada aos novos
tempos, pelo P. Gonçalo
Portocarrero de Almada, que provocaria excelentes comentários mas também as
aberrações próprias dos “tiólogos” da esperteza envolvida em presunção corriqueira,
provavelmente mais assente num “modus
vivendi” não direi farisaico mas pedantemente laico, feito de um saber de
diligência prática, com muitos ó tio, ó
tio fortalecedor da auto-estima, em moda.
Nós, os fariseus
O que hoje são os católicos
praticantes, em relação aos não-crentes e aos crentes não praticantes, assim
eram os fariseus de há dois mil anos.
P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA
OBSERVADOR, 22 JAN 2022
Sempre
que algum católico faz referência crítica aos seus heterodoxos irmãos na fé, há
quem considere que falta à caridade ou, como agora se diz, é pouco inclusivo,
senão mesmo fundamentalista e fanático. À conta
desses piropos, também se lhe chama fariseu, à laia de insulto. Embora pouco
simpático, este epíteto é verdadeiro em relação aos católicos que, sabendo-se
pecadores, se esforçam por ser bons cristãos. Nós, os católicos que procuramos
ser ortodoxos e coerentes, somos, de facto, os novos fariseus!
Dos
fariseus contemporâneos de Jesus de Nazaré só nos
chegou a visão negativa que deles dá o Evangelho e que fez, desta denominação,
um sinónimo de duplicidade e hipocrisia. Curiosamente, não obstante as violentas invectivas
de Jesus de Nazaré contra algumas práticas farisaicas, mas não contra os
fariseus, não consta que ninguém o tenha acusado de faltar à
caridade, ou de ser pouco inclusivo, fundamentalista ou fanático.
Não
obstante essas críticas, esses discursos de Jesus implicam um certo reconhecimento
da virtude dos fariseus. Ao lhes censurar o modo como rezavam, se
sacrificavam e praticavam obras de caridade, Cristo reconhece que, ainda que
imperfeitamente, rezavam, se sacrificavam e procuravam viver a caridade, ao
invés dos judeus não praticantes, ou não crentes, que não rezavam, não se
sacrificavam, nem praticavam a caridade. Por outro lado, se Jesus de Nazaré
não reprovou publicamente os ateus, agnósticos e crentes de outras religiões,
não foi porque aprovasse o seu ateísmo, agnosticismo ou crença não cristã, mas
porque, como confidenciou à cananeia, só foi “enviado às ovelhas desgarradas
de Israel” (Mt 15, 24).
Não
obstante as duras críticas de Jesus aos fariseus, que certamente não
favoreceram a sua imagem histórica, os saduceus, que passaram incólumes à
posteridade, não eram melhores. Com efeito, não só eram menos piedosos do que
os fariseus, como pouco esclarecidos, “porque os saduceus dizem que não há
ressurreição, nem anjo, nem espírito; ao passo que os fariseus reconhecem ambas
as coisas” (At 23, 8).
Pode-se,
portanto, considerar, sem ofensa, que os antigos saduceus são hoje
representados pelos que, como os ateus e os agnósticos, não acreditam em anjos
e demónios, nem na ressurreição ou na eternidade. Pelo contrário, os que crêem
nos espíritos e na vida eterna são, mutatis mutandis, os novos fariseus. Estes últimos eram, sem sombra de dúvida, os mais
observantes dos israelitas, os que tinham melhor formação teológica, os mais
cumpridores da Lei, os melhores conhecedores da doutrina dos profetas, os mais
piedosos dos crentes, os mais sacrificados dos membros do povo eleito. Ou seja, o que hoje são os católicos praticantes, em
relação aos não-crentes e aos crentes não praticantes, assim eram os fariseus
de há dois mil anos.
Apesar
da má nota dos fariseus, os saduceus foram os que mais perseguiram os primeiros
cristãos. Por exemplo,
quando Pedro e João “falavam ao povo, sobrevieram os sacerdotes, o oficial
do templo e os saduceus, descontentes de que eles ensinassem o povo e
anunciassem, na pessoa de Jesus, a ressurreição dos mortos. Lançaram mão deles
e meteram-nos na prisão” (At 4, 1-3). Mais adiante diz-se que,
“levantando-se o príncipe dos sacerdotes e todos os do seu partido, que é a
seita dos saduceus, encheram-se de inveja, deitaram as mãos sobre os Apóstolos
e meteram-nos na cadeia pública” (At 5, 17-18). Ao
contrário dos fariseus, de que só alguns se opunham a Cristo, porque outros o seguiam, toda “a seita dos
saduceus” era contra Jesus de Nazaré.
