segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Para contrabalançar

 

Tantos dados verdadeiramente tenebrosos, talvez tenham aumentado, nas cidades ruidosas, ou nas vilas, os sítios específicos para a prática de desporto. Mais os sítios com baloiços e os lagos com patinhos… Mas a amorfia das crianças – e o seu egoísmo - são ponto assente, com implicações sobre a respectiva formação e sobre as suas vidas - todavia de uma liberdade instituída em lei. Parece catastrófico, mas trata-se de outra forma de mudança e de progresso. (Passa-se o mesmo com os livros, e as leituras, mas talvez não seja geral o desinteresse. Há sempre os que escapam às generalizações, e se afirmam gradualmente… Queremos manter a fé no Homem e na sua racionalidade). Mas o texto de Helena Matos e alguns comentários são bem expressivos de um extraordinário mal social, mascarado de bem-estar, pelas longas filas de automóveis protectores que simultaneamente defendem e instigam à preguiça e à indiferença dos filhos pelo esforço dos progenitores, nas suas vidas de correrias… para além do trágico dos condicionalismos formativos, excelentemente expressos por HM.

As crianças de interior

Em Portugal, Espanha, França as crianças desapareceram das ruas. Estão no interior das casas. No interior dos carros. No interior das escolas. São as crianças de interior. A culpa não é só dos écrans.

HELENA MATOS Colunista do Observador

OBSERVADOR, 18 set 2022, 03:1942

Começou. O quê? O vaivém dos automóveis em torno das escolas. Todos os dias milhares de crianças saem do habitáculo automóvel para o habitáculo escola para depois regressarem ao habitáculo casa, sendo que no habitáculo casa há ainda que ter em conta esse habitáculo dos habitáculos que é o quarto. Resumindo, ao longo do dia eles passam de um interior para outro. São as chamadas crianças de interior. São as crianças do nosso tempo.

Os espaços públicos, como as ruas, ou abertos, como o campo, causam-lhes insegurança. Têm menos autonomia que aquela que os seus pais experimentavam na mesma idade.

Um dos sinais desta mudança é o desaparecimento das crianças da rua. Nas ruas de muitas das nossas cidades vêem-se adultos, velhos, jovens. Crianças é que é mais difícil. Com forte probabilidade veremos mais cães a serem passeados do que crianças a passear.

Isto acontece porquê? Os franceses em artigos e livros invariavelmente ilustrados com fotos a preto e branco de crianças dos anos 50, 60 e 70 a brincar e andar na rua sozinhas, perguntam “Para onde foram as crianças?” Para o interior. Para o interior das casas. Para o interior das escolas. Para o interior dos ateliers.

Porque está isto a acontecer? As respostas são várias e vão desde o terror da pedofilia à constatação de que o tempo das brincadeiras organizadas em qualquer lugar pelas próprias crianças deu lugar ao tempo das actividades monitorizadas por adultos, sejam eles monitores, professores ou as próprias famílias, em espaços devidamente concebidos para tal.

Na Holanda fazem-se contas ao espaço ganho pelos automóveis nas ruas: muitos pais dizem não sentir as ruas seguras por causa dos automóveis. Noutras geografias há quem responsabilize a poluição. Obviamente a pandemia mais os confinamentos e o ensino à distância vieram reforçar ainda mais esta interiorização das crianças.

Em Portugal, país de pais cada vez mais velhos e filhos cada vez mais únicos, a interiorização das crianças nem sequer causa dúvidas: é vista senão como um progresso pelo menos como uma inevitabilidade. É certo que, nos fins de semana, se vêem chegar famílias ao parques infantis mas também é verdade que, salvo honrosas excepções, são pouco frequentados os pequenos espaços de brincadeiras instalados em pracetas, bairros e jardins onde era suposto as crianças brincarem depois de saírem das escolas.

E aqui chegamos a algo que foi desaparecendo das nossas ruas: o ruído das crianças a brincar. Mais preocupante, não é apenas das nossas ruas que esse som desapareceu, as próprias escolas estão a ficar silenciosas: “Há anos, aproximávamo-nos das escolas e ouvíamos barulho e ruído. Hoje, só ouvimos silêncio porque as crianças estão sentadas a agarradas aos ecrãs.” — alerta o especialista em Motricidade Humana Carlos Neto que dá conta do clima em que se educa actualmente: “Hoje, na escola, vive-se cheio de medo. As crianças estão aprisionadas dentro da escola. Há medo de as crianças poderem ter acidentes, de poderem sofrer violência, medo de tudo. O medo está na cabeça dos pais, na cabeça dos educadores, dos auxiliares.

