Tantos dados verdadeiramente tenebrosos,
talvez tenham aumentado, nas cidades ruidosas, ou nas vilas, os sítios específicos
para a prática de desporto. Mais os sítios com baloiços e os lagos com patinhos…
Mas a amorfia das crianças – e o seu egoísmo - são ponto assente, com
implicações sobre a respectiva formação e sobre as suas vidas - todavia de uma
liberdade instituída em lei. Parece catastrófico, mas trata-se de outra forma
de mudança e de progresso. (Passa-se o mesmo com os livros, e as leituras, mas
talvez não seja geral o desinteresse. Há sempre os que escapam às
generalizações, e se afirmam gradualmente… Queremos manter a fé no Homem e na
sua racionalidade). Mas o texto de Helena Matos e alguns
comentários são bem expressivos de um extraordinário mal social, mascarado de
bem-estar, pelas longas filas de automóveis protectores que simultaneamente
defendem e instigam à preguiça e à indiferença dos filhos pelo esforço dos
progenitores, nas suas vidas de correrias… para além do trágico dos
condicionalismos formativos, excelentemente expressos por HM.
As crianças de interior
Em Portugal, Espanha, França as
crianças desapareceram das ruas. Estão no interior das casas. No interior dos
carros. No interior das escolas. São as crianças de interior. A culpa não é só
dos écrans.
HELENA MATOS Colunista do Observador
OBSERVADOR, 18 set
2022, 03:1942
Começou.
O quê? O vaivém dos automóveis em torno das escolas. Todos os
dias milhares de crianças saem do habitáculo automóvel para o habitáculo escola
para depois regressarem ao habitáculo casa, sendo que no habitáculo casa há
ainda que ter em conta esse habitáculo dos habitáculos que é o quarto.
Resumindo, ao longo do dia eles passam de um interior para outro. São as chamadas crianças de interior. São as
crianças do nosso tempo.
Os
espaços públicos, como as ruas, ou abertos, como o campo, causam-lhes
insegurança. Têm menos autonomia que aquela que os seus pais experimentavam na
mesma idade.
Um dos sinais desta mudança é o
desaparecimento das crianças da rua. Nas ruas de muitas das nossas cidades vêem-se adultos,
velhos, jovens. Crianças é que é mais difícil. Com forte probabilidade veremos
mais cães a serem passeados do que crianças a passear.
Isto
acontece porquê? Os franceses em artigos e livros invariavelmente ilustrados
com fotos a preto e branco de
crianças dos anos 50, 60 e 70 a brincar e andar na rua
sozinhas, perguntam “Para onde foram as crianças?” Para o interior. Para o interior das casas. Para o interior das
escolas. Para o interior dos ateliers.
Porque
está isto a acontecer? As respostas são várias e vão desde o
terror da pedofilia à constatação de que o tempo das brincadeiras organizadas
em qualquer lugar pelas próprias crianças deu lugar ao tempo das actividades
monitorizadas por adultos, sejam eles monitores, professores ou as próprias
famílias, em espaços devidamente concebidos para tal.
Na
Holanda fazem-se
contas ao espaço ganho pelos automóveis nas ruas:
muitos pais dizem não sentir as ruas seguras por causa dos automóveis. Noutras
geografias há quem responsabilize a poluição. Obviamente a pandemia mais os confinamentos e o
ensino à distância vieram reforçar ainda mais esta interiorização das crianças.
Em
Portugal, país de pais cada vez mais velhos e filhos cada vez mais únicos, a
interiorização das crianças nem sequer causa dúvidas: é vista senão como um
progresso pelo menos como uma inevitabilidade. É certo que, nos fins de semana, se vêem chegar
famílias ao parques infantis mas também é verdade que, salvo honrosas
excepções, são pouco frequentados os pequenos espaços de brincadeiras
instalados em pracetas, bairros e jardins onde era suposto as crianças
brincarem depois de saírem das escolas.
E aqui chegamos a algo que foi
desaparecendo das nossas ruas: o ruído das crianças a brincar. Mais preocupante, não é apenas das nossas ruas que esse som
desapareceu, as
próprias escolas estão a
ficar silenciosas: “Há anos, aproximávamo-nos das
escolas e ouvíamos barulho e ruído. Hoje, só ouvimos silêncio porque as
crianças estão sentadas a agarradas aos ecrãs.” — alerta o
especialista em Motricidade Humana Carlos Neto que dá conta do clima em que se
educa actualmente: “Hoje, na escola, vive-se cheio
de medo. As crianças estão aprisionadas dentro da escola. Há medo de as
crianças poderem ter acidentes, de poderem sofrer violência, medo de tudo. O
medo está na cabeça dos pais, na cabeça dos educadores, dos auxiliares.”
Por outras palavras, nos pátios e
recreios assépticos, donde as árvores foram sendo erradicadas porque eram uma
fonte de vários perigos, corre-se, salta-se e joga-se cada vez menos. Mas numa
sociedade que confunde o estar sentado com o ser bem comportado, isto não causa
alarme. E assim, começou agora um ano lectivo em que as crianças, depois de um
dia em que passam mais tempo na escola que muitos trabalhadores nos seus
empregos, passam para o interior do automóvel que os levará para o interior de
casa. Alguns, tidos como mais afortunados, nem sequer põem o pé na rua pois
entram directamente para a garagem donde um elevador os leva até ao interior do
prédio, e depois ao interior da casa e depois ao interior do quarto…
Até
quando isto será considerado um não assunto?
CRIANÇAS SOCIEDADE COMPORTAMENTO
COMENTÁRIOS:
Susana Ferreira: écrans???? Fernando Cascais: Vi há relativamente pouco tempo um documentário na RTP
(salvo erro) sobre a Finlândia (supostamente o país mais seguro do mundo, e um dos
mais ricos) onde explicavam como é que as crianças iam para a escola desde
muito pequenas; a pé, sozinhas pelo bosque e muitas vezes às escuras. Eles,
os finlandeses incentivam esta cultura, na verdade trata-se de um aspecto
cultural mas também pedagógico. É importante referir que na Finlândia
faz um frio de rachar, o que não condiciona de forma alguma o hábito de os
miúdos irem a pé ou de transporte público sozinhos para a escola desde muito
pequenos. Aqui chegados, podemos levar o assunto para a política. O estado
socialista, o nosso, é um estado protector. A
nossa cultura é uma cultura de protecção. As famílias portuguesas têm esta
cultura de proteção entranhadas. Os miúdos - possivelmente a maioria - são
extremamente mimados e protegidos durante a criação. Chegados a adultos,
habituados a que os pais tratem de tudo, tornam-se uns monólitos sem iniciativa para nada. Aí
surge o estado socialista em todo o seu esplendor para tratar deles. Os ecrãs foram a melhor
ferramenta que apareceu para a cultura do proteccionismo. Um pai, fica
descansado quando o seu filho está protegido em casa por um ecrã a jogar um
vídeo-game. O problema dos miúdos em casa é político e cultural.
Maria Clotilde Osório: As crianças são frágeis. Os adolescentes sensíveis. Os adultos problemáticos. Os velhos
desprotegidos. Em simultâneo as crianças são tiranetes, os adolescentes
egoístas, os adultos hedonistas e os velhos desinteressados. Rui
Lima: Fui a criança mais livre do
mundo num regime que não o era, hoje em democracia e as crianças vivem
aprisionadas. Este instinto de super proteção
dos filhos é fruto de um pressentimento de fim dos tempos para os filhos do Ocidente, é uma forma de os
compensar do seu futuro trágico. João
Floriano: E de habitáculo em habitáculo
chega-se ao refúgio final onde os educadores e pais mais incautos e desatentos
perdem o rasto das crianças: os smartphones, os tablets o que quer que seja a
porta de entrada para a internet. Valentina, Jessica e tantas outras crianças são
apenas uma pontinha do iceberg. A organização Human Rights publica que na Europa, uma
em cinco crianças é vítima de abuso sexual. Como serão os números por esse
mundo fora!! Mesmo sem o abuso sexual, muitas crianças são vítimas de todo o
tipo de maus tratos e desatenções. Quando escolhemos plantas de interior
para a nossa casa, queremos algo que nos alegre o espaço, que dê um
ar natural, mas simultaneamente que não faça perder muito tempo e requeira
muita atenção: uma rega ocasional e está feito. As nossas crianças
começam a parecer-se dramaticamente com as plantas de interior. Ark
NabuL: Não querendo ser muito longo, apontaria algumas, poucas, das possíveis
causas 1. Filhos únicos - causam ansiedade de perda
nos pais. Por outro lado, onde iam 2, 3 ou mais irmãos para a escola, agora vai
1. 2. Emancipação das mulheres - mais força laboral
em trânsito para o trabalho, logo mais carros, agora 2 por família, e, por outro
lado, menos tempo para se dedicar às crianças, tornando a manhã uma urgência a
ser vencida com velocidade, delegando a tarde da criança à instituição e
tornando a noite no descanso do guerreiro que não admite perturbações dos
petizes. Ao mesmo tempo, levar a criança ao hospital, porque partiu um osso na
sua brincadeira, torna-se um incómodo insuportável; 3. Mais carros - a
banalização do divórcio leva a mais casas, agora uma por adulto, cada vez mais
longe do local de trabalho, obrigando ao recurso da locomoção mecânica que
obriga a mais estradas, removendo plantas, animais e espaço aberto; 4. Dos pontos 1, 2 e 3 resulta um processo de realimentação, menos
crianças a sair de casa e mais carros, significa cada vez maior medo da criança
ser atropelada o que leva a mais idas de carro e mais carros na estrada e menos
crianças na rua; 5. Pós-modernismo - tudo é auto centrado, o uno é puro e o pluri corrupto, urge a
libertação, ou pelo menos a fuga, da sociedade, fonte do mal. Acarreta a
destruição da autoridade, implementa o slogan "é proibido proibir",
num convite descarado ao individualísmo exarerbado que chega ao solipsimo.
