sexta-feira, 23 de setembro de 2022

DIVAGAÇÕES


De Paulo Tunhas, na pujança das suas realizações diárias, mesmo engripado. Concordo com ele, e também usei - não lenços de papel, mas de folhas picotadas do rolo da cozinha, para limpar as lágrimas do desespero por conta dos ucranianos - e me fascinei com o espectáculo e o rigor dos eventos em torno da rainha. Mas gostei das referências trazidas pelas leituras de Paulo Tunhas a respeito de Hitler, que será sempre uma mancha infernal na história de um povo - para mais, superior, como é o povo germânico, o que me faz preferir pertencer a este do fado e do cante e das danças vivas ao som do harmónio e do cavaquinho e da gaita, sobre que apuseram o seu expressivo selo tantos amados escritores…

Mas pode alguém condenar? Afinal também temos pelourinhos em várias praças, e até uma macabra Capela dos Ossos, a atestar fragilidades morais de envergadura… Venha o rolo da cozinha para as lágrimas da nossa própria vergonha antiga… E fumemos. Como escreveu o meu Pai em quadra premiada, em solo moçambicano:

«Vês o argueiro inocente

Que a vista aos outros não tolhe,

E não vês que toda a gente

Os cigarros “Flora” escolhe.»

Ou, mais eruditamente, façamos como o genial Álvaro de Campos:

Enquanto o Destino mo conceder

Continuarei fumando”…

Embora os maços tenham gravado, cinicamente que “Fumar mata”.

Mas regressemos ao monstro actual e admiremos esse povo ucraniano. Pra todos os efeitos, o resto já é silêncio.

Duas mortes reais e uma imaginada

Passei o dia todo no sofá a ver nas televisões o funeral de Isabel II. Não pertenço, decididamente, à categoria dos portugueses que, nestas circunstâncias, declaram enfaticamente que “já estão fartos”.

PAULO TUNHAS

OBSERVADOR, 22 set 2022, 08:0217

Até hoje, foi uma semana cheia.

Segunda-feira. Passei o dia todo no sofá a espirrar para lenços de papel e a ver nas televisões o funeral de Isabel II. Não pertenço, decididamente, à categoria dos portugueses que, nestas circunstâncias, declaram enfaticamente que “já estão fartos”. Por mim, confesso, não me fartei nada. O rigor milimétrico de todo o cerimonial consecutivo à morte da rainha, que culminou segunda-feira em Windsor, fascinou-me como há muito tempo nada na televisão me tinha fascinado. Só os ingleses, um povo de actores natos, é que podem dar-se ao luxo de tamanha pompa e circunstância sem caírem por um só instante no ridículo.

A etapa final, no castelo de Windsor, raiou a perfeição. Não me refiro apenas aos magníficos hinos do Common Prayer Book cantados pelo coro. Refiro-me à cerimónia no seu todo e a cada um dos seus momentos. Quando, por exemplo, o Lord Chamberlain quebra em duas partes uma varinha e deposita as partes partidas em cima do caixão da rainha, simbolizando o fim da soberania da monarca, viajamos instantaneamente no tempo. E todo o ritual é compatível com as mais humanas emoções. Como quando, por exemplo, o Royal Piper toca, na sua gaita-de-foles, um belo lamento, e, enquanto o caixão vai lentamente descendo para a cripta, se afasta a passos espaçados e regulares, até sair de cena e a música se ir perdendo na distância, como entre brumas.

Não, de facto não me “fartei” nada. Agradeci mesmo muito a extraordinária lição de representação, no duplo sentido da palavra, que não é tão duplo assim em alguém como Hobbes.

Terça-feira. Por entre ininterruptos espirros para lenços de papel, decidi passar a outra morte e pus-me a ler o livrinho que o historiador alemão Joachim Fest dedicou aos últimos dias de Hitler no bunker de Berlim, um dos livros que serviu de base para o filme “A queda”. Tinha já lido há alguns anos o livro que, logo em 1946, Hugh Trevor-Roper dedicara ao assunto. O livro de Fest, publicado em 2002, traz alguma informação nova, indisponível em 1946. Em todo o caso, é uma magnífica história da loucura humana levada à dimensão mais extrema.