Quando
o Sumo Sacerdote julga os Apóstolos, quem os defende é “um homem do Sinédrio, um fariseu chamado Gamaliel, doutor da Lei, venerado por todo o povo” (At 5, 34). É este
fariseu que aconselha os seus pares a não perseguirem os cristãos, “porque, se
esta iniciativa – ou esta obra – vem dos homens, há-de arruinar-se. Mas, se vem
de Deus, não podereis arruiná-la, e oxalá não vos acheis a combater contra
Deus!” (At 5, 38-39).
Esta
intervenção de Gamaliel remete para o mais importante evangelizador cristão: São
Paulo. Quando
ainda não se tinha convertido ao Cristianismo, foi um zeloso judeu, discípulo
daquele doutor da Lei, como o próprio afirmou: “‘Irmãos e pais, ouvi a defesa
que vou agora apresentar-vos de mim mesmo!’ […]. Ele prosseguiu: ‘Eu sou
judeu, nascido em Tarso da Cilícia; mas fui educado nesta cidade, instruído aos
pés de Gamaliel em todo o rigor da Lei de nossos pais e cheio de zelo por Deus,
como vós todos o sois hoje. Persegui de morte esta Via, algemando e
entregando à prisão homens e mulheres, como precisamente o podem atestar o Sumo
Sacerdote e todo o Senado” (At 22, 1-5).
São
Paulo não só foi discípulo de um dos principais fariseus, mas também ele o foi,
como aliás seus pais: “Sabendo
Paulo que uma parte do Sinédrio era de saduceus e outra de fariseus, exclamou
em alta voz, diante deles: ‘Irmãos, eu
sou fariseu, filho de fariseus, e sou julgado por causa da esperança na
ressurreição dos mortos.’ Quando
disse isto, estabeleceu-se uma grande discussão entre os fariseus e os
saduceus, e dividiu-se a assembleia” (At 23, 6-7). Note-se que Paulo não diz
que foi fariseu, mas que o é!
Quando
o judaísmo de Saulo foi posto em causa, o Apóstolo dos gentios não deixou
por mãos alheias os seus méritos na fé de Israel: “Se algum outro pode confiar
na carne, muito mais eu, circuncidado no oitavo dia, da geração de Israel, da
tribo de Benjamim, hebreu de pais hebreus, segundo a Lei, fariseu, quanto ao
zelo, perseguidor da Igreja, quanto à justiça da Lei, irrepreensível no meu
proceder” (Fl 3, 4-6).
Seguramente não era o único fariseu
entre os primeiros cristãos, pois “a palavra do Senhor ia-se espalhando cada
vez mais, multiplicava-se muito o número dos discípulos em Jerusalém, e também
uma grande multidão de sacerdotes aderia à fé” (At 6, 7), dos quais bastantes seriam fariseus, até
porque era menos provável a conversão dos saduceus.
Quer isto dizer, então, que o farisaísmo
é bom e que já não fazem sentido as críticas de Jesus aos fariseus?! Claro que não, até porque desses fariseus sempre os
houve e há e, por isso, as palavras de Cristo são de grande actualidade, também
em relação aos crentes contemporâneos, nomeadamente católicos. Mas, se eles
foram então censurados pelo modo como interpretavam a Lei, se relacionavam com
Deus e com o seu próximo, rezavam e se sacrificavam, é óbvio que essas críticas só são pertinentes em
relação aos crentes, que são também os únicos que procuram cumprir a Lei, rezar
e oferecer sacrifícios. Portanto,
neste sentido, nós, os católicos, somos os novos fariseus.
Embora
reconheça que o termo não é simpático e tema que a intenção de quem de tal me
acusa não seja a melhor, muito me
alegro quando me chamam fariseu (cf. At 5, 41). Muito pior é, decerto, ser alguém que, embora
configurado com Cristo pelos sacramentos do Baptismo, da Confirmação e até da
Ordem, abdicou de ser “sinal de contradição” (Lc 2, 34), para servir o príncipe
deste mundo. Antes
fariseu, como São Paulo, também ele perseguido e caluniado pelos homens
politicamente correctos do seu tempo. Ou como Nicodemos, “um homem da seita dos fariseus”
(Jo 3, 1) e José de Arimateia, “membro ilustre do Sinédrio” (Mc 15, 43), que
corajosamente exigiram a Pilatos o corpo morto de Jesus (cf. Jo 38-40).
Portanto,
fariseu sim, mas como Paulo, Nicodemos e José de Arimateia. Apesar da má-fama
deste bom farisaísmo, pior farisaísmo é o dos que, julgando-se superiores
aos pecadores que lutam por ser melhores, os acusam de ser fariseus…
CRISTIANISMO RELIGIÃO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
Tiago Terraquente: Sendo um leitor assíduo e interessado do autor cabe-me
apontar dois erros na sua análise. 1. A posição teológica do autor no que
toca à salvação e o seu entendimento da religiosidade obrigam-no a dourar e
a legitimar os fariseus. É importante salientar que o Senhor Jesus afirma no
Sermão do Monte que se a justiça (com toda a carga teológica do termo) dos seus
ouvintes não superar em muito a dos fariseus de forma alguma entrarão no reino
de Deus. Jesus também denuncia frequentemente a religiosidade dos fariseus,
as suas orações e a sua caridade (ou falta dela, ver parábola do Bom
Samaritano, entre outros textos) como errada e sem proveito algum (pois saem do
templo sem justificação) devido à sua hipocrisia e vaidade. Todo o crente
verdadeiro e instruído vai rejeitar uma associação ao farisaísmo e ao que ele
representava. O apóstolo Paulo foi fariseu e como fariseu perseguiu o
próprio Cristo (ver episódio da aparição na estrada de Damasco). Depois da sua
conversão ele reputou toda a sua vida passada como refugo. Ele passou a
descrever a sua vida anterior (e farisaica) como sendo a do pior dos pecadores.
2. O autor erra quando pressupõe que a maioria dos
fariseus eram recomendáveis e apenas um punhado correspondia às denúncias de
Jesus. O Novo Testamento retrata um cenário oposto. A maioria dos fariseus são
apresentados como legalistas, sem um coração caridoso e hipócritas. São
apresentados como tendo uma fé assente no mérito próprio e não na graça divina.
Como em todos os grupos deste mundo, poucos foram os fariseus que se
converteram e passaram pela “porta estreita”. “Nós os publicanos” é o
sentimento daquele que foi salvo pela Graça de Cristo tendo clamado por
propiciação. Mesmo quando se envolve nas boas obras, este reconhecerá que
foi a Graça de Deus para consigo e a ação do Espírito Santo que operaram na sua
vida. João Paulo Reis: Concordo inteiramente com o P. Gonçalo,
mas pessoalmente em todos os Evangelhos o episódio com fariseus que mais me
marca é o da oração com o publicano que me faz identificar com este normalmente
proscrito pela sociedade de então. Obrigado! Fernando Soares Loja: No tempo de Jesus havia vários grupos religiosos/políticos,
sendo o dos Fariseus o mais numeroso e o mais influente. Entre os que seguiam Jesus havia quem
fosse fariseu, embora a maior parte dos "alunos"/ discípulos não
fosse. Os discípulos mais próximos de Jesus não pertenciam a este grupo de homens
influentes, mas havia fariseus que eram discípulos de Jesus, como José de
Arimateia e Nicodemos. E como diz o Pr. Portocarrero, S. Paulo era
fariseu. É verdade que alguns fariseus eram opositores de Jesus
e foram severamente criticados por Ele e por João Baptista, mas não se pode
tomar a parte pelo todo. Havia fariseus hipócritas mas em que partido ou grupo
não há hipócritas?
Vossa Eminência: O meu colega, este nosso bom padre Portocarrero quer
estragar-nos o negócio... O mestre apelidava de fariseus aqueles hipócritas que
pretendendo seguir a mais estrita lei moisaica, se revelavam sectários e
intolerantes no julgamento dos outros, sendo no entanto indulgentes e
compassivos com as suas próprias faltas... Luís Barreto: E lá está o padre Almada a dizer, outra
vez, que não sou católico… O que é que aconteceu ao espírito missionário? AAA First: Fiquei baralhado e não foi pouco. Se nós,
os católicos, somos os novos fariseus, onde estão e quem são o equivalente aos
seus discípulos da altura? Esses não eram fariseus, embora também tivessem os
seus defeitos: Pedro negou Cristo três vezes, queriam os primeiros lugares no
Reino, fugiram após prenderem Cristo, etc. A lista é imensa. Contudo, não
eram fariseus. Então quem são, dentre os católicos actuais, os equivalentes aos
discípulos da altura?
Pontifex Maximus Os
saduceus eram pouco esclarecidos “porque os saduceus dizem que não há
ressurreição, nem anjo, nem espírito; ao passo que os fariseus reconhecem ambas
as coisas”? Senhor padre, como agnóstico ateu também não acredito nessa
patranha, embora saiba que não posso provar o contrário. Mas o senhor pode
provar o que quer que seja neste âmbito? advoga diabo: A principal lição que JC ensinou foi a
tolerância para com fariseus, vingativos e persecutórios, mesmo para os que
vestem batina!
