terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A voz aos contestatários


Já foi a dos hippies e Cia. Hoje cabe a vez, entre outros, aos Velhos do Restelo, nesta estranha condição humana, de alternância de vozes, velhos do Restelo apoiados na rede de comunicação global… Patrícia Fernandes historia os factos. Brilhantemente. Não percamos a esperança. A vida é um carrossel sempre em movimento. E Patrícia Fernandes é jovem, com funções pedagógicas. Não, não percamos a esperança, embora alguns dos comentadores a censurem, os tais da contracultura, cujo processo de silenciamento/linchamento dos “do Restelo” ela bem descreve. Sigamos no carrossel, defendamos os valores da História para os vindouros… Mesmo que seja através da tal rede global, enquanto esta for permitida, apoiados nas Patrícias Fernandes da inteligência e da coragem …

Os politicamente silenciados (parte I)

Parte do apoio que uma figura como Trump obteve prendeu-se com o facto de muitos reconhecerem que o espaço público excluía ilegitimamente uma franja crescente da população com preocupações legítimas.

PATRÍCIA FERNANDES. Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 17 jan 2022

O termo contracultura terá sido cunhado por Theodore Roszak, em 1969, com a publicação de The Making of a Counter Culture: Reflections on the Technocratic Society and Its Youthful Opposition. Roszak procurou compreender e representar o que viríamos a designar como a contracultura dos anos 60: um movimento jovem e estudantil, que nasce no contexto de contestação à Guerra no Vietname e se integra na luta pelos direitos civis que marcava a sociedade norte-americana nesse período. A designação contracultura pretende simbolizar a recusa do mundo das gerações mais velhas e a invocação de uma certa disposição antiburguesa, entre valores de pacifismo e amor livre, música de intervenção e dispositivos estupefacientes. Esta postura de rebelião contra os pais e as figuras de autoridade – naquilo que hoje reconhecemos como o processo normal de afirmação de identidade dos jovens e adolescentes – expandir-se-á para a Europa e ficará simbolicamente ligada às imagens do maio de 68 em França.

Embora o seu uso se tenha proliferado, a palavra contracultura remeterá sempre para esta vivência específica dos anos 60 e 70 do século XX, permitindo-nos identificar a sua especificidade: a contracultura manifesta-se explicitamente no espaço público, com uma imagética, um código de vestuário e uma afirmação pública que pretendem evidenciar um espírito de orgulhosa singularidade. E as décadas seguintes foram incorporando algumas das suas reivindicações, em especial um esvaziamento do sentido de autoridade e hierarquia social e um espírito igualitário, que se coadunaram bem com o discurso que se tornou dominante na segunda metade do século.

Esse discurso hegemónico resulta da confluência de várias correntes, mas podemos dizer que nasce da ordem liberal internacional imaginada por Franklin Roosevelt na fase final da segunda guerra. Assentando nos valores de igualdade, liberdade, emancipação e paz, traduz-se, politicamente, num movimento de globalização que pretende derrubar todas as fronteiras, sejam elas económicas ou humanas. E à medida que esta visão foi afirmando a sua hegemonia, a possibilidade de exprimir ideias e valores que a colocassem em causa foi diminuindo – pelo que palavras como identidade, nação ou fronteiras, mal eram pronunciadas, geravam rapidamente reações de repulsa e silenciamento.

A consequência desta lógica opressiva, que todos os discursos hegemónicos despertam, deu origem a uma consequência natural: todos aqueles que duvidavam dos valores desta nova ordem global aprenderam a não expressar as suas vozes em público e a reprimir as suas ideias. Foi o que aconteceu com os que perfilhavam valores verdadeiramente fascistas, mas também com todos aqueles que acreditavam na ideia de identidade cultural, no valor da nação e na importância das fronteiras, fantasiosamente designados como fascistas pelos guardiães da narrativa oficial, e que foram remetidos para as margens do espaço público.

Contudo, dois factores modificaram este estado de coisas. Por um lado, estas margens foram engrossando, nas últimas duas décadas, com os designados perdedores económicos da globalização, os que iam sentindo as consequências da imigração em massa e os que reclamavam uma actuação estatal mais comprometida com o interesse nacional. Por outro lado, o mundo digital transformou radicalmente a dinâmica das margens: ao possibilitar a existência de fóruns, grupos de conversação e redes sociais, onde prevalecia a partilha livre de ideias, o mundo digital permitiu que aqueles que se sentiam impedidos de expressar as suas preocupações no espaço público, ou que não se sentiam ouvidos, encontrassem um espaço de partilha e consolidação das suas ideias.

De facto, a grande rede global ofereceu aos colocados nas margens, e aos que se iam aproximando delas, um modo de se organizarem enquanto comunidade, isto é, enquanto grupo que tem uma visão do mundo próxima e que partilha o mesmo tipo de preocupações. Nessas comunidades virtuais, experienciavam a liberdade de expressar a sua opinião sem que os guardiães da cidade lhes dissessem que estão errados, que aquilo que sentem não podem sentir e que as suas preocupações são infundadas. Este sentimento comunitário produz efeitos muito fortes naqueles que se consideram excluídos do espaço público, que passam a sentir uma cumplicidade e confiança maiores com quem partilha o mesmo sentimento de exclusão e uma propensão cada vez mais forte para acreditar em narrativas que dão sentido às suas intuições.

O mundo digital possibilitou, assim, o nascimento de uma subcultura política. E utilizamos aqui o termo subcultura porque, ao contrário da contracultura, este movimento afirmou-se, por necessidade, de modo discreto, vivendo nas sombras da internet e estando subrepresentado ou ausente do espaço público.

Foi o que aconteceu na sociedade norte-americana, que assistiu na última década a um crescimento incompreendido de setores políticos radicais, que se posicionam à direita do espectro político. Aproveitando os nichos de liberdade de expressão do mundo digital, onde todas as ideias, das mais conspirativas às mais politicamente incorrectas, podiam ganhar expressão, estes sectores foram crescendo sem que políticos, jornalistas e académicos, fechados nas suas próprias bolhas sociais, se apercebessem. É esta singularidade da subcultura que justifica o facto de muitos terem demorado a compreender o apoio crescente a Donald Trump durante o processo das primárias republicanas, e constitui também uma das razões para que as sondagens tenham falhado e conduzido a uma surpresa quase generalizada pela sua eleição. Quando os actores políticos notaram, esta subcultura já tinha saído das margens e escolhido um presidente que lhes garantia a possibilidade de expressarem o seu descontentamento e o seu ressentimento.

Em boa verdade, parte do apoio que uma figura como Trump conseguiu em muitos países ocidentais prendeu-se com o facto de muitas pessoas reconhecerem que o espaço público excluía ilegitimamente uma franja crescente da população com preocupações legítimas – e isto independentemente de concordarem com essas posições.

Em sentido contrário, a reacção maioritária dos guardiães da cidade não consistiu em reconhecer essa legitimidade, mas em aprofundar o esforço de silenciamento – pressionando agora as empresas digitais para que fiscalizem, persigam e excluam todos os fóruns e vozes que expressem posições inaceitáveis. Ao invés de abrir o espaço democrático, a maioria optou por defender um aperto do cerco a quem pensa de forma diferente.

Mas esta opção constitui uma decisão pouco sábia e pouco democrática. Pouco sábia, porque o fortalecimento do silenciamento produz um efeito contrário ao desejado, reforçando o sentimento de serem politicamente perseguidos e a certeza da verdade das suas posições. Pouco democrática, porque restringe o espaço público e impõe uma visão do mundo como se ela decorresse de um acesso privilegiado à verdade. Não é, portanto, surpreendente que a subcultura esteja, aos poucos, a galgar as margens.

Professora da Universidade da Beira Interior

DEMOCRACIA   SOCIEDADE   POLITICAMENTE CORRETO   POLÍTICA

COMENTÁRIOS:

João Floriano: O artigo é excelente.          João Afonso: Ao ler os textos de Patrícia Fernandes, pergunto-me se a ausência/silenciamento daqueles que detêm o saber, do palco principal da cidade, não é em si mesmo um acto antidemocrático e discriminatório, com consequências desastrosas a prazo.  É que o silenciamento da tal subcultura não vem sozinha. Quem consegue analisar os fenómenos, como a autora faz de modo brilhante, como consequência da ditadura da contra cultura, é mal tolerado e frequentemente vetado no acesso aos mídia de massas.           Gonçalo Mergulhão: Bolas, que confusão que para aqui vai. Simplifico o argumento: A globalização fez aumentar o medo nas pessoas propensas a medos, que por sua vez trouxe consigo uma mão cheia de teorias da conspiração ao estilo Nova Ordem Mundial, que foi habilmente aproveitada pelos (conhecidamente escrupulosos) movimentos de extrema-direita, utilizando a mais conhecida ferramenta globalizante, a internet. Proliferaram então os movimentos aproveitadores do medo nas redes sociais, servindo-se da incapacidade de alguns de fazer juízos próprios sobre as coisas mundanas, misturou-se tudo muito bem para mais alguns votos e o discurso de ódio aparece no mesmo saco. A solução que a autora promove para esta situação é libertar-se este tipo de discursos, sob a bandeira da liberdade de expressão, mesmo sabendo que é um discurso que já deu provas do seu poder homicida. A sua fé reside então na esperança que quanto mais gente tiver acesso a este tipo de discursos, menos medo terá e menos ódio sentirá... que associação estranha!           LI 🤔          João Floriano: Costa já usou a sua cor no parlamento para calar uma deputada do CDS (Assunção Cristãs, que o tirava do sério sempre que o criticava) gritando-lhe que ela só lhe dizia o que dizia devido à sua cor. Maior demonstração de racismo, é difícil.            Meio Vazio: Esse fenómeno de silenciamento é perfeitamente visível no nosso meio (não é preciso ir para o Brasil de Bolsonaro ou para os USA de Trump). E ele evidencia um absurdo: há forças políticas formalmente legítimas (passaram no crivo judicial democrático) mas que são hostilizadas pelos media e desvalorizadas em sede de sufrágio. Na verdade, uns hipotéticos 10% no partido do sr. "basta", no partido do sr. Tavares, no partido da  sra. Real, no partido do sr. Costa, no partido do sr. Santos, etc.,  não são o mesmo. Há, claramente, "voto de qualidade" na nossa "democracia".           Artur Morais: Ao contrário de como foi "formatado" pelos "media", Trump nunca em nenhum momento foi o que lhe atribuíam ou o de que o acusavam. Chegou, noutros tempos, a ser próximo dos Democratas e a ser considerado liberal pelos Republicanos. Como sempre, a profª. Patrícia Fernandes, põe o dedo na ferida. Vale lembrar, porém, que Trump acabou por ser eleito não só pelas franjas esquecidas ou empurradas para canto. Foi um fenómeno que acabou por apelar a mais gente, quase sempre os anónimos, as maiorias silenciosas. Na primeira eleição, foi suficiente para ganhar mais Estados, mais grandes-eleitores, na segunda, ainda que tivesse reforçado o voto popular, já não conseguiu atingir igual proeza. Apesar do estilo desconcertante, acabou por deixar saudades em largas faixas da população, por ter conseguido diminuir a pique a imigração por meios ilícitos, embora o volume de imigrantes por meios legais se tenha mantido na mesma. O muro representava o aspecto simbólico dessa realidade. Houve mais liberdade económica, por via de menor regulamentação e menor carga fiscal. A despesa pública até subiu, mas os défices Federais estavam abaixo do PIB nominal, o que significa que não havia descalabro de contas públicas. Houve muita paz e estabilidade no contexto global, até os Acordos de Abraão, no Médio Oriente conseguiram avançar. Entre outras coisas, lançou a operação "warp speed" para financiar as tentativas (bem sucedidas, como vemos agora) de lançar a vacinação (e até outras terapêuticas) anti-SARS-Cov2. Comparado com isto, a actual Administração parece ser um desastre. Podem ser muito certinhos e politicamente corretos, mas isso é só um detalhe, pois nada avança, muito menos as aspirações, quer dos apoiantes da mesma, quer da anterior Administração, daí as saudades que já existem na América, algo que eu já esperava...            Simplesmente Maria: Muito bom texto.  Apenas não chamaria sub à cultura nem margens à corrente.     Noémia Santos: Quando há uns dias fiz um comentário em que defendia que todos devem ser ouvidos, mesmo que defendam ideias questionáveis, o meu comentário foi apagado pelo moderador. Ainda bem que lhe foi permitido publicar este artigo.        Mario Guimaraes: Tenta justificar o condenável, o antidemocrático, as ideias e comportamentos agressivos mesmo xenófobos com aqueles que os condenam sejam eles os errados com valores errados e condenáveis. Textos perigosos nas ideias mas facilmente desmontáveis.          joao dias > Mario Guimaraes: Outro que vive numa bolha. Você teria carreira na PIDE.        LJ ®Mario Guimaraes: É de pessoas como o Sr. que o texto fala.         José Dias : Indiscutível a aderência da análise ao que vemos à nossa volta ... desde que olhemos sem preconceito. As tentativas de silenciamento de opiniões distintas da narrativa oficial - e muitas bem-sucedidas - têm sido constantes e em crescendo a todos os níveis. E enquanto muitos encolhem os ombros por não terem opiniões ou estarem crentes que a que lhes implantaram desde o berço é um dogma por definição sem discussão possível, alguns esbirros dos senhores, por aqui e por todo o lado, vão atacando, e vilipendiando e desvalorizando de todos os modos quem se atreve a pensar por si e a expressar as suas conclusões ... basta mesmo só olhar e reflectir sobre o que se vê, lê ou ouve!           Inês Duarte: Muito bem! Pode ser que ainda se vá a tempo de trazer para o espaço democrático estas discussões para que sejam realmente discussões e não um chorrilho de ideias soltas e chavões que movimentam cada vez mais massas. A tentativa de os silenciar e ridicularizar no espaço público é evidente e cresce um sentimento de revolta, alimentando a formação de uma ideologia extrema, em diversos pontos do globo.

 

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