Para quem as viveu, naturalmente, mas
também para os que, através das experiências, do saber e do sentido crítico desses
viageiros, podem reconstituir os passos percorridos por aqueles, no prazer da
sua leitura, sem as maçadas das deslocações, e no encantamento das reflexões,
de prática sublinhando a teoria, com o humor e a sensibilidade que reconhecemos
num escritor como Alberto Gonçalves. Uma espécie de maná, no deserto do nosso
comodismo, ou de outras naturais limitações.
21 dias pela terra dos bravos e pelas cidades dos
progressistas
Em Nova Iorque tudo é caro e chique e
padronizado e cansativo. Sei que é o capitalismo a funcionar, mas aborrece-me
que os capitalistas em questão ostentem o rosto do “Che” na “t-shirt” de marca.
ALBERTO GONÇALVES
OBSERVADOR, 03 set 2022, 00:216
Após quase quatro anos de ausência,
vinte mil quilómetros de avião e cinco mil de carro, regressei de três semanas
nos Estados Unidos. Eis o que vi.
Vi o derradeiro avanço da
“gentrificação” das cidades, principalmente Nova Iorque, que se tornou de vez
um retiro de abonados. O curioso é
que os beneficiários não usam a cartola, o monóculo e as polainas da lenda.
Não, senhor. Uma breve observação nas zonas residenciais, como o Upper West
Side ou a Village devolve-nos um desfile de criaