quinta-feira, 15 de setembro de 2022

A nobreza também é imprescindível


E a educação, afinal, com a inteligência à mistura, de par com a natural generosidade. Para um conceito de liberdade sem demagogia. E o sentimento de efémero, sobre qualquer que seja a entidade humana neste vale de alegrias e de lágrimas. Eu também admiro esses ingleses na sua força de carácter. E de prestígio económico, é claro. Por cá, tirando Rui Nabeiro, talvez único, pelo menos em larga escala nacional - pois que a generosidade é comum a muitos mais - mas sem esse poder de expansão económica nem respeito humano paralelo. Sim, muitos de nós condenamos a atrocidade russa, que até o governo também partilha livremente, mas de facto não é um genérico, esse conceito comum, como expõe PT, convivendo nós, por cá,  sempre mais, através dos tempos, com o espírito mercantil da realeza e a seguir da burguesia capitalista direcionada mais para si próprias, é um facto, talvez por ausência de “educação”, etc., etc., voltando, circularmente, ao princípio deste discursozinho atravancado, de comentário inútil a respeito da tal liberdade …

Os sentimentos comuns

A tradição, por si mesma, não é um valor mágico. Mas a tradição inglesa não é desse tipo. E a prova disso é que é a Inglaterra quem, dentro da Europa, mais ajuda os ucranianos na sua luta.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 15 set 2022, 00:192

Foi uma coisa que veio progressivamente com a idade. Refiro-me à descoberta de que a maioria das pessoas, dispondo de alguma liberdade – isto é, podendo deliberar em privado e em conjunto sobre questões substantivas –, partilham, a maior parte das vezes, intuições morais justas. É claro que a cláusula da liberdade não é uma condição sine qua non das intuições morais justas – elas existem certamente em indivíduos que vivam sob regimes totalitários; não faltam exemplos, talvez até os mais salientes, disso –, mas certamente que o é do seu desenvolvimento e da sua difusão.

É mesmo, creio, uma generalização tão acertada quanto pode ser acertada uma generalização sobre a vida ético-política dos seres humanos. E ela sobrevive aos contra-exemplos que se podem extrair tanto de situações claramente patológicas – que são quase as situações normais em regimes políticos onde as condições da liberdade não se apresentam – como de casos onde a deliberação comporta erros de cálculo, o que acontece fatalmente com todos os indivíduos e em todas as sociedades. Nenhum destes contra-exemplos, por mais caracteristicamente poderosos que sejam, chega para infirmar a tese geral, mesmo que qualquer deles baste para condicionar a sua generalidade. Mas tal limitação, como disse, é partilhada com qualquer outra generalização sobre a dimensão ético-política da vida humana. Não é a excepção: é a regra.

Resta, é óbvio, saber o que se pode entender por “intuições morais justas”. Banalmente, são aquelas que assentam no respeito pelos outros, ou, dito de outra maneira, no reconhecimento da sua autonomia. Se preferirmos o vocabulário de um filósofo, as intuições morais justas são aquelas que decorrem do simples facto de considerarmos os outros não apenas como meios para a satisfação dos nossos desejos – o que, obviamente, na vida em sociedade eles também terão de ser –, mas, ao mesmo tempo, como fins em si, agentes morais que temos de respeitar. Não há intuição moral justa que não tenha por base tal consideração.

O que distingue as sociedades democráticas das sociedades autoritárias ou totalitárias é exactamente o elas assentarem nessa base. E o permitirem a denúncia dos casos em que essa base é posta em causa. A vida do dia-a-dia dá-nos inúmeros exemplos das duas coisas. Nos países mais livres, onde, por cultura e tradição, mais se preza a autonomia individual, mais (muito mais) exemplos do que nas democracias onde a liberdade é menor, é claro. Mas, desde que exista alguma liberdade, desde que a nossa capacidade deliberativa, tanto individual como colectiva, esteja estabelecida, tanto a base como a possibilidade de protestar contra a sua violação se encontram asseguradas.

Isto, que vale para o dia-a-dia, vale ainda mais para as situações excepcionais. Porque é que, por exemplo, a invasão da Ucrânia por Putin gerou uma condenação tão unânime por parte dos regimes democráticos – e, inversamente, uma aprovação, tácita ou explícita, pelos regimes autoritários ou totalitários? Porque os primeiros partilham as tais intuições morais justas – e os segundos não. Os primeiros exprimiram sentimentos inequívocos de solidariedade com os ucranianos porque lhes reconheceram o direito à autonomia, individual e colectiva, que para si querem e de que eles próprios têm experiência em grau variável. Os segundos, não possuindo tal experiência nem a desejando, evitaram condenar a invasão, quando não a apoiaram declaradamente. O que se diz dos regimes vale igualmente para os cidadãos produzidos por esses regimes. Alguém que não sabe o que é a liberdade, não a pode desejar – nem para si, nem para os outros.