Carlos Quartel: As religiões são, por sua natureza,
fundamentalistas e exclusivistas. Vendem a verdade, a sua verdade, o que
implica que todos os outros são cegos, que não vêem a luz e a quem é
preciso abrir os olhos. Se o oftalmologista não resolver o assunto, há sempre
a fogueira, a bomba, a lapidação, ou mesmo o arrancar o coração com o
cliente vivo.Provocaram mais mortos e mais desgraça do que Hitler, Lenine,
Estaline e Mao juntos e são a praga mais mortífera e que mais vidas
sacrificou Comparados com a religião, qualquer vírus não passa de
uma brincadeira de crianças. Tempo de acabar com a narrativa ..... Coronavirus corona » Carlos Quartel Quem não conhece nada da doutrina da Igreja tende para
mandar uns arrotos de ignorância deste calibre. Fernando Soares Loja » Carlos Quartel: Com o devido respeito, as contas estão mal feitas. As
muitas centenas de milhares de vítimas das guerras religiosas, a lamentar,
ainda assim ficam muito aquém das centenas de milhões de vítimas da
responsabilidade de ateus e agnósticos como Lenin e Stalin, Ceausescu,
Hitler e Himmler, Mao e Cª etc etc ... Não
há comparação. Os comunistas que criaram o GULAG eram tão fundamentalistas e
exclusivistas como os religiosos da Inquisição, mas o dano do GULAG foi muito
superior ao da Inquisição. E o número dos milhões de vítimas do Partido
Comunista Chinês e da Coreia do Norte continua a crescer até hoje. Mas, claro que sabe bem repetir uma mentira
porque como dizia Goebbels, o da propaganda nazi, uma mentira repetida muitas
vezes torna-se verdade.
Carminda Damiao
» Fernando Soares Loja: Só queria acrescentar que as centenas de
milhares de vítimas de guerras religiosas se verificaram em muitas centenas de
anos, enquanto as centenas de milhões que refere (de ateus e agnósticos), se passaram
apenas num século.
Carminda Damiao » Carlos Quartel: Aconselho-o a ler o artigo da jornalista
Manuela de Sousa Rama, intitulado: Ensaio Sobre a Ignorância, que se encontra
neste jornal.
Maria Correia: O problema dessa tabela de medição de fé por
prática de ritos acaba por fazer mais danos que a boa da tradição popular que
até mistura tudo e é capaz de o fazer umas vezes por tradição, outras não fazer
porque não. A diferença está na noção de falta e haver sempre algo
superior a todos nós que é mais que nós e julgamento, seja na terra, seja
sabe-se lá onde, das nossas faltas. Quem apenas tem medo da polícia é mais
livre para mais facilmente se desculpar das grandes faltas. Quem acredita em Deus, teme Deus e
julga-se a si próprio em consciência. Quem é capaz de se julgar a si próprio em consciência,
sem acreditar em mais nada não será má pessoa. Suponho que naturalmente, se não
tiver colocado ou a Ciência ou a Ideologia no lugar da crença, acabará
naturalmente por ser crente. E pode nem seguir nenhuma doutrina. Não vejo mal nisso. Temo mais dos
crentinhos que se consideram acima dos humanos e que lá acham que apenas têm de
prestar contas ao seu Deus. Praticando todos os ritos, se for preciso, sendo
até padres, em muitos casos, como alguns freis bentos dos jornais. jota santos » Maria Correia de e a Deus não sinto temor nem medo, sinto amor e
adoração. porque não se teme nem se tem medo de quem se adora. Julgar-se a si próprio sem uma consciência
formada no crescimento com espirito santo, não se julga desculpabiliza-se. Só se chega ao amor e adoração a Deus não
pela exaltação mas pela humildade e, principalmente, pela caridade. Eu o insignificante, o pecador me confesso
- tudo o resto é tretas e palavras. Maria Correia: Farisaísmo não é isso. Farisaísmo é a
autocomiseração de quem se quer mostrar melhor que todos os outros e perante
Deus o mais verdadeiro e a melhor pessoa e denuncia o próximo por não ser tão
bom quanto ele. É o vício da falsa moral tradicional
da esquerda. São moralistas por hipocrisia e sempre para perseguirem, em nome
dessa superioridade moral, os outros. Também
prefiro um ateu com carácter e bondade a um falso crente e ainda pior, a um
inquisidor e medidor da falta de fé dos outros. Coronavirus
corona: Mais
uma daquelas crónicas que vai perdurar na nossa mente e nos faz reflectir. Alberto Pereira: Excelente artigo! Totalmente de acordo.aptada aos novos
tempos, pelo P. Gonçalo
Portocarrero de Almada, que provocaria excelentes comentários mas também as
aberrações próprias dos “tiólogos” da esperteza envolvida em presunção corriqueira,
provavelmente mais assente num “modus
vivendi” não direi farisaico mas pedantemente laico, feito de um saber de
diligência prática, com muitos ó tio, ó
tio fortalecedor da auto-estima, muito em moda.
Nós, os fariseus
O que hoje são os católicos
praticantes, em relação aos não-crentes e aos crentes não praticantes, assim
eram os fariseus de há dois mil anos.
P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA
OBSERVADOR, 22 JAN 2022
Sempre
que algum católico faz referência crítica aos seus heterodoxos irmãos na fé, há
quem considere que falta à caridade ou, como agora se diz, é pouco inclusivo,
senão mesmo fundamentalista e fanático. À conta
desses piropos, também se lhe chama fariseu, à laia de insulto. Embora pouco
simpático, este epíteto é verdadeiro em relação aos católicos que, sabendo-se
pecadores, se esforçam por ser bons cristãos. Nós, os católicos que procuramos
ser ortodoxos e coerentes, somos, de facto, os novos fariseus!
Dos
fariseus contemporâneos de Jesus de Nazaré só nos
chegou a visão negativa que deles dá o Evangelho e que fez, desta denominação,
um sinónimo de duplicidade e hipocrisia. Curiosamente, não obstante as violentas invectivas
de Jesus de Nazaré contra algumas práticas farisaicas, mas não contra os
fariseus, não consta que ninguém o tenha acusado de faltar à
caridade, ou de ser pouco inclusivo, fundamentalista ou fanático.
Não
obstante essas críticas, esses discursos de Jesus implicam um certo reconhecimento
da virtude dos fariseus. Ao lhes censurar o modo como rezavam, se
sacrificavam e praticavam obras de caridade, Cristo reconhece que, ainda que
imperfeitamente, rezavam, se sacrificavam e procuravam viver a caridade, ao
invés dos judeus não praticantes, ou não crentes, que não rezavam, não se
sacrificavam, nem praticavam a caridade. Por outro lado, se Jesus de Nazaré
não reprovou publicamente os ateus, agnósticos e crentes de outras religiões,
não foi porque aprovasse o seu ateísmo, agnosticismo ou crença não cristã, mas
porque, como confidenciou à cananeia, só foi “enviado às ovelhas desgarradas
de Israel” (Mt 15, 24).
Não
obstante as duras críticas de Jesus aos fariseus, que certamente não
favoreceram a sua imagem histórica, os saduceus, que passaram incólumes à
posteridade, não eram melhores. Com efeito, não só eram menos piedosos do que
os fariseus, como pouco esclarecidos, “porque os saduceus dizem que não há
ressurreição, nem anjo, nem espírito; ao passo que os fariseus reconhecem ambas
as coisas” (At 23, 8).
Pode-se,
portanto, considerar, sem ofensa, que os antigos saduceus são hoje
representados pelos que, como os ateus e os agnósticos, não acreditam em anjos
e demónios, nem na ressurreição ou na eternidade. Pelo contrário, os que crêem
nos espíritos e na vida eterna são, mutatis mutandis, os novos fariseus. Estes últimos eram, sem sombra de dúvida, os mais
observantes dos israelitas, os que tinham melhor formação teológica, os mais
cumpridores da Lei, os melhores conhecedores da doutrina dos profetas, os mais
piedosos dos crentes, os mais sacrificados dos membros do povo eleito. Ou seja, o que hoje são os católicos praticantes, em
relação aos não-crentes e aos crentes não praticantes, assim eram os fariseus
de há dois mil anos.
Apesar
da má nota dos fariseus, os saduceus foram os que mais perseguiram os primeiros
cristãos. Por exemplo,
quando Pedro e João “falavam ao povo, sobrevieram os sacerdotes, o oficial
do templo e os saduceus, descontentes de que eles ensinassem o povo e
anunciassem, na pessoa de Jesus, a ressurreição dos mortos. Lançaram mão deles
e meteram-nos na prisão” (At 4, 1-3). Mais adiante diz-se que,
“levantando-se o príncipe dos sacerdotes e todos os do seu partido, que é a
seita dos saduceus, encheram-se de inveja, deitaram as mãos sobre os Apóstolos
e meteram-nos na cadeia pública” (At 5, 17-18). Ao
contrário dos fariseus, de que só alguns se opunham a Cristo, porque outros o seguiam, toda “a seita dos
saduceus” era contra Jesus de Nazaré.
Quando
o Sumo Sacerdote julga os Apóstolos, quem os defende é “um homem do Sinédrio, um fariseu chamado Gamaliel, doutor da Lei, venerado por todo o povo” (At 5, 34). É este
fariseu que aconselha os seus pares a não perseguirem os cristãos, “porque, se
esta iniciativa – ou esta obra – vem dos homens, há-de arruinar-se. Mas, se vem
de Deus, não podereis arruiná-la, e oxalá não vos acheis a combater contra
Deus!” (At 5, 38-39).
Esta
intervenção de Gamaliel remete para o mais importante evangelizador cristão: São
Paulo. Quando
ainda não se tinha convertido ao Cristianismo, foi um zeloso judeu, discípulo
daquele doutor da Lei, como o próprio afirmou: “‘Irmãos e pais, ouvi a defesa
que vou agora apresentar-vos de mim mesmo!’ […]. Ele prosseguiu: ‘Eu sou
judeu, nascido em Tarso da Cilícia; mas fui educado nesta cidade, instruído aos
pés de Gamaliel em todo o rigor da Lei de nossos pais e cheio de zelo por Deus,
como vós todos o sois hoje. Persegui de morte esta Via, algemando e
entregando à prisão homens e mulheres, como precisamente o podem atestar o Sumo
Sacerdote e todo o Senado” (At 22, 1-5).
São
Paulo não só foi discípulo de um dos principais fariseus, mas também ele o foi,
como aliás seus pais: “Sabendo
Paulo que uma parte do Sinédrio era de saduceus e outra de fariseus, exclamou
em alta voz, diante deles: ‘Irmãos, eu
sou fariseu, filho de fariseus, e sou julgado por causa da esperança na
ressurreição dos mortos.’ Quando
disse isto, estabeleceu-se uma grande discussão entre os fariseus e os
saduceus, e dividiu-se a assembleia” (At 23, 6-7). Note-se que Paulo não diz
que foi fariseu, mas que o é!
Quando
o judaísmo de Saulo foi posto em causa, o Apóstolo dos gentios não deixou
por mãos alheias os seus méritos na fé de Israel: “Se algum outro pode confiar
na carne, muito mais eu, circuncidado no oitavo dia, da geração de Israel, da
tribo de Benjamim, hebreu de pais hebreus, segundo a Lei, fariseu, quanto ao
zelo, perseguidor da Igreja, quanto à justiça da Lei, irrepreensível no meu
proceder” (Fl 3, 4-6).
Seguramente não era o único fariseu
entre os primeiros cristãos, pois “a palavra do Senhor ia-se espalhando cada
vez mais, multiplicava-se muito o número dos discípulos em Jerusalém, e também
uma grande multidão de sacerdotes aderia à fé” (At 6, 7), dos quais bastantes seriam fariseus, até
porque era menos provável a conversão dos saduceus.
Quer isto dizer, então, que o farisaísmo
é bom e que já não fazem sentido as críticas de Jesus aos fariseus?! Claro que não, até porque desses fariseus sempre os
houve e há e, por isso, as palavras de Cristo são de grande actualidade, também
em relação aos crentes contemporâneos, nomeadamente católicos. Mas, se eles
foram então censurados pelo modo como interpretavam a Lei, se relacionavam com
Deus e com o seu próximo, rezavam e se sacrificavam, é óbvio que essas críticas só são pertinentes em
relação aos crentes, que são também os únicos que procuram cumprir a Lei, rezar
e oferecer sacrifícios. Portanto,
neste sentido, nós, os católicos, somos os novos fariseus.
Embora
reconheça que o termo não é simpático e tema que a intenção de quem de tal me
acusa não seja a melhor, muito me
alegro quando me chamam fariseu (cf. At 5, 41). Muito pior é, decerto, ser alguém que, embora
configurado com Cristo pelos sacramentos do Baptismo, da Confirmação e até da
Ordem, abdicou de ser “sinal de contradição” (Lc 2, 34), para servir o príncipe
deste mundo. Antes
fariseu, como São Paulo, também ele perseguido e caluniado pelos homens
politicamente correctos do seu tempo. Ou como Nicodemos, “um homem da seita dos fariseus”
(Jo 3, 1) e José de Arimateia, “membro ilustre do Sinédrio” (Mc 15, 43), que
corajosamente exigiram a Pilatos o corpo morto de Jesus (cf. Jo 38-40).
Portanto,
fariseu sim, mas como Paulo, Nicodemos e José de Arimateia. Apesar da má-fama
deste bom farisaísmo, pior farisaísmo é o dos que, julgando-se superiores
aos pecadores que lutam por ser melhores, os acusam de ser fariseus…
CRISTIANISMO RELIGIÃO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
Tiago Terraquente: Sendo um leitor assíduo e interessado do autor cabe-me
apontar dois erros na sua análise. 1. A posição teológica do autor no que
toca à salvação e o seu entendimento da religiosidade obrigam-no a dourar e
a legitimar os fariseus. É importante salientar que o Senhor Jesus afirma no
Sermão do Monte que se a justiça (com toda a carga teológica do termo) dos seus
ouvintes não superar em muito a dos fariseus de forma alguma entrarão no reino
de Deus. Jesus também denuncia frequentemente a religiosidade dos fariseus,
as suas orações e a sua caridade (ou falta dela, ver parábola do Bom
Samaritano, entre outros textos) como errada e sem proveito algum (pois saem do
templo sem justificação) devido à sua hipocrisia e vaidade. Todo o crente
verdadeiro e instruído vai rejeitar uma associação ao farisaísmo e ao que ele
representava. O apóstolo Paulo foi fariseu e como fariseu perseguiu o
próprio Cristo (ver episódio da aparição na estrada de Damasco). Depois da sua
conversão ele reputou toda a sua vida passada como refugo. Ele passou a
descrever a sua vida anterior (e farisaica) como sendo a do pior dos pecadores.
2. O autor erra quando pressupõe que a maioria dos
fariseus eram recomendáveis e apenas um punhado correspondia às denúncias de
Jesus. O Novo Testamento retrata um cenário oposto. A maioria dos fariseus são
apresentados como legalistas, sem um coração caridoso e hipócritas. São
apresentados como tendo uma fé assente no mérito próprio e não na graça divina.
Como em todos os grupos deste mundo, poucos foram os fariseus que se
converteram e passaram pela “porta estreita”. “Nós os publicanos” é o
sentimento daquele que foi salvo pela Graça de Cristo tendo clamado por
propiciação. Mesmo quando se envolve nas boas obras, este reconhecerá que
foi a Graça de Deus para consigo e a ação do Espírito Santo que operaram na sua
vida. João Paulo Reis: Concordo inteiramente com o P. Gonçalo,
mas pessoalmente em todos os Evangelhos o episódio com fariseus que mais me
marca é o da oração com o publicano que me faz identificar com este normalmente
proscrito pela sociedade de então. Obrigado! Fernando Soares Loja: No tempo de Jesus havia vários grupos religiosos/políticos,
sendo o dos Fariseus o mais numeroso e o mais influente. Entre os que seguiam Jesus havia quem
fosse fariseu, embora a maior parte dos "alunos"/ discípulos não
fosse. Os discípulos mais próximos de Jesus não pertenciam a este grupo de homens
influentes, mas havia fariseus que eram discípulos de Jesus, como José de
Arimateia e Nicodemos. E como diz o Pr. Portocarrero, S. Paulo era
fariseu. É verdade que alguns fariseus eram opositores de Jesus
e foram severamente criticados por Ele e por João Baptista, mas não se pode
tomar a parte pelo todo. Havia fariseus hipócritas mas em que partido ou grupo
não há hipócritas?
Vossa Eminência: O meu colega, este nosso bom padre Portocarrero quer
estragar-nos o negócio... O mestre apelidava de fariseus aqueles hipócritas que
pretendendo seguir a mais estrita lei moisaica, se revelavam sectários e
intolerantes no julgamento dos outros, sendo no entanto indulgentes e
compassivos com as suas próprias faltas... Luís Barreto: E lá está o padre Almada a dizer, outra
vez, que não sou católico… O que é que aconteceu ao espírito missionário? AAA First: Fiquei baralhado e não foi pouco. Se nós,
os católicos, somos os novos fariseus, onde estão e quem são o equivalente aos
seus discípulos da altura? Esses não eram fariseus, embora também tivessem os
seus defeitos: Pedro negou Cristo três vezes, queriam os primeiros lugares no
Reino, fugiram após prenderem Cristo, etc. A lista é imensa. Contudo, não
eram fariseus. Então quem são, dentre os católicos actuais, os equivalentes aos
discípulos da altura?
Pontifex Maximus Os
saduceus eram pouco esclarecidos “porque os saduceus dizem que não há
ressurreição, nem anjo, nem espírito; ao passo que os fariseus reconhecem ambas
as coisas”? Senhor padre, como agnóstico ateu também não acredito nessa
patranha, embora saiba que não posso provar o contrário. Mas o senhor pode
provar o que quer que seja neste âmbito? advoga diabo: A principal lição que JC ensinou foi a
tolerância para com fariseus, vingativos e persecutórios, mesmo para os que
vestem batina!
Carlos Quartel: As religiões são, por sua natureza,
fundamentalistas e exclusivistas. Vendem a verdade, a sua verdade, o que
implica que todos os outros são cegos, que não vêem a luz e a quem é
preciso abrir os olhos. Se o oftalmologista não resolver o assunto, há sempre
a fogueira, a bomba, a lapidação, ou mesmo o arrancar o coração com o
cliente vivo.Provocaram mais mortos e mais desgraça do que Hitler, Lenine,
Estaline e Mao juntos e são a praga mais mortífera e que mais vidas
sacrificou Comparados com a religião, qualquer vírus não passa de
uma brincadeira de crianças. Tempo de acabar com a narrativa ..... Coronavirus corona » Carlos Quartel Quem não conhece nada da doutrina da Igreja tende para
mandar uns arrotos de ignorância deste calibre. Fernando Soares Loja » Carlos Quartel: Com o devido respeito, as contas estão mal feitas. As
muitas centenas de milhares de vítimas das guerras religiosas, a lamentar,
ainda assim ficam muito aquém das centenas de milhões de vítimas da
responsabilidade de ateus e agnósticos como Lenin e Stalin, Ceausescu,
Hitler e Himmler, Mao e Cª etc etc ... Não
há comparação. Os comunistas que criaram o GULAG eram tão fundamentalistas e
exclusivistas como os religiosos da Inquisição, mas o dano do GULAG foi muito
superior ao da Inquisição. E o número dos milhões de vítimas do Partido
Comunista Chinês e da Coreia do Norte continua a crescer até hoje. Mas, claro que sabe bem repetir uma mentira
porque como dizia Goebbels, o da propaganda nazi, uma mentira repetida muitas
vezes torna-se verdade.
Carminda Damiao
» Fernando Soares Loja: Só queria acrescentar que as centenas de
milhares de vítimas de guerras religiosas se verificaram em muitas centenas de
anos, enquanto as centenas de milhões que refere (de ateus e agnósticos), se passaram
apenas num século.
Carminda Damiao » Carlos Quartel: Aconselho-o a ler o artigo da jornalista
Manuela de Sousa Rama, intitulado: Ensaio Sobre a Ignorância, que se encontra
neste jornal.
Maria Correia: O problema dessa tabela de medição de fé por
prática de ritos acaba por fazer mais danos que a boa da tradição popular que
até mistura tudo e é capaz de o fazer umas vezes por tradição, outras não fazer
porque não. A diferença está na noção de falta e haver sempre algo
superior a todos nós que é mais que nós e julgamento, seja na terra, seja
sabe-se lá onde, das nossas faltas. Quem apenas tem medo da polícia é mais
livre para mais facilmente se desculpar das grandes faltas. Quem acredita em Deus, teme Deus e
julga-se a si próprio em consciência. Quem é capaz de se julgar a si próprio em consciência,
sem acreditar em mais nada não será má pessoa. Suponho que naturalmente, se não
tiver colocado ou a Ciência ou a Ideologia no lugar da crença, acabará
naturalmente por ser crente. E pode nem seguir nenhuma doutrina. Não vejo mal nisso. Temo mais dos
crentinhos que se consideram acima dos humanos e que lá acham que apenas têm de
prestar contas ao seu Deus. Praticando todos os ritos, se for preciso, sendo
até padres, em muitos casos, como alguns freis bentos dos jornais. jota santos » Maria Correia de e a Deus não sinto temor nem medo, sinto amor e
adoração. porque não se teme nem se tem medo de quem se adora. Julgar-se a si próprio sem uma consciência
formada no crescimento com espirito santo, não se julga desculpabiliza-se. Só se chega ao amor e adoração a Deus não
pela exaltação mas pela humildade e, principalmente, pela caridade. Eu o insignificante, o pecador me confesso
- tudo o resto é tretas e palavras. Maria Correia: Farisaísmo não é isso. Farisaísmo é a
autocomiseração de quem se quer mostrar melhor que todos os outros e perante
Deus o mais verdadeiro e a melhor pessoa e denuncia o próximo por não ser tão
bom quanto ele. É o vício da falsa moral tradicional
da esquerda. São moralistas por hipocrisia e sempre para perseguirem, em nome
dessa superioridade moral, os outros. Também
prefiro um ateu com carácter e bondade a um falso crente e ainda pior, a um
inquisidor e medidor da falta de fé dos outros. Coronavirus
corona: Mais
uma daquelas crónicas que vai perdurar na nossa mente e nos faz reflectir. Alberto Pereira: Excelente artigo! Totalmente de acordo.
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