quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Chamavam-se ratinhos…


… Os ceifeiros beirões que, na época das mondas, iam para o Alentejo, ceifar os trigos do celeiro português. Cesário Verde não escapou à sua onda de piedade e de solidariedade, na sua poesia juvenil, de revolta amadurecida por ideais justiceiros, no século XIX. O problema que ele expõe, do tráfico interno de pessoas, não tem, evidentemente, paralelo com o tráfico negreiro, que os justiceiros Woke, altruístas por encomenda, e ódio ao capitalismo opressor, propõem para os nossos tempos de ódio esclarecido, como refere habilmente o historiador João Pedro Marques, no seu exemplar texto a que vários comentadores acrescentam dados históricos de que também me lembrei, reveladores da eterna semelhança nos comportamentos humanos ao longo da História, embora uma figura hoje, apesar de tudo, se imponha como atrozmente diferenciada das mais, em vileza cobarde. Mas serve o excerto de “Provincianas” de Cesário, apenas para amenizar estes tempos de atropelo:

….. Mas nem tudo são descantes.

Por esses longos caminhos,

Entre favais palpitantes,

Há solos bravos, maninhos,

Que expulsam seus habitantes!

 

É nesta quadra d'amores

Que emigram os jornaleiros

Ganhões e trabalhadores!

Passam clãs de forasteiros

Nas terras de lavradores.

 

Tal como existem mercados

Ou feiras, semanalmente

Para comprarmos os gados

Assim há praças de gente

Pelos domingos calados!

 

Enquanto a ovelha arredonda,

Vão tribos de sete filhos,

Por várzeas que fazem onda,

Para as derregas dos milhos

E molhadelas da monda.

 

De roda pulam borregos;

Enchem então as cardosas

As moças desses labregos

Com altas botas barrosas

De se atirarem aos regos!

 

Ei -las que vêm às manadas

Com caras de sofrimento,

Nas grandes marchas forçadas!

Vem ao trabalho, ao sustento,

Com fouces, sachos, enxadas!

 

Ai o palheiro das servas

Se o feitor lhe tira as chaves!

Elas chegam ás catervas,

Quando acasalam as aves

E se fecundam as ervas! .....

 

Escravatura branca

Não foram apenas os africanos a serem sujeitos a condições de trabalho degradantes. No mundo colonial atlântico essa desgraça esteve muitas vezes mais relacionada com a pobreza que com a cor da pele.

JOÃO PEDRO MARQUES  Historiador e romancista

OBSERVADOR, 26 ago 2022, 00:0831

Afirmei, no meu anterior artigo no Observador, que a nossa esquerda woke só tem olhos para o suposto racismo estrutural dos portugueses. Essa é uma das suas ideias fixas. Outra é a escravatura dos negros, desvalorizando a dos outros povos ou a dos próprios negros, desde que não haja sido feita por europeus e americanos — ocidentais, numa palavra. É por isso, também, que as pessoas dessa área política e ideológica costumam ser indiferentes a formas acentuadas ou extremas de exploração e sujeição que não sejam essa forma específica de tráfico e escravidão de africanos.

Esta regra tem excepções, claro. antropóloga Cristiana Bastos escreveu, há cerca de um ano, um artigo sobre os malefícios da economia de plantação no qual sugeriu um paralelo entre as actuais condições de exploração do trabalho de imigrantes, em Odemira e outros pontos do país, e as que muitos milhares de portugueses enfrentaram em meados dos século XIX, na Guiana e nas Caraíbas britânicas. A autora explicou, adequadamente, que depois da abolição do tráfico de escravos e da escravidão nas colónias inglesas foi necessário obter mão-de-obra por outros meios para prover à carência de braços, em particular no duríssimo trabalho da safra açucareira. Os britânicos foram encontrar essa mão-de-obra na Índia e em várias regiões assoladas pela pobreza, uma das quais a ilha da Madeira. Foram dezenas de milhar de madeirenses que, como escreveu a antropóloga, “se sujeitaram a condições extremas nas plantações de açúcar e muitos ali perderam a vida”.

entre a nossa esquerda woke, que tanto gosta de bater no peito, indignada com as injustiças do passado. E, no entanto, há muito terreno para levar essa história mais adiante, e para assinalar que não foram só as colónias britânicas que recorreram ao trabalho quase escravo de portugueses pobres. O Brasil fê-lo em larga escala, na mesma época, e o fenómeno assumiu tal dimensão e tais facetas que ficou, então, conhecido por “escravatura branca”, ainda que, técnica e juridicamente não fosse tráfico nem escravidão. Era, todavia, dessa forma que aparecia referido nos jornais portugueses e brasileiros e que se abordava e debatia nas nossas Cortes. E muito compreensivelmente, diga-se, pois as condições de transporte através do Atlântico e de trabalho, nas fazendas e plantações, faziam lembrar as do tráfico transatlântico de escravos e da escravidão colonial dos negros.

Os navios utilizados no transporte desses emigrantes para o Brasil (e outros pontos das Américas) estavam equipados com vários dos apetrechos que se usavam no tráfico negreiro e que eram proibidos pela legislação anti-tráfico. A própria relação entre a tonelagem desses navios e o número de passageiros transportados era, muitas vezes, equivalente à que se verificava nesse tráfico. A sobrelotação era um elemento omnipresente na travessia do Atlântico e as suas consequências podiam ser agravadas pelo tratamento a bordo. A título de exemplo refira-se que na galera Defensora, que em 1855 saiu sobrelotada do Porto, morreram 47 emigrantes, vítimas da fome e dos maus-tratos.

Os engajadores ao serviço de companhias de colonização brasileiras recebiam uma comissão por cada engajado. Estabeleciam contratos com os emigrantes em Portugal, pagavam-lhes a passagem, tratavam dos papéis necessários e ficavam com as suas vidas na mão. Por vezes, os próprios capitães dos navios angariavam trabalhadores para irem para o Brasil sem contrato fixo. As suas viagens eram feitas a crédito, estipulando-se que o seu custo seria suportado no ponto de chegada por quem viesse a contratar cada um dos emigrantes — que, já no Brasil, ficariam num depósito ou no porão do navio, esperando que alguém pagasse aos referidos capitães, ou seus representantes, a importância devida. Quem o fizesse, adquiria o direito de explorar o trabalho dos pobres expatriados durante um determinado período de tempo, o que se estabelecia mediante um acordo geralmente muito desfavorável aos recém-chegados. É que, vendo-se em situação desesperada, estes costumavam aceitar qualquer contrato que lhes propusessem, só para se verem livres da prisão em que se encontravam. Na descrição de um jornal brasileiro da época as coisas passavam-se assim: “O capitão desembarca, vai ao consignatário, começa a distribuir ou, para melhor dizer, começa a vender os escravos de nova espécie e quem desejasse um homem, uma criança, uma mulher, dava quarenta pesos, recebia um bilhete, ia a bordo, escolhia a dedo; podiam-se retalhar famílias à vontade.”

O próprio acto de escolha podia ser profundamente humilhante para os emigrantes. Muitas vezes o potencial empregador pedia às raparigas que levantassem os vestidos para mostrarem as pernas. Os rapazes imberbes podiam ser despidos para verificar que não tinham doenças. A alguns inspeccionava-se a boca e os dentes para aferir da idade e estado de saúde. Em suma, fazia-se com os emigrantes, dizia o mesmo jornal, “o mesmo que se costuma fazer com os escravos e animais, quando se querem vender”. Por fim, também as condições de exploração evocavam a escravidão pois os emigrantes podiam ser obrigados aos serviços mais pesados e chegavam a sofrer castigos físicos infamantes como os que se aplicavam aos escravos negros.

A “escravatura branca” era, na verdade, uma forma de trabalho forçado. Mas não era um caso pontual ou único, nem algo que apenas dissesse respeito a portugueses. No século XIX várias partes das Américas usaram massiçamente essa forma de exploração do trabalho e recorreram em larga escala a trabalhadores indianos e chineses, os chamados cúlis:

Cuba terá recebido, entre 1847 e 1874, 125 mil cúlis chineses e se não recebeu mais foi porque 15 mil morreram no transporte de barco até à ilha espanhola. Apesar de serem formalmente trabalhadores livres, contratados por oito anos, esses cúlis eram praticamente escravos. Os seus contratos de trabalho não tinham cláusulas de repatriamento e nenhum deles conseguiria poupar o suficiente, dos salários pouco mais do que simbólicos que recebiam, para pagar uma viagem de retorno. Assim, os que sobreviviam ao prazo do contrato, e que ficavam livres mas sem modo de vida numa terra estranha, eram presos por vadiagem e forçados a assinar novo contrato. Mas havia pior do que isso. Os cúlis chineses que por essa altura eram transportados de Macau, através do Pacífico, para as costas do Peru e do Equador, para trabalharem nas minas ou na indústria do guano, raramente tinham a possibilidade de renovarem os seus contratos pois morriam em números assustadores, ao cabo de um ou dois anos de trabalho.