O que mostra bem o valor das tradições e nos leva a outro aspecto da actualidade. Refiro-me, é claro, ao extraordinário sentimento de simpatia para com Isabel II aquando da sua morte e ao interesse pelo complexo e milimétrico ritual visando a passagem do poder para Carlos III que se lhe sucedeu e que podia, por si só, ser objecto de um extenso tratado sobre a soberania e a representação política. A simpatia deve-se, em larga medida, não só às características pessoais de Isabel II, mas ao facto de, dada a longevidade do seu reinado, o seu tempo se confundir com o nosso tempo. E de, devido à natureza do seu cargo, ela não se ter visto envolvida nas acções que a actividade política necessariamente engendra e que promovem descontinuidades. Era uma pura continuidade e, por isso, uma pura duração que podíamos identificar com o sentimento de duração que sentimos face à nossa própria vida, que, como se sabe, também ela convive com a experiência de descontinuidades várias. Boris Johnson, por acaso, exprimiu isso muito bem. O ritual, por sua vez, visa igualmente o estabelecimento de uma continuidade, no plano impessoal da soberania, o que, sendo menos íntimo, não é menos fascinante.

Este segundo tipo de continuidade é politicamente importante. Porque num mundo político inteiramente constituído por descontinuidades, a deliberação deixa de fazer sentido. Porquê deliberar, com efeito, se tudo amanhã pode ser de uma maneira ou de outra? Se nada nos assegura que um certo número de condições, que podemos calcular, serão as mesmas? E se a deliberação se torna impossível, a liberdade, por arrasto, igualmente é impossível. Não há liberdade num mundo em que a contingência reina absolutamente, sem nenhum pano de fundo de necessidade.

É claro que há continuidades e continuidades, ou, se se preferir, tradições e tradições. Há tradições que, claramente, funcionam como um impedimento à deliberação, à inovação, à autonomia e à liberdade. A Rússia é, de resto, disto um bom e quase ininterrupto exemplo. A tradição, por si mesma, não é um valor mágico. Mas, como se sabe, a tradição inglesa – sinédoque para “britânica”, se se quiser – não é desse tipo. E a prova disso é que é a Inglaterra quem, dentro da Europa, mais ajuda – e ajuda naquilo que mais conta – os ucranianos na sua luta contra a barbárie de Putin e mais voz dá às intuições morais justas dos nossos sentimentos comuns.

Quanto àqueles que, no mundo democrático, adoptam, com mais ou menos truques verbais, uma posição pró-russa, que dizer? É um direito político inegável e intocável. Infelizmente, é igualmente uma prova incontestável que não partilham as intuições morais comuns de uma sociedade democrática. Em grande parte dos casos, de resto, nunca as partilharam.

DEMOCRACIA   SOCIEDADE   LIBERDADES    REINO UNIDO   EUROPA   MUNDO

COMENTÁRIOS:
João Floriano
:
Sr. Filósofo, para bom entendedor meia palavra basta. Agora é só meter num envelope, lamber o selo mas de modo a que não fique colado à língua filosófica  e enviar para a Rua Soeiro Pereira Gomes. Por mail também lá chega.             Pobre Portugal: Sempre defendeu esses valores, mas desde 24 de fevereiro que os artigos do senhor Paulo Tunhas são verdadeiros Tratados sobre a defesa da Liberdade e da Democracia. Pedir mais é impossível.           bento guerra: Grande embrulhada. A morte de Isabel II é a morte de uma "instituição" à inglesa e daí todo o cerimonial e aparato que a vem rodeando. Acima deles, só o Vaticano, a vestirem o velhote de faraó e com uma corte de sacerdotes. A contribuição de ambos é diferente, porque o UK é mais rico e está muito ligado aos Estados Unidos, o DDT do lado de cá             Carlos Quartel: Excelente reflexão sobre a liberdade. Não sei se é genético, mas sei que os ingleses, desde a idade média, vêm demonstrando a importância que lhe dão. Desde a magna carta até aos sindicatos organizados na sequência da peste, há séculos que dizem que não gostam de canga. Essa é a formação cívica que não temos, é essa incapacidade de tolerar a mais pequena interferência na liberdade individual que nos falta.  Não só a nós, infelizmente, Já há manifestações sobre o apoio à Ucrânia, com receio do frio e da possível quebra no poder de compra. Muitos não têm a noção sobre aquilo que está em jogo, nem no que pode representar uma Ucrânia ocupada e uma Europa de joelhos. A nível local, estranha-se a mentalidade de alguns oficiais generais que fazem comentários nas TV's. Um deles disse mesmo que os recentes êxitos militares ucranianos só servem mesmo para afastar a almejada paz. Note-se que é gente que, num hipotético conflito global, podem ser chamados a comandar tropas contra o mundo das ditaduras.             Francisco Assis: O autor coloca um problema interessante que talvez se possa resumir do seguinte modo: poderá um simbolismo tradicional não democrático favorecer a subsistência de um modelo político democrático-liberal? No caso britânico, que é o que suscita esta reflexão, haverá alguma relação entre a permanência de uma Monarquia inquestionavelmente popular e a paixão pela liberdade? O autor aborda o tema numa perspectiva curiosa: a contingência exige algum contraponto de estabilidade. O problema é quando esse desejo de estabilidade a-histórica e a-política se torna dominante. O simbolismo monárquico, por mais inócuo que possa parecer nas monarquias constitucionais, transporta sempre consigo a referência a uma autoridade exterior ao processo de deliberação democrática. Voltamos à questão inicial.              Madalena Sa: Bom artigo!           Manuel Martins: No geral concordo com a análise. Não concordo com a afirmação que quem não conhece a liberdade não a deseja.  A liberdade, física e intelectual,  é intrínseca ao bem-estar humano , e todos ambicionam a liberdade que conhecem, nem que seja a liberdade que tem os seus opressores...

 

Nenhum comentário: