De Paulo
Tunhas, na pujança das suas realizações diárias, mesmo engripado. Concordo
com ele, e também usei - não lenços de papel, mas de folhas picotadas do rolo
da cozinha, para limpar as lágrimas do desespero por conta dos ucranianos - e
me fascinei com o espectáculo e o rigor dos eventos em torno da rainha. Mas
gostei das referências trazidas pelas leituras de Paulo Tunhas a respeito de Hitler,
que será sempre uma mancha infernal na história de um povo - para mais,
superior, como é o povo germânico, o que me faz preferir pertencer a este do
fado e do cante e das danças vivas ao som do harmónio e do cavaquinho e da gaita,
sobre que apuseram o seu expressivo selo tantos amados escritores…
Mas pode alguém condenar? Afinal também
temos pelourinhos em várias praças, e até uma macabra Capela dos Ossos, a
atestar fragilidades morais de envergadura… Venha o rolo da cozinha para as
lágrimas da nossa própria vergonha antiga… E fumemos. Como escreveu o meu Pai
em quadra premiada, em solo moçambicano:
«Vês
o argueiro inocente
Que
a vista aos outros não tolhe,
E não
vês que toda a gente
Os
cigarros “Flora” escolhe.»
Ou, mais eruditamente,
façamos como o genial Álvaro de Campos:
Enquanto
o Destino mo conceder
Continuarei
fumando”…
Embora os maços tenham gravado,
cinicamente que “Fumar mata”.
Mas regressemos ao monstro actual e
admiremos esse povo ucraniano. Pra todos os efeitos, o resto já é silêncio.
Duas mortes reais e uma imaginada
Passei o dia todo no sofá a ver nas
televisões o funeral de Isabel II. Não pertenço, decididamente, à categoria dos
portugueses que, nestas circunstâncias, declaram enfaticamente que “já estão
fartos”.
PAULO TUNHAS
OBSERVADOR, 22
set 2022, 08:0217
Até
hoje, foi uma semana cheia.
Segunda-feira. Passei o dia todo no sofá a espirrar para lenços de
papel e a ver nas televisões o funeral de Isabel II. Não pertenço,
decididamente, à categoria dos portugueses que, nestas circunstâncias, declaram
enfaticamente que “já estão fartos”. Por mim, confesso, não me fartei nada. O rigor
milimétrico de todo o cerimonial consecutivo à morte da rainha, que culminou
segunda-feira em Windsor, fascinou-me como há muito tempo nada na televisão me
tinha fascinado. Só os ingleses, um povo de actores natos, é que podem dar-se
ao luxo de tamanha pompa e circunstância sem caírem por um só instante no
ridículo.
A
etapa final, no castelo de Windsor, raiou a perfeição. Não me refiro apenas aos
magníficos hinos do Common Prayer Book cantados pelo coro. Refiro-me
à cerimónia no seu todo e a cada um dos seus momentos. Quando,
por exemplo, o Lord Chamberlain quebra em duas partes uma varinha e deposita as
partes partidas em cima do caixão da rainha, simbolizando o fim da soberania da
monarca, viajamos instantaneamente no tempo. E todo o
ritual é compatível com as mais humanas emoções. Como quando, por exemplo, o
Royal Piper toca, na sua gaita-de-foles, um belo lamento, e, enquanto o caixão
vai lentamente descendo para a cripta, se afasta a passos espaçados e
regulares, até sair de cena e a música se ir perdendo na distância, como entre
brumas.
Não, de facto não me “fartei”
nada. Agradeci mesmo muito a
extraordinária lição de representação, no duplo sentido da palavra, que não é
tão duplo assim em alguém como Hobbes.
Terça-feira. Por entre ininterruptos espirros para lenços de
papel, decidi passar a outra morte e pus-me a ler o livrinho que o
historiador alemão Joachim Fest dedicou aos últimos dias de Hitler no bunker de Berlim, um dos
livros que serviu de base para o filme “A queda”.
Tinha já lido há alguns anos o livro que, logo em 1946, Hugh Trevor-Roper
dedicara ao assunto. O livro de Fest, publicado em 2002, traz alguma
informação nova, indisponível em 1946. Em todo o caso, é uma magnífica história
da loucura humana levada à dimensão mais extrema.