Um amontoado de eus é incapaz de formar um nós, e a brincadeira colectiva não
adere; 6. Divórcios - são os homens quem mais incentiva as crianças a
testarem os seus limites, a subirem árvores, a sujar a roupa, a ganhar
arranhões. Uma vez que, por via do divórcio, grande parte das crianças passa a
estar mais de 2/3 do seu tempo só com a mãe, passam a ser jarros de porcelena
para estas e que o pai tem o dever de não partir. 7.
Declínio religioso - quando quase todas as pessoas iam à missa, encontravam-se, viam-se,
cruzavam-se. Sem se conhecer formalmente, conheciam-se informalmente. Eram os
pais, avôs, professores do colega dos filhos. Todos estes pequenos laços de
afinidade desapareceram e a comunidade está muito mais desagregada. Como
dizia o meu avô, na vila todos se conheciam bem, na cidade nem mal se conhecem;
8. Politíca do medo - as notícias apenas revelam
as desgraças do mundo. Servidas 24 horas por dia, geram sentimentos de
insegurança. Num mundo selvagem, as paredes e carros, são as armaduras da
segurança; 9. Burocracia - cada vez mais as nossas vidas são menos responsabilizáveis. Tudo se
entrega aos burocratas, novos mestres. 10. De 5 e 9 segue a maximização da segurança física de criança, por via do poder burocrático. Uma vez que a mente é
criadora da realidade, qualquer consequência psicológica é descartada como
impossível, logo à partida. Assim, no pátio não se pode correr, saltar, pois
prioridade burocrática é a segurança e todos os meios são legítimos para a
atingir. 11. Ecrãs - para
pais preguiçosos, um babá sempre disponível. Um luxo de parentalidade que
cria um vícío de necessidade. Não é difícil, nos dias que correm, ver 5 cinco
crianças juntas, sentadas, cada uma a olhar para o seu ecrã. Cada vez
mais no seu interior. Jose Teles:
Chamo a atenção para a destruição do Jardim da Parada
em Campo de Ourique um dos poucos espaços públicos onde se viam crianças a brincar Coronavirus corona >Rui Lima:
O "pressentimento de fim dos tempos" esteve sempre presente. Não há muito tempo um
historiador recolheu referências ao fim dos tempos em vários séculos,
demonstrando que esse dito pressentimento (eu chamar-lhe-ia fobia) esteve
sempre presente. Agora sob a forma de "alterações climáticas" (e em
doses muito inferiores, medo de conflitos nucleares), essa
pseudo-ciência, repleta de especulação, de conjecturas, de futurologias mal-
amanhadas, vai criando um clima de medo, de ansiedade, de pânico
constante. Eu pergunto-me quanto tempo irá demorar até a
humanidade colocar essa patranha onde já meteu a ordália na justiça, o
curandeirismo na saúde ou o determinismo biológico da criminologia. bento guerra: São as "phonekids" filhos das
"mãesnovela" e dos pais "ver o VAR". Não pensam, ninguém
quer pensar. Os miúdos tranquilizam-se com Nutella Américo Silva: Há duzentos
anos as crianças eram das mães até correrem e falarem. Depois a criança
brincava com outras crianças, e seguia o resto da família nos trabalhos do
campo, há cem anos a mãe passou a tomar conta das crianças até ao fim da
instrução primária, há cinquenta até ao fim do ciclo preparatório, depois até
ao fim do ciclo liceal, da universidade, até aos quarenta anos, enquanto viva. Fernando CE: Concordo
plenamente com a sua análise. Um pequeno jardim à frente do meu prédio
os cães e os seus donos são os beneficiários do espaço , que lhes serve de casa
de banho (canino).
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