E a
educação, afinal, com a inteligência à mistura, de par com a natural generosidade.
Para um conceito de liberdade sem demagogia. E o sentimento de efémero, sobre
qualquer que seja a entidade humana neste vale de alegrias e de lágrimas. Eu
também admiro esses ingleses na sua força de carácter. E de prestígio
económico, é claro. Por cá, tirando Rui Nabeiro, talvez único, pelo menos em
larga escala nacional - pois que a generosidade é comum a muitos mais - mas sem
esse poder de expansão económica nem respeito humano paralelo. Sim, muitos de nós condenamos a
atrocidade russa, que até o governo também partilha livremente, mas de facto
não é um genérico, esse conceito comum, como expõe PT, convivendo nós, por cá, sempre mais,
através dos tempos, com o espírito mercantil da realeza e a seguir da burguesia
capitalista direcionada mais para si próprias, é um facto, talvez por ausência
de “educação”, etc., etc., voltando, circularmente, ao princípio deste
discursozinho atravancado, de comentário inútil a respeito da tal liberdade …
Os sentimentos comuns
A tradição, por si mesma, não é um valor mágico. Mas a
tradição inglesa não é desse tipo. E a prova disso é que é a Inglaterra quem,
dentro da Europa, mais ajuda os ucranianos na sua luta.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 15
set 2022, 00:192
Foi uma coisa que veio
progressivamente com a idade. Refiro-me à
descoberta de que a maioria das pessoas, dispondo de alguma liberdade – isto
é, podendo deliberar em privado e em conjunto sobre questões substantivas –,
partilham, a maior parte das vezes, intuições morais justas. É claro
que a cláusula da liberdade não é uma condição sine qua non das
intuições morais justas – elas existem certamente em indivíduos que vivam sob
regimes totalitários; não faltam exemplos, talvez até os mais salientes, disso
–, mas certamente que o é do seu desenvolvimento e da sua difusão.
É
mesmo, creio, uma generalização tão acertada quanto pode ser acertada uma
generalização sobre a vida ético-política dos seres humanos. E ela sobrevive
aos contra-exemplos que se podem extrair tanto de situações claramente
patológicas – que são quase as situações normais em regimes políticos onde as
condições da liberdade não se apresentam – como de casos onde a
deliberação comporta erros de cálculo, o que acontece fatalmente com todos os
indivíduos e em todas as sociedades. Nenhum destes contra-exemplos, por
mais caracteristicamente poderosos que sejam, chega para infirmar a tese
geral, mesmo que qualquer deles baste para condicionar a sua generalidade.
Mas tal limitação, como disse, é partilhada com qualquer outra generalização
sobre a dimensão ético-política da vida humana. Não é a excepção: é a regra.
Resta,
é óbvio, saber o que se pode entender por “intuições
morais justas”.
Banalmente, são aquelas que assentam no respeito pelos outros, ou, dito de
outra maneira, no reconhecimento da sua autonomia. Se preferirmos o vocabulário
de um filósofo, as intuições morais justas são aquelas que decorrem do simples
facto de considerarmos os outros não apenas como meios para a satisfação dos
nossos desejos – o que, obviamente, na vida em sociedade eles também terão de
ser –, mas, ao mesmo tempo, como fins em si, agentes morais que temos de
respeitar. Não há
intuição moral justa que não tenha por base tal consideração.
O que distingue as sociedades
democráticas das sociedades autoritárias ou totalitárias é exactamente o elas
assentarem nessa base. E o permitirem
a denúncia dos casos em que essa base é posta em causa. A vida do dia-a-dia dá-nos inúmeros exemplos das duas
coisas. Nos países
mais livres, onde, por cultura e tradição, mais se preza a autonomia individual,
mais (muito mais) exemplos do que nas democracias onde a liberdade é menor, é
claro. Mas, desde
que exista alguma liberdade, desde que a nossa capacidade deliberativa, tanto
individual como colectiva, esteja estabelecida, tanto a base como a
possibilidade de protestar contra a sua violação se encontram asseguradas.
Isto, que vale
para o dia-a-dia, vale ainda mais para as situações excepcionais. Porque é que, por exemplo, a invasão da
Ucrânia por Putin gerou uma condenação tão unânime por parte dos regimes
democráticos – e, inversamente, uma aprovação, tácita ou explícita, pelos
regimes autoritários ou totalitários?
Porque os primeiros partilham as tais intuições morais justas
– e os segundos não. Os primeiros
exprimiram sentimentos inequívocos de solidariedade com os ucranianos porque
lhes reconheceram o direito à autonomia, individual e colectiva, que para si
querem e de que eles próprios têm experiência em grau variável. Os segundos,
não possuindo tal experiência nem a desejando, evitaram condenar a invasão,
quando não a apoiaram declaradamente. O que se
diz dos regimes vale igualmente para os cidadãos produzidos por esses regimes.
Alguém que não sabe o que é a liberdade, não a pode desejar – nem para si, nem
para os outros.
O
que mostra bem o valor das tradições e nos leva a outro aspecto da actualidade. Refiro-me, é claro, ao extraordinário sentimento
de simpatia para com Isabel II aquando da sua morte e ao interesse pelo
complexo e milimétrico ritual visando a passagem do poder para Carlos III que
se lhe sucedeu e que podia, por si só, ser objecto de um extenso tratado sobre
a soberania e a representação política. A
simpatia deve-se, em larga medida, não só às características
pessoais de Isabel II, mas ao facto de, dada a longevidade do seu reinado, o
seu tempo se confundir com o nosso tempo. E
de, devido à natureza do seu cargo, ela não se ter visto envolvida nas
acções que a actividade política necessariamente engendra e que promovem
descontinuidades. Era uma pura continuidade e, por isso, uma pura duração
que podíamos identificar com o sentimento de duração que sentimos face à nossa
própria vida, que, como se sabe, também ela convive com a experiência de
descontinuidades várias. Boris
Johnson, por acaso, exprimiu isso muito bem. O
ritual, por sua vez, visa igualmente o estabelecimento de uma continuidade, no
plano impessoal da soberania, o que, sendo menos íntimo, não é menos fascinante.
Este
segundo tipo de continuidade é politicamente importante. Porque num mundo
político inteiramente constituído por descontinuidades, a deliberação deixa de
fazer sentido. Porquê deliberar, com efeito, se tudo amanhã pode ser de uma
maneira ou de outra? Se nada nos assegura que um certo número de condições, que
podemos calcular, serão as mesmas? E se a deliberação se torna impossível, a
liberdade, por arrasto, igualmente é impossível. Não há liberdade num mundo em
que a contingência reina absolutamente, sem nenhum pano de fundo de
necessidade.
É
claro que há
continuidades e continuidades, ou,
se se preferir, tradições e tradições. Há tradições que, claramente, funcionam como um
impedimento à deliberação, à inovação, à autonomia e à liberdade. A Rússia é, de resto, disto um bom e quase
ininterrupto exemplo. A tradição, por si mesma, não é um valor mágico. Mas,
como se sabe, a tradição inglesa – sinédoque para “britânica”, se se
quiser – não é desse tipo. E a prova disso é que é a Inglaterra quem, dentro da
Europa, mais ajuda – e ajuda naquilo que mais conta – os ucranianos na sua luta
contra a barbárie de Putin e mais voz dá às intuições morais justas dos nossos
sentimentos comuns.
Quanto àqueles que, no mundo
democrático, adoptam, com mais ou menos truques verbais, uma posição pró-russa,
que dizer? É um direito político inegável e intocável. Infelizmente, é
igualmente uma prova incontestável que não partilham as intuições morais comuns
de uma sociedade democrática. Em
grande parte dos casos, de resto, nunca as partilharam.
DEMOCRACIA SOCIEDADE LIBERDADES REINO UNIDO EUROPA MUNDO
COMENTÁRIOS:
João Floriano: Sr. Filósofo,
para bom entendedor meia palavra basta. Agora é só meter num envelope, lamber o
selo mas de modo a que não fique colado à língua filosófica e enviar para
a Rua Soeiro Pereira Gomes. Por mail também lá chega. Pobre Portugal: Sempre defendeu esses valores, mas desde 24 de
fevereiro que os artigos do senhor Paulo Tunhas são verdadeiros Tratados sobre
a defesa da Liberdade e da Democracia. Pedir mais é impossível. bento guerra: Grande embrulhada. A morte de Isabel II é a morte de
uma "instituição" à inglesa e daí todo o cerimonial e aparato que a
vem rodeando. Acima deles, só o Vaticano, a vestirem o velhote de faraó e com
uma corte de sacerdotes. A contribuição de ambos é diferente, porque o UK é
mais rico e está muito ligado aos Estados Unidos, o DDT do lado de cá Carlos Quartel:
Excelente reflexão sobre a liberdade.
Não sei se é genético, mas sei que os ingleses, desde a idade média, vêm
demonstrando a importância que lhe dão. Desde a magna carta até aos sindicatos
organizados na sequência da peste, há séculos que dizem que não gostam de canga. Essa é a formação cívica que não temos, é essa
incapacidade de tolerar a mais pequena interferência na liberdade individual
que nos falta. Não só a
nós, infelizmente, Já há manifestações sobre o apoio à Ucrânia, com receio do
frio e da possível quebra no poder de compra. Muitos não têm a noção sobre
aquilo que está em jogo, nem no que pode representar uma Ucrânia ocupada e uma
Europa de joelhos. A nível
local, estranha-se a mentalidade de alguns oficiais generais que fazem
comentários nas TV's. Um deles disse mesmo que os recentes êxitos militares
ucranianos só servem mesmo para afastar a almejada paz. Note-se que é gente
que, num hipotético conflito global, podem ser chamados a comandar tropas
contra o mundo das ditaduras. Francisco Assis: O autor coloca um problema interessante que talvez se
possa resumir do seguinte modo: poderá um simbolismo tradicional não
democrático favorecer a subsistência de um modelo político democrático-liberal?
No caso britânico, que é o que suscita esta reflexão, haverá alguma relação entre
a permanência de uma Monarquia inquestionavelmente popular e a paixão pela
liberdade? O autor aborda o tema numa perspectiva curiosa: a contingência exige
algum contraponto de estabilidade. O problema é quando esse desejo de
estabilidade a-histórica e a-política se torna dominante. O simbolismo
monárquico, por mais inócuo que possa parecer nas monarquias constitucionais,
transporta sempre consigo a referência a uma autoridade exterior ao processo de
deliberação democrática. Voltamos à questão inicial. Madalena Sa: Bom artigo!
Manuel Martins: No
geral concordo com a análise. Não concordo com a afirmação que quem não conhece
a liberdade não a deseja. A liberdade, física e intelectual, é intrínseca
ao bem-estar humano , e todos ambicionam a liberdade que conhecem, nem que seja
a liberdade que tem os seus opressores...
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