Por outras palavras, nos pátios e recreios assépticos, donde as árvores foram sendo erradicadas porque eram uma fonte de vários perigos, corre-se, salta-se e joga-se cada vez menos. Mas numa sociedade que confunde o estar sentado com o ser bem comportado, isto não causa alarme. E assim, começou agora um ano lectivo em que as crianças, depois de um dia em que passam mais tempo na escola que muitos trabalhadores nos seus empregos, passam para o interior do automóvel que os levará para o interior de casa. Alguns, tidos como mais afortunados, nem sequer põem o pé na rua pois entram directamente para a garagem donde um elevador os leva até ao interior do prédio, e depois ao interior da casa e depois ao interior do quarto…

Até quando isto será considerado um não assunto?

CRIANÇAS   SOCIEDADE   COMPORTAMENTO

COMENTÁRIOS:

Susana Ferreira: écrans????             Fernando Cascais: Vi há relativamente pouco tempo um documentário na RTP (salvo erro) sobre a Finlândia (supostamente o país mais seguro do mundo, e um dos mais ricos) onde explicavam como é que as crianças iam para a escola desde muito pequenas; a pé, sozinhas pelo bosque e muitas vezes às escuras. Eles, os finlandeses incentivam esta cultura, na verdade trata-se de um aspecto cultural mas também pedagógico. É importante referir que na Finlândia faz um frio de rachar, o que não condiciona de forma alguma o hábito de os miúdos irem a pé ou de transporte público sozinhos para a escola desde muito pequenos. Aqui chegados, podemos levar o assunto para a política. O estado socialista, o nosso, é um estado protector. A nossa cultura é uma cultura de protecção. As famílias portuguesas têm esta cultura de proteção entranhadas. Os miúdos - possivelmente a maioria - são extremamente mimados e protegidos durante a criação. Chegados a adultos, habituados a que os pais tratem de tudo, tornam-se uns monólitos sem iniciativa para nada. Aí surge o estado socialista em todo o seu esplendor para tratar deles. Os ecrãs foram a melhor ferramenta que apareceu para a cultura do proteccionismo. Um pai, fica descansado quando o seu filho está protegido em casa por um ecrã a jogar um vídeo-game. O problema dos miúdos em casa é político e cultural.                  Maria Clotilde Osório: As crianças são frágeis. Os adolescentes sensíveis. Os adultos problemáticos. Os velhos desprotegidos. Em simultâneo as crianças são tiranetes, os adolescentes egoístas, os adultos hedonistas e os velhos desinteressados.               Rui Lima: Fui a criança mais livre do mundo num regime que não o era, hoje em democracia e as crianças vivem aprisionadas. Este instinto de super proteção dos filhos  é fruto de um pressentimento de fim dos tempos para os filhos do Ocidente, é uma forma de os compensar do seu futuro trágico.                   João Floriano: E de habitáculo em habitáculo chega-se ao refúgio final onde os educadores e pais mais incautos e desatentos perdem o rasto das crianças: os smartphones, os tablets o que quer que seja a porta de entrada para a internet. Valentina, Jessica e tantas outras crianças são apenas uma pontinha do iceberg. A organização Human Rights publica que na Europa, uma em cinco crianças é vítima de abuso sexual. Como serão os números por esse mundo fora!! Mesmo sem o abuso sexual, muitas crianças são vítimas de todo o tipo de maus tratos e desatenções. Quando escolhemos plantas de interior  para  a nossa casa, queremos  algo que nos alegre o espaço, que dê um ar natural, mas simultaneamente que não faça perder muito tempo e requeira muita atenção: uma rega ocasional e está feito. As nossas crianças começam  a parecer-se dramaticamente com as plantas de interior.            Ark NabuL: Não querendo ser muito longo, apontaria algumas, poucas, das possíveis causas 1. Filhos únicos - causam ansiedade de perda nos pais. Por outro lado, onde iam 2, 3 ou mais irmãos para a escola, agora vai 1.   