Com as tropas soviéticas do marechal Zhukov aproximando-se a grande velocidade de Berlim, Hitler continuava a imaginar delirantemente operações ofensivas e a ver sinais mágicos da sua salvação em acontecimentos que obviamente nunca o salvariam de nada, como, por exemplo, a morte de Roosevelt, na qual ele via a repetição da morte da czarina Elizabete, que havia permitido a salvação de Frederico, o Grande. A vida no bunker desmazelara Hitler, a sua roupa estava suja e o corpo era sujeito a agitações descontroladas. Dos cantos da boca pendiam restos de bolos que comia em grandes quantidades. Nos corredores do bunker, como notou Albert Speer quando foi despedir-se do Führer, os militares continuavam sentados, a falar e a fumar, quando Hitler, cambaleante, por eles passava.

Entretanto, Himmler e Göring, e os seus gangs respectivos, procuravam salvar-se de uma maneira ou de outra. Himmler planeava um encontro com o general Eisenhower e perguntava-se como o deveria saudar quando o visse: uma vénia ou um aperto de mão? Apenas Goebbels se manteve fiel, suicidando-se com a sua mulher, como se sabe, depois de matarem as suas seis crianças e depois de Hitler e Eva Braun já se terem também suicidado.

Nos últimos tempos, Hitler lamentava alguns erros passados. Sobretudo um, que o levava ao desespero: ter sido demasiado bom, ter-se excedido na fraqueza da bondade. Daí os seus renovados sonhos de destruição, inclusive da própria Alemanha. Nada na Alemanha lhe deveria sobreviver: nada de indispensável à vida da sociedade ou que lembrasse alguma grandeza passada – as obras de arte e os monumentos históricos deveriam igualmente desaparecer para todo o sempre. Tudo deveria transformar-se num “deserto de onde todo o traço de civilização tivesse desaparecido”, segundo as suas próprias palavras. No fundo, ao tempo do seu quinquagésimo sexto aniversário, o pensamento da destruição da Alemanha aliviava Hitler. A destruição havia sido, no fundo, a sua única paixão e a destruição da Alemanha elevava essa paixão a algo quase sublime. Se as cinzas de Hitler, no jardim da Chancelaria, ainda conseguissem pensar alguma coisa, aspirariam sem dúvida à possível satisfação desse particular desejo de destruição.

Quarta-feira. Os russos de Putin são, sem dúvida curiosos. A dificilmente imaginável Maria Zakharova apelidou de “blasfémia” o facto de Putin não ter sido convidado para o funeral de Isabel II. Poucos dias depois, na televisão do Estado russa, uma senhora dizia que se tinha perdido uma boa oportunidade ao não se ter lançado uma bomba atómica sobre Londres no dia do funeral. Razão, peço desculpa pelo simplismo, tinha Kipling: os russos são os melhores dos orientais, mas como ocidentais são uma desgraça. Razão, é claro, apenas na segunda parte da frase.

Tinha-me levantado particularmente cedo para acabar de escrever uma prosa que me tinha sido encomendada. Mal acabei o trabalho, e com os lenços de papel sempre à beira do nariz a pingar, liguei a televisão e deparei-me com o discurso de Putin, anunciando referendos nas regiões ocupadas e a mobilização parcial, além de ameaçar o Ocidente com armas nucleares, acusando esse mesmo Ocidente de o estar a ameaçar a ele. O homem é literalmente imune à verdade e a mentira é nele a própria essência do seu ser. Compreende-se a admiração que suscita no PCP e em vários “pacifistas” sortidos que por aí andam. Uma admiração, note-se que não é partilhada por muitos russos, como aqueles que abarrotam os aviões para fugirem do país ou fazem filas de carros de trinta e cinco quilómetros junto à fronteira com a Finlândia com a mesma intenção.

No ponto a que chegámos, uma pessoa apanha-se a desejar para o homem um destino idêntico ao de Hitler. Por mim, não insisto particularmente que ele passe pela fase dos pedaços de bolo dependurados do canto da boca. Mas seria sem dúvida bom que fossem os próprios russos a cercá-lo, sem precisarem agora dos “órgãos de Estaline”. Seria romântico, não seria?, um casamento de última hora com Maria Zakharova. E o Kremlin tem jardins, não tem?

COMENTÁRIOS:

João Ramos: Excelente crónica e as melhoras…              Maria Nunes: Excelente artigo. O rigor, a pompa e a circunstância, no funeral da Rainha  Isabel ll foi impressionante, assim como a  homenagem  dos ingleses à  Monarca. Tantas horas de  espera,  por  vezes  à chuva, só  mostra como  a Rainha era amada e  respeitada Paulo Silva: Parabéns pela crónica. Eu que pouco ou nada televisionei dos cerimoniais fúnebres da Rainha Isabel II, fiquei com vontade de ir à box… estando o silogismo das mortes reais e uma imaginada muito bom. Alexandre Barreira: Bom. Quase que morreu afogado em lágrimas. Foi cá um "carpitanço" de lhe tirar o chapéu !                  Fernando Cascais: Excelente crónica.              João FlorianoFernando Cascais: Não tão excelente assim. O paralelismo entre a morte de Hitler e o possível fim de Putin, está muito bem mas a primeira parte da crónica parece-se um tanto ou quanto com um diário de Adrian Mole: «Hoje, vi a Pandora na paragem do autocarro com o Gary Apple garten. Pensei que ia morrer de desgosto. Fui a correr para casa e fiquei toda a tarde estendido no sofá, a chorar. Quando  a minha mãe chegou disse-lhe que estava com um grande alergia e ela acreditou.»               Paulo Silva > João Floriano: Folhas avulsas de um ‘diário’… mas é isso que é uma crónica, meu caro. Nota: por vezes é nos detalhes, (neste caso no rigor da formalidade), que se percebe a personalidade de um povo ou de uma nação.               Américo Silva: A erudição cria deveres, o cronista tem que ultrapassar o patamar de um adepto do clube de futebol a ou b, os canibais, exceto no canibalismo ritual, desumanizam o petisco para o comerem tranquilos, mas um suposto filósofo tem que partir do princípio de que a natureza humana está presente em qualquer pessoa, ucraniana, russa, alemã ou inglesa. A sociedade que transforma cada indivíduo numa célula amorfa não tem valor, verdade, ou legitimidade.              João Floriano: Estimado filósofo: Eu fui das pessoas que achei exageradas as transmissões das exéquias fúnebres,  mas num país democrático podemos fazer zapping e mudar para debates de futeboladas (a CNN está  a ficar ao mesmo nível da CMTV, só que tem lá umas comentadoras bem engraçadas) ou então para a nova série de Quem quer namorar com o Agricultor em que o momento intelectual mais elevado é andar a atirar bosta de vaca uns aos outros. Concordo com o filósofo sobre os momentos que mais arrepios me deram: o quebrar da vara por parte de Lord Chamberlain e o filósofo não menciona mas os corgis e o ponei a receber o cortejo fúnebre. Gostaria de dizer que o gaiteiro em Westminster Abbey me emocionou  sobretudo pela simplicidade daquele perfil mas as gralhas dos comentadores da CNN não deixaram ninguém ouvir. E mais tarde no Long Walk os gaiteiros tocaram, acho eu, The Sky Boat Song,  e repetiu-se a cena. Possivelmente nem sequer sabem o significado do tema  para a Escócia de hoje nem o motivo de Sam Heughan ter recebido um doutoramento honoris causa em Sterling. À parte estas considerações, só posso lamentar a sua crise alérgica. Aposto que o momento alto de quarta feira foi ter ido à farmácia da Cedofeita comprar um antihistamínico e à mercearia da D. ...... (perdão esqueci o nome) comprar lencinhos de papel com olor a alfazema, porque o papel higiénico já lhe andava a arranhar a filosófica penca. Em relação a quinta e sexta-feira irá certamente analisar as ondas de choque que levantou com o seu artigo e que deixaram à beira de um ataque de nervos os pró Putin residentes. Excelente ideia fazer o paralelismo entre os últimos dias de Hitler o possível fim de Putin. Eu imagino mais um fim como o de Calígula, em que o imperador é esfaqueado por «amigos fiéis». Mas não há dúvida que há uma diferença abissal: Hitler de botões só tinha os do seu casaco. Aí perto da  Cedofeita não há eucaliptos?               José Manuel Pereira: Desgosta-me profundamente a existência de portugueses entre os anões de putin. Nem reparam no ridículo da "sua própria fatiota" que com tanto amor abraçam...             Carlos Quartel: Uma coincidência total de pontos de vista que comparto com o autor no que diz respeito às cerimónias do funeral da rainha. Assaltou-me mesmo o pensamento do que seria aquilo se estivéssemos  a falar do Bokassa. Podia  ser milimetricamente igual, perfeito nos mínimos pormenores, que não escaparia à opinião de monumental palhaçada. Só os ingleses podem fazê-lo, sem cair no ridículo, de facto.  Quanto a Putin as analogias são evidentes. O mesmo mundo de ficção, o mesmo sonho de domínio, a mesma impossibilidade de recuo. A esperança está em que haja alguém   no seu círculo próximo, com o juízo e a coragem suficientes para parar o disparate.

 

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