Com as tropas soviéticas do marechal
Zhukov aproximando-se a grande velocidade de Berlim, Hitler continuava a
imaginar delirantemente operações ofensivas e a ver sinais mágicos da sua
salvação em acontecimentos que obviamente nunca o salvariam de nada, como, por
exemplo, a morte de Roosevelt, na qual ele via a repetição da morte da czarina
Elizabete, que havia permitido a salvação de Frederico, o Grande. A vida no bunker desmazelara
Hitler, a sua roupa estava suja e o corpo era sujeito a agitações
descontroladas. Dos cantos da boca pendiam restos de bolos que comia em grandes
quantidades. Nos corredores do bunker, como notou Albert Speer quando foi
despedir-se do Führer, os militares continuavam sentados, a falar e a fumar,
quando Hitler, cambaleante, por eles passava.
Entretanto,
Himmler e Göring, e os seus
gangs respectivos, procuravam salvar-se de uma maneira ou de outra. Himmler
planeava um encontro com o general Eisenhower e perguntava-se como o deveria
saudar quando o visse: uma vénia ou um aperto de mão? Apenas Goebbels se
manteve fiel, suicidando-se com a sua mulher, como se sabe, depois de matarem
as suas seis crianças e depois de Hitler e Eva Braun já se terem também
suicidado.
Nos
últimos tempos, Hitler lamentava alguns erros passados. Sobretudo um, que o
levava ao desespero: ter sido demasiado bom, ter-se excedido na
fraqueza da bondade. Daí
os seus renovados sonhos de destruição, inclusive da própria Alemanha. Nada na
Alemanha lhe deveria sobreviver: nada de indispensável à vida da sociedade ou
que lembrasse alguma grandeza passada – as obras de arte e os monumentos
históricos deveriam igualmente desaparecer para todo o sempre. Tudo deveria transformar-se num “deserto de onde
todo o traço de civilização tivesse desaparecido”, segundo as suas próprias
palavras. No fundo, ao tempo do seu quinquagésimo sexto
aniversário, o pensamento da destruição da Alemanha aliviava Hitler. A destruição havia sido, no fundo, a
sua única paixão e a destruição da Alemanha elevava essa paixão a algo quase
sublime. Se as cinzas de Hitler, no jardim da Chancelaria, ainda conseguissem
pensar alguma coisa, aspirariam sem dúvida à possível satisfação desse
particular desejo de destruição.
Quarta-feira. Os russos de Putin são, sem dúvida curiosos. A
dificilmente imaginável Maria Zakharova apelidou de “blasfémia” o facto de
Putin não ter sido convidado para o funeral de Isabel II. Poucos dias depois, na televisão do Estado russa, uma
senhora dizia que se tinha perdido uma boa oportunidade ao não se ter lançado
uma bomba atómica sobre Londres no dia do funeral. Razão,
peço desculpa pelo simplismo, tinha Kipling: os russos são os melhores dos
orientais, mas como ocidentais são uma desgraça. Razão, é claro, apenas na
segunda parte da frase.
Tinha-me levantado
particularmente cedo para acabar de escrever uma prosa que me tinha sido
encomendada. Mal acabei o trabalho, e com os lenços de papel sempre à beira do
nariz a pingar, liguei a televisão e deparei-me com o discurso de Putin,
anunciando referendos nas regiões ocupadas e a mobilização parcial, além de
ameaçar o Ocidente com armas nucleares, acusando esse mesmo Ocidente de o estar
a ameaçar a ele. O homem é literalmente imune à verdade e a mentira é nele a
própria essência do seu ser. Compreende-se
a admiração que suscita no PCP e em vários “pacifistas” sortidos que por aí
andam. Uma admiração, note-se que não é partilhada por muitos russos, como
aqueles que abarrotam os aviões para fugirem do país ou fazem filas de carros
de trinta e cinco quilómetros junto à fronteira com a Finlândia com a mesma
intenção.
No
ponto a que chegámos, uma pessoa apanha-se a desejar para o homem um destino
idêntico ao de Hitler. Por mim, não insisto particularmente que ele passe pela
fase dos pedaços de bolo dependurados do canto da boca. Mas seria sem dúvida
bom que fossem os próprios russos a cercá-lo, sem precisarem agora dos “órgãos
de Estaline”. Seria romântico, não seria?, um casamento de última hora com
Maria Zakharova. E o Kremlin tem jardins, não tem?