2. Emancipação das mulheres - mais força laboral em trânsito para o trabalho, logo mais carros, agora 2 por família, e, por outro lado, menos tempo para se dedicar às crianças, tornando a manhã uma urgência a ser vencida com velocidade, delegando a tarde da criança à instituição e tornando a noite no descanso do guerreiro que não admite perturbações dos petizes. Ao mesmo tempo, levar a criança ao hospital, porque partiu um osso na sua brincadeira, torna-se um incómodo insuportável;   3. Mais carros - a banalização do divórcio leva a mais casas, agora uma por adulto, cada vez mais longe do local de trabalho, obrigando ao recurso da locomoção mecânica que obriga a mais estradas, removendo plantas, animais e espaço aberto;  4. Dos pontos 1, 2 e 3 resulta um processo de realimentação, menos crianças a sair de casa e mais carros, significa cada vez maior medo da criança ser atropelada o que leva a mais idas de carro e mais carros na estrada e menos crianças na rua;        5. Pós-modernismo - tudo é auto centrado, o uno é puro e o pluri corrupto, urge a libertação, ou pelo menos a fuga, da sociedade, fonte do mal. Acarreta a destruição da autoridade, implementa o slogan "é proibido proibir", num convite descarado ao individualísmo exarerbado que chega ao solipsimo. Um amontoado de eus é incapaz de formar um nós, e a brincadeira colectiva não adere;        6. Divórcios - são os homens quem mais incentiva as crianças a testarem os seus limites, a subirem árvores, a sujar a roupa, a ganhar arranhões. Uma vez que, por via do divórcio, grande parte das crianças passa a estar mais de 2/3 do seu tempo só com a mãe, passam a ser jarros de porcelena para estas e que o pai tem o dever de não partir.       7. Declínio religioso - quando quase todas as pessoas iam à missa, encontravam-se, viam-se, cruzavam-se. Sem se conhecer formalmente, conheciam-se informalmente. Eram os pais, avôs, professores do colega dos filhos. Todos estes pequenos laços de afinidade desapareceram e a comunidade está muito mais desagregada. Como dizia o meu avô, na vila todos se conheciam bem, na cidade nem mal se conhecem;       8. Politíca do medo - as notícias apenas revelam as desgraças do mundo. Servidas 24 horas por dia, geram sentimentos de insegurança. Num mundo selvagem, as paredes e carros, são as armaduras da segurança;     9. Burocracia - cada vez mais as nossas vidas são menos responsabilizáveis. Tudo se entrega aos burocratas, novos mestres. 10. De 5 e 9 segue a maximização da segurança física de criança, por via do poder burocrático. Uma  vez que a mente é criadora da realidade, qualquer consequência psicológica é descartada como impossível, logo à partida. Assim, no pátio não se pode correr, saltar, pois prioridade burocrática é a segurança e todos os meios são legítimos para a atingir. 11. Ecrãs - para pais preguiçosos, um babá sempre disponível. Um luxo de parentalidade que cria um vícío de necessidade. Não é difícil, nos dias que correm, ver 5 cinco crianças juntas, sentadas, cada uma a olhar para o seu ecrã. Cada vez mais no seu interior.              Jose Teles: Chamo a atenção para a destruição do Jardim da Parada em Campo de Ourique um dos poucos espaços públicos onde se viam crianças a brincar           Coronavirus corona >Rui Lima: O "pressentimento de fim dos tempos" esteve sempre presente. Não há muito tempo um historiador recolheu referências ao fim dos tempos em vários séculos, demonstrando que esse dito pressentimento (eu chamar-lhe-ia fobia) esteve sempre presente. Agora sob a forma de "alterações climáticas" (e em doses muito inferiores, medo de conflitos nucleares), essa pseudo-ciência, repleta de especulação, de conjecturas, de futurologias mal- amanhadas, vai criando um clima de medo, de ansiedade, de pânico constante.  Eu pergunto-me quanto tempo irá demorar até a humanidade colocar essa patranha onde já meteu a ordália na justiça, o curandeirismo na saúde ou o determinismo biológico da criminologia.             bento guerra: São as "phonekids" filhos das "mãesnovela" e dos pais "ver o VAR". Não pensam, ninguém quer pensar. Os miúdos tranquilizam-se com Nutella            Américo Silva: Há duzentos anos as crianças eram das mães até correrem e falarem. Depois a criança brincava com outras crianças, e seguia o resto da família nos trabalhos do campo, há cem anos a mãe passou a tomar conta das crianças até ao fim da instrução primária, há cinquenta até ao fim do ciclo preparatório, depois até ao fim do ciclo liceal, da universidade, até aos quarenta anos, enquanto viva.              Fernando CE: Concordo plenamente com a sua análise. Um pequeno jardim à frente do meu prédio os cães e os seus donos são os beneficiários do espaço , que lhes serve de casa de banho (canino).

 

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