… Os ceifeiros beirões que, na época das
mondas, iam para o Alentejo, ceifar os trigos do celeiro português. Cesário Verde não escapou à sua onda de piedade e de
solidariedade, na sua poesia juvenil, de revolta amadurecida por ideais
justiceiros, no século XIX. O problema que ele expõe, do tráfico interno de
pessoas, não tem, evidentemente, paralelo com o tráfico negreiro, que os
justiceiros Woke, altruístas por encomenda, e ódio ao capitalismo opressor,
propõem para os nossos tempos de ódio esclarecido, como refere habilmente o
historiador João Pedro Marques, no seu exemplar
texto a que vários comentadores acrescentam dados históricos de que também me
lembrei, reveladores da eterna semelhança nos comportamentos humanos ao longo
da História, embora uma figura hoje, apesar de tudo, se imponha como atrozmente
diferenciada das mais, em vileza cobarde. Mas serve o excerto de “Provincianas” de Cesário, apenas para
amenizar estes tempos de atropelo:
….. Mas nem
tudo são descantes.
Por esses
longos caminhos,
Entre favais
palpitantes,
Há solos
bravos, maninhos,
Que expulsam
seus habitantes!
É nesta quadra
d'amores
Que emigram os
jornaleiros
Ganhões e
trabalhadores!
Passam clãs de
forasteiros
Nas terras de
lavradores.
Tal como existem mercados
Ou feiras, semanalmente
Para comprarmos os gados
Assim há praças de gente
Pelos domingos calados!
Enquanto a
ovelha arredonda,
Vão tribos de
sete filhos,
Por várzeas
que fazem onda,
Para as
derregas dos milhos
E molhadelas
da monda.
De roda pulam
borregos;
Enchem então
as cardosas
As moças desses
labregos
Com altas
botas barrosas
De se atirarem
aos regos!
Ei -las que vêm
às manadas
Com caras de
sofrimento,
Nas grandes
marchas forçadas!
Vem ao
trabalho, ao sustento,
Com fouces,
sachos, enxadas!
Ai o palheiro
das servas
Se o feitor
lhe tira as chaves!
Elas chegam ás
catervas,
Quando
acasalam as aves
E se fecundam
as ervas! .....
Escravatura branca
Não foram apenas os africanos a serem
sujeitos a condições de trabalho degradantes. No mundo colonial atlântico essa
desgraça esteve muitas vezes mais relacionada com a pobreza que com a cor da
pele.
JOÃO PEDRO MARQUES Historiador e romancista
OBSERVADOR, 26
ago 2022, 00:0831
Afirmei, no meu
anterior artigo no Observador, que a nossa
esquerda woke só tem olhos para o suposto racismo estrutural dos
portugueses. Essa é uma das suas ideias fixas. Outra é a escravatura dos
negros, desvalorizando a dos outros povos ou a dos próprios negros, desde que
não haja sido feita por europeus e americanos — ocidentais, numa palavra. É por
isso, também, que as pessoas dessa área política e ideológica costumam ser
indiferentes a formas acentuadas ou extremas de exploração e sujeição que não
sejam essa forma específica de tráfico e escravidão de africanos.
Esta
regra tem excepções, claro. A antropóloga Cristiana Bastos escreveu, há cerca de um ano, um artigo
sobre os malefícios da economia de plantação no qual sugeriu um paralelo entre
as actuais condições de exploração do trabalho de imigrantes, em Odemira e
outros pontos do país, e as que muitos milhares de portugueses enfrentaram em
meados dos século XIX, na Guiana e nas Caraíbas britânicas. A autora
explicou, adequadamente, que depois da abolição do tráfico de escravos e da
escravidão nas colónias inglesas foi necessário obter mão-de-obra por outros
meios para prover à carência de braços, em particular no duríssimo trabalho da
safra açucareira. Os britânicos foram encontrar essa mão-de-obra na Índia
e em várias regiões assoladas pela pobreza, uma das quais a ilha da Madeira. Foram
dezenas de milhar de madeirenses que, como escreveu a antropóloga, “se
sujeitaram a condições extremas nas plantações de açúcar e muitos ali perderam
a vida”.
entre a nossa esquerda woke, que
tanto gosta de bater no peito, indignada com as injustiças do passado. E, no entanto, há muito terreno para levar essa
história mais adiante, e para assinalar que não foram só as colónias britânicas
que recorreram ao trabalho quase escravo de portugueses pobres. O Brasil fê-lo
em larga escala, na mesma época, e o fenómeno assumiu tal dimensão e tais
facetas que ficou, então, conhecido por “escravatura branca”, ainda que, técnica e juridicamente não fosse tráfico
nem escravidão. Era,
todavia, dessa forma que aparecia referido nos jornais portugueses e
brasileiros e que se abordava e debatia nas nossas Cortes. E muito
compreensivelmente, diga-se, pois as condições de transporte através do
Atlântico e de trabalho, nas fazendas e plantações, faziam lembrar as do
tráfico transatlântico de escravos e da escravidão colonial dos negros.
Os navios
utilizados no transporte desses emigrantes para o Brasil (e outros pontos das
Américas) estavam equipados com vários dos apetrechos que se usavam no tráfico
negreiro e que eram proibidos pela legislação anti-tráfico. A própria relação entre a tonelagem desses navios e o
número de passageiros transportados era, muitas vezes, equivalente à que se
verificava nesse tráfico. A sobrelotação era um elemento omnipresente na
travessia do Atlântico e as suas consequências podiam ser agravadas pelo
tratamento a bordo. A título de
exemplo refira-se que na galera Defensora, que em 1855 saiu sobrelotada do
Porto, morreram 47 emigrantes, vítimas da fome e dos maus-tratos.
Os
engajadores ao serviço de companhias de colonização brasileiras recebiam uma
comissão por cada engajado. Estabeleciam
contratos com os emigrantes em Portugal, pagavam-lhes a passagem, tratavam dos
papéis necessários e ficavam com as suas vidas na mão. Por vezes, os
próprios capitães dos navios angariavam trabalhadores para irem para o Brasil
sem contrato fixo. As suas
viagens eram feitas a crédito, estipulando-se que o seu custo seria suportado
no ponto de chegada por quem viesse a contratar cada um dos emigrantes — que,
já no Brasil, ficariam num depósito ou no porão do navio, esperando que alguém
pagasse aos referidos capitães, ou seus representantes, a importância devida.
Quem o fizesse, adquiria o direito de explorar o trabalho dos pobres
expatriados durante um determinado período de tempo, o que se estabelecia
mediante um acordo geralmente muito desfavorável aos recém-chegados. É que, vendo-se em situação desesperada, estes
costumavam aceitar qualquer contrato que lhes propusessem, só para se verem
livres da prisão em que se encontravam. Na descrição de um jornal brasileiro da
época as coisas passavam-se assim: “O capitão desembarca, vai ao consignatário,
começa a distribuir ou, para melhor dizer, começa a vender os escravos de nova
espécie e quem desejasse um homem, uma criança, uma mulher, dava quarenta
pesos, recebia um bilhete, ia a bordo, escolhia a dedo; podiam-se retalhar
famílias à vontade.”
O próprio acto de escolha podia ser
profundamente humilhante para os emigrantes. Muitas vezes o potencial empregador pedia às raparigas
que levantassem os vestidos para mostrarem as pernas. Os rapazes imberbes
podiam ser despidos para verificar que não tinham doenças. A alguns
inspeccionava-se a boca e os dentes para aferir da idade e estado de saúde. Em
suma, fazia-se com os emigrantes, dizia o mesmo jornal, “o mesmo que se costuma
fazer com os escravos e animais, quando se querem vender”. Por fim, também as condições de exploração evocavam
a escravidão pois os emigrantes podiam ser obrigados aos serviços mais pesados
e chegavam a sofrer castigos físicos infamantes como os que se aplicavam aos
escravos negros.
A “escravatura branca” era, na
verdade, uma forma de trabalho forçado. Mas
não era um caso pontual ou único, nem algo que apenas dissesse respeito a
portugueses. No século XIX várias partes das Américas usaram massiçamente essa
forma de exploração do trabalho e recorreram em larga escala a trabalhadores
indianos e chineses, os chamados cúlis:
Cuba terá recebido, entre 1847 e
1874, 125 mil cúlis chineses e se não recebeu mais foi porque 15 mil morreram
no transporte de barco até à ilha espanhola. Apesar
de serem formalmente trabalhadores livres, contratados por oito anos, esses
cúlis eram praticamente escravos. Os seus contratos de trabalho não tinham
cláusulas de repatriamento e nenhum deles conseguiria poupar o suficiente, dos
salários pouco mais do que simbólicos que recebiam, para pagar uma viagem de
retorno. Assim, os que sobreviviam ao prazo do contrato, e que ficavam
livres mas sem modo de vida numa terra estranha, eram presos por vadiagem e
forçados a assinar novo contrato. Mas havia pior do que isso. Os cúlis chineses
que por essa altura eram transportados de Macau, através do Pacífico, para as
costas do Peru e do Equador, para trabalharem nas minas ou na indústria do
guano, raramente tinham a possibilidade de renovarem os seus contratos pois
morriam em números assustadores, ao cabo de um ou dois anos de trabalho.
Só
para as Américas, nos 80 anos que vão de 1838 a 1918, terão emigrado mais de um
milhão de pessoas sujeitas a trabalho forçado vindas da Índia e da China. Se lhes
juntarmos os africanos, os portugueses e outros europeus, os números duplicam. E
triplicam ou quadriplicam se alargarmos a área geográfica de modo a incluir o
Hawai, as ilhas Fidji, Samoa, a Austrália, a Malásia, a Birmânia, o Norte da
Índia, o Ceilão e várias partes de África.
Portugal
usou esse sistema de trabalhadores contratados a termo certo, mas, na prática,
impossibilitados de voltar para casa, em várias partes de África, nomeadamente
no arquipélago de São Tomé e Príncipe. Outros colonizadores europeus também o
fizeram nos territórios que administravam. É claro que, ao contrário do que
sucedia com a escravidão, estes indivíduos não eram, em bom rigor, propriedade
de um senhor. Mas os seus serviços podiam ser vendidos e transmitidos por
herança, e as condições de vida eram semelhantes, quando não mais penosas e
desumanas, do que a escravidão havia sido.
Essa
é a primeira conclusão que importa sublinhar. Uma segunda conclusão que convém
nunca perder de vista é que não foram apenas os africanos a serem sujeitos a
condições de trabalho duríssimas e degradantes. Ainda que com nuances, e em
diferentes graduações, essa enorme desgraça tocou a muitos europeus e
asiáticos, como os indentured servants britânicos
e alemães — isto é, os trabalhadores vinculados que, nos
séculos XVII e XVIII, se utilizaram em larga escala na Virgínia e outras
colónias da América do Norte —, ou os cúlis chineses de que falei acima. No mundo
colonial atlântico essa desgraça esteve muitas vezes mais relacionada com a
pobreza e outras determinantes económicas do que com a cor da pele.
COMENTÁRIOS:
Maria Amélia Castelo Branco: Do que pude presenciar no local onde vivia em
Moçambique, os "contratados" em Moçambique para irem para S. Tomé,
regressavam a casa Antonio Castanheira:
Obrigado. Permito acrescentar os emigrantes
portugueses em França na época da ditadura. A história não perdoa, mas a
limpeza que tentam fazer não vai resultar, espero sinceramente que não resulte. Pontifex Maximus: O problema é que os factos
passados descritos pelo JPM não são História. Nos infelizes tempos que correm
História é apenas o que as diversas minorias de esquerda ou a ela associadas
ditam que é. Assim, enquanto um qualquer Bá desta vida não disser que os factos
descritos ocorreram tudo não passará de uma tentativa dos brancos explorarem os
pretos… Francisco
Figueiredo: se pensar no goulag Anónimo de
Anónimo: Não é a área do
senhor João Marques (penso) mas gostava que alguém pegasse na escravatura na
Europa no século XX. O que os alemães nos anos 30 e 40 fizeram aos seus
prisioneiros e também a muitos trabalhadores voluntários está na linha da
escravatura. Alex
Carnide: Importante
esclarecimento! Oxalá seja assimilado pelos wokes e família. Obrigado Anónimo de
Anónimo: Muito obrigado
pelo artigo. Alexandre Barreira: Uma indireta ao Ventura por ter
perdido o "escravo" !?
Anónimo de Anónimo > Alexandre Barreira: Depois de um artigo destes a
sua opinião é esta ... estamos entendidos. vitor Manuel > Anónimo de Anónimo: De um canalha que no artigo
"Igreja perseguida na Nicarágua, bis" de P. Portocarrero de Almada,
atreveu-se ao seguinte comentário, "Metem-se em politiquices
...." Alexandre
Barreira > vitor manuel Ora mais uma vez. A prova provada ! Joao Leitao:
Obrigado pelo seu
artigo.
Situações parecidas com estas encontram-se hoje em dia
no Kuwait e nos outros países 'ricos do golfo, em que se encontram comunidades
imensas de indianos e paquistaneses, por exemplo, a viverem com salários 10
vezes inferiores ao salário médio dos locais e normalmente sem hipótese
de, querendo, voltarem às suas zonas de origem. Na zona continental do
sudeste asiático também se verificam situações semelhantes. Em Macau, por
exemplo, é comum famílias ( ou pequenas empresas, julgo saber ) de classe
média, referirem-se a funcionários ( serviçais ) como "o meu filipino". Pedro Oliveira: Admirável artigo.
Parabéns. Andrade
QB; Verdades inconvenientes. João Pedro Marques a esta hora começa a ser
sussurrado nas células woke como inimigo a abater. Carminda Damiao: Excelente artigo. É bom
conhecermos toda a história e não apenas um pedaço. Obrigada. Ark NabuL: Ao Woke não interessam factos,
apenas derrubar o capitalismo. Maria
João Pestana: Muito obrigada
pelo excelente artigo! A extrema-esquerda só reage a determinados temas e
assobia para o ar em relação a todo o tipo de injustiças quando não cumprem as
regras de racismo ou homofobia. Ou seja há escravatura e escravatura, uma
importa, outra não é assunto.
João Alves > Maria João Pestana: O autor faz uma distinção entre
um modo de produção esclavagista é o tráfico negreiro, actividade mercantil
associada àquele modo de produção. A esquerda woke, quando critica os
portugueses por causa da escravatura, refere-se mais ao tráfico negreiro
transatlântico do que à escravatura propriamente dita. Pedro Cardoso
> João Alves: Desculpe, mas o que tenho
notado é um pouco menos lógico. A esquerda woke vitimiza todos os negros
enquanto herdeiros da exploração dos seus antepassados, enquanto acusa todos os
brancos de exploradores, ou beneficiários de exploração, que têm de se redimir. Ainda esta semana ouvi um
irlandês, com ironia, explicar que os seus antepassados cavavam as próprias
batatas. E por isso não compreendia quando o acusavam de usufruir do " privilégio
branco". Mario
Areias: Muito obrigado por mais um
artigo esclarecedor. Francisco
Tavares de Almeida: Presentemente os chineses estão a deslocar tibetanos
para trabalhar em fábricas chinesas. Não tenho conhecimento das condições de
trabalho e remuneração mas sabendo algo das tradições tibetanas, estou
convencido que não vão de livre vontade. Vitor
Batista: Acontece o
mesmo agora, com os russos a escravizarem os inocentes ucranianos, e os amigos
do Barreirinhas e do putinas não dizem nada? bento guerra: Acontece o mesmo em pior grau,no tráfico negreiro do Mediterrânio,apoiado
pela "esquerda" ,pelas máfias e o Vaticano.Neste caso,são os
"escravos" que pagam cara a viagem e têm de fazer prova de
resistência na travessia Pedra Nussapato: Escravatura, exploração e
condições precárias do trabalho, foram e ainda continuam a ser um flagelo, mas
há todo um mundo de diferenças entre estas situações, e o autor denuncia
sabê-lo. Rui
Lima: Obrigado pelo oportuno artigo, para o politicamente correcto só há
brancos carrascos e africanos vítimas, todos os povos de todas as cores e origens
ao longo da história foram vítimas de condições degradantes e ainda hoje o são. Verdadeiramente só os europeus
lutaram contra o trabalho forçado. Com os seus valores mas mais eficazmente
ao inventaram a máquina é este invento que permite o fim do trabalho forçado. Sem
as máquinas para os nossos níveis de consumo cada um de nós precisaria de 10
escravos, se o nosso mundo deixar de ter máquinas o trabalho forçado regressa
. Maria Nunes: Excelente. Ao omitirem a
verdade histórica, a esquerda Woke só mostra a sua ignorância
quando fala sobre escravatura. Américo Silva: Nem sempre o trabalho escravo é
o mais cruel, e nem sempre o trabalho mais cruel é rejeitado pela vítima.
Milhões de crianças europeias morreram nas minas de carvão, como morriam os
adolescentes a salgar bacalhau nos veleiros. Só que a europa branca niilista
desvaloriza os sacrifícios dos seus antepassados que trouxeram bem estar ao
mundo, para valorizar contribuições mais passivas, e até menos sacrificadas. Maria
Clotilde Osório: Ainda hoje existe. Chama-se tráfico de seres humanos. E também implica
trabalho escravo. Meio Vazio: Muito interessante. (Já agora;
entre 1838 e 1918 passaram 80 anos.) Maria da Conceição Gaivão
> Meio Vazio: ??? …”nos 80 anos que vão de 1838 a
1918”…
A Sameiro: DEVE FALAR NO IMPÈRIO ROMANO,E QUANDO OD TURCOS
DOMINARAM PARTE DA EUROPA. BELO ARTIGO.
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