COMENTÁRIOS:
João Ramos: Excelente crónica e as melhoras… Maria Nunes: Excelente artigo. O rigor, a
pompa e a circunstância, no funeral da Rainha Isabel ll foi
impressionante, assim como a homenagem dos ingleses à
Monarca. Tantas horas de espera, por vezes à chuva,
só mostra como a Rainha era amada e respeitada. Paulo Silva: Parabéns pela crónica. Eu que
pouco ou nada televisionei dos cerimoniais fúnebres da Rainha Isabel II, fiquei
com vontade de ir à box… estando o silogismo das mortes reais e uma imaginada
muito bom. Alexandre Barreira: Bom. Quase que morreu afogado em lágrimas. Foi cá um
"carpitanço" de lhe tirar o chapéu ! Fernando Cascais: Excelente crónica. João FlorianoFernando Cascais:
Não tão excelente
assim. O paralelismo entre a morte de Hitler e o possível fim de Putin, está
muito bem mas a primeira parte da crónica parece-se um tanto ou quanto com um
diário de Adrian Mole: «Hoje, vi a Pandora na paragem do autocarro com o Gary
Apple garten. Pensei que ia morrer de desgosto. Fui a correr para casa e fiquei
toda a tarde estendido no sofá, a chorar. Quando a minha mãe chegou
disse-lhe que estava com um grande alergia e ela acreditou.» Paulo Silva > João Floriano: Folhas avulsas de um ‘diário’…
mas é isso que é uma crónica, meu caro. Nota: por vezes é nos detalhes, (neste
caso no rigor da formalidade), que se percebe a personalidade de um povo ou de
uma nação.
Américo Silva: A erudição cria deveres, o cronista tem que
ultrapassar o patamar de um adepto do clube de futebol a ou b, os canibais,
exceto no canibalismo ritual, desumanizam o petisco para o comerem tranquilos,
mas um suposto filósofo tem que partir do princípio de que a natureza humana
está presente em qualquer pessoa, ucraniana, russa, alemã ou inglesa. A
sociedade que transforma cada indivíduo numa célula amorfa não tem valor,
verdade, ou legitimidade.
João Floriano: Estimado
filósofo: Eu fui das pessoas que achei exageradas as transmissões das exéquias
fúnebres, mas num país democrático
podemos fazer zapping e mudar para debates de futeboladas (a CNN está a
ficar ao mesmo nível da CMTV, só que tem lá umas comentadoras bem engraçadas)
ou então para a nova série de Quem quer namorar com o Agricultor em que o
momento intelectual mais elevado é andar a atirar bosta de vaca uns aos outros.
Concordo com o filósofo sobre os momentos que mais arrepios me deram: o quebrar
da vara por parte de Lord Chamberlain e o filósofo não menciona mas os corgis e
o ponei a receber o cortejo fúnebre. Gostaria de dizer que o gaiteiro em
Westminster Abbey me emocionou sobretudo pela simplicidade daquele perfil
mas as gralhas dos comentadores da CNN não deixaram ninguém ouvir. E mais tarde
no Long Walk os gaiteiros tocaram, acho eu, The Sky Boat Song, e
repetiu-se a cena. Possivelmente nem sequer sabem o significado do tema
para a Escócia de hoje nem o motivo de Sam Heughan ter recebido um doutoramento
honoris causa em Sterling. À parte estas considerações, só posso lamentar a sua
crise alérgica. Aposto que o momento alto de quarta feira foi ter ido à
farmácia da Cedofeita comprar um antihistamínico e à mercearia da D. ......
(perdão esqueci o nome) comprar lencinhos de papel com olor a alfazema, porque
o papel higiénico já lhe andava a arranhar a filosófica penca. Em relação a
quinta e sexta-feira irá certamente analisar as ondas de choque que levantou
com o seu artigo e que deixaram à beira de um ataque de nervos os pró Putin
residentes. Excelente ideia fazer o paralelismo entre os últimos dias de Hitler
o possível fim de Putin. Eu imagino mais um fim como o de Calígula, em que o
imperador é esfaqueado por «amigos fiéis». Mas não há dúvida que há uma
diferença abissal: Hitler de botões só tinha os do seu casaco. Aí perto
da Cedofeita não há eucaliptos? José Manuel Pereira: Desgosta-me profundamente a
existência de portugueses entre os anões de putin. Nem reparam no ridículo da
"sua própria fatiota" que com tanto amor abraçam... Carlos Quartel:
Uma coincidência
total de pontos de vista que comparto com o autor no que diz respeito às
cerimónias do funeral da rainha. Assaltou-me mesmo o pensamento do que seria
aquilo se estivéssemos a falar do Bokassa. Podia ser
milimetricamente igual, perfeito nos mínimos pormenores, que não escaparia à
opinião de monumental palhaçada. Só os ingleses podem fazê-lo, sem cair no
ridículo, de facto. Quanto a Putin as analogias são evidentes. O mesmo
mundo de ficção, o mesmo sonho de domínio, a mesma impossibilidade de recuo. A
esperança está em que haja alguém no seu círculo próximo, com o
juízo e a coragem suficientes para parar o disparate.
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