Só para as Américas, nos 80 anos que vão de 1838 a 1918, terão emigrado mais de um milhão de pessoas sujeitas a trabalho forçado vindas da Índia e da China. Se lhes juntarmos os africanos, os portugueses e outros europeus, os números duplicam. E triplicam ou quadriplicam se alargarmos a área geográfica de modo a incluir o Hawai, as ilhas Fidji, Samoa, a Austrália, a Malásia, a Birmânia, o Norte da Índia, o Ceilão e várias partes de África.

Portugal usou esse sistema de trabalhadores contratados a termo certo, mas, na prática, impossibilitados de voltar para casa, em várias partes de África, nomeadamente no arquipélago de São Tomé e Príncipe. Outros colonizadores europeus também o fizeram nos territórios que administravam. É claro que, ao contrário do que sucedia com a escravidão, estes indivíduos não eram, em bom rigor, propriedade de um senhor. Mas os seus serviços podiam ser vendidos e transmitidos por herança, e as condições de vida eram semelhantes, quando não mais penosas e desumanas, do que a escravidão havia sido.

Essa é a primeira conclusão que importa sublinhar. Uma segunda conclusão que convém nunca perder de vista é que não foram apenas os africanos a serem sujeitos a condições de trabalho duríssimas e degradantes. Ainda que com nuances, e em diferentes graduações, essa enorme desgraça tocou a muitos europeus e asiáticos, como os indentured servants britânicos e alemães — isto é, os trabalhadores vinculados que, nos séculos XVII e XVIII, se utilizaram em larga escala na Virgínia e outras colónias da América do Norte —, ou os cúlis chineses de que falei acima. No mundo colonial atlântico essa desgraça esteve muitas vezes mais relacionada com a pobreza e outras determinantes económicas do que com a cor da pele.

COMENTÁRIOS:

Maria Amélia Castelo Branco: Do que pude presenciar no local onde vivia em Moçambique, os "contratados" em Moçambique para irem para S. Tomé, regressavam a casa                Antonio Castanheira:

Obrigado. Permito acrescentar os emigrantes portugueses em França na época da ditadura. A história não perdoa, mas a limpeza que tentam fazer não vai resultar, espero sinceramente que não resulte.                 Pontifex Maximus: O problema é que os factos passados descritos pelo JPM não são História. Nos infelizes tempos que correm História é apenas o que as diversas minorias de esquerda ou a ela associadas ditam que é. Assim, enquanto um qualquer Bá desta vida não disser que os factos descritos ocorreram tudo não passará de uma tentativa dos brancos explorarem os pretos…         Francisco Figueiredo: se pensar no goulag                      Anónimo de Anónimo: Não é a área do senhor João Marques (penso) mas gostava que alguém pegasse na escravatura na Europa no século XX. O que os alemães nos anos 30 e 40 fizeram aos seus prisioneiros e também a muitos trabalhadores voluntários está na linha da escravatura.           Alex Carnide: Importante esclarecimento! Oxalá seja assimilado pelos wokes e família. Obrigado                  Anónimo de Anónimo: Muito obrigado pelo artigo.         Alexandre Barreira: Uma indireta ao Ventura por ter perdido o "escravo" !?              Anónimo de Anónimo > Alexandre Barreira: Depois de um artigo destes a sua opinião é esta ... estamos entendidos.                  vitor Manuel > Anónimo de Anónimo: De um canalha que no artigo "Igreja perseguida na Nicarágua, bis" de P. Portocarrero de Almada, atreveu-se ao seguinte comentário,  "Metem-se em politiquices ...."            Alexandre Barreira > vitor manuel Ora mais uma vez. A prova provada !               Joao Leitao: Obrigado pelo seu artigo.

Situações parecidas com estas encontram-se hoje em dia no Kuwait e nos outros países 'ricos do golfo, em que se encontram comunidades imensas de indianos e paquistaneses, por exemplo, a viverem com salários 10 vezes inferiores ao salário médio dos locais  e normalmente sem hipótese de, querendo,  voltarem às suas zonas de origem. Na zona continental do sudeste asiático também se verificam situações semelhantes. Em Macau, por exemplo, é comum famílias ( ou pequenas empresas, julgo saber ) de classe média, referirem-se a funcionários ( serviçais ) como "o meu filipino".                  Pedro Oliveira: Admirável artigo. Parabéns.               Andrade QB; Verdades inconvenientes. João Pedro Marques a esta hora começa a ser sussurrado nas células woke como inimigo a abater.                Carminda Damiao: Excelente artigo. É bom conhecermos toda a história e não apenas um pedaço. Obrigada.                  Ark NabuL: Ao Woke não interessam factos, apenas derrubar o capitalismo.           Maria João Pestana: Muito obrigada pelo excelente artigo! A extrema-esquerda só reage a determinados temas e assobia para o ar em relação a todo o tipo de injustiças quando não cumprem as regras de racismo ou homofobia. Ou seja há escravatura e escravatura, uma importa, outra não é assunto.               João Alves > Maria João Pestana: O autor faz uma distinção entre um modo de produção esclavagista é o tráfico negreiro, actividade mercantil associada àquele modo de produção. A esquerda woke, quando critica os portugueses por causa da escravatura, refere-se mais ao tráfico negreiro transatlântico do que à escravatura propriamente dita.                 Pedro Cardoso > João Alves: Desculpe, mas o que tenho notado é um pouco menos lógico. A esquerda woke vitimiza todos os negros enquanto herdeiros da exploração dos seus antepassados, enquanto acusa todos os brancos de exploradores, ou beneficiários de exploração, que têm de se redimir. Ainda esta semana ouvi um irlandês, com ironia, explicar que os seus antepassados cavavam as próprias batatas. E por isso não compreendia quando o acusavam de usufruir do " privilégio branco".               Mario Areias: Muito obrigado por mais um artigo esclarecedor.              Francisco Tavares de Almeida: Presentemente os chineses estão a deslocar tibetanos para trabalhar em fábricas chinesas. Não tenho conhecimento das condições de trabalho e remuneração mas sabendo algo das tradições tibetanas, estou convencido que não vão de livre vontade.             Vitor Batista: Acontece o mesmo agora, com os russos a escravizarem os inocentes ucranianos, e os amigos do Barreirinhas e do putinas não dizem nada?            bento guerra: Acontece o mesmo em pior grau,no tráfico negreiro do Mediterrânio,apoiado pela "esquerda" ,pelas máfias e o Vaticano.Neste caso,são os "escravos" que pagam cara a viagem e têm de fazer prova de resistência na travessia Pedra Nussapato: Escravatura, exploração e condições precárias do trabalho, foram e ainda continuam a ser um flagelo, mas há todo um mundo de diferenças entre estas situações, e o autor denuncia sabê-lo.            Rui Lima: Obrigado pelo oportuno artigo, para o politicamente correcto só há brancos carrascos e africanos vítimas, todos os povos de todas as cores e origens ao longo da história foram vítimas de condições degradantes e ainda hoje o são. Verdadeiramente só os europeus lutaram contra o trabalho forçado. Com os seus valores mas mais eficazmente ao inventaram a máquina é este invento que permite o fim do trabalho forçado. Sem as máquinas para os nossos níveis de consumo cada um de nós precisaria de 10 escravos, se o nosso mundo deixar de ter máquinas o trabalho forçado regressa .            Maria Nunes: Excelente. Ao omitirem a verdade  histórica,  a esquerda Woke só mostra a sua ignorância quando fala sobre escravatura.               Américo Silva: Nem sempre o trabalho escravo é o mais cruel, e nem sempre o trabalho mais cruel é rejeitado pela vítima. Milhões de crianças europeias morreram nas minas de carvão, como morriam os adolescentes a salgar bacalhau nos veleiros. Só que a europa branca niilista desvaloriza os sacrifícios dos seus antepassados que trouxeram bem estar ao mundo, para valorizar contribuições mais passivas, e até menos sacrificadas.      Maria Clotilde Osório: Ainda hoje existe. Chama-se tráfico de seres humanos. E também implica trabalho escravo. Meio Vazio: Muito interessante. (Já agora; entre 1838 e 1918 passaram 80 anos.)            Maria da Conceição Gaivão > Meio Vazio:  ???     …”nos 80 anos que vão de 1838 a 1918”…          A Sameiro: DEVE FALAR NO IMPÈRIO ROMANO,E QUANDO OD TURCOS DOMINARAM PARTE DA EUROPA. BELO ARTIGO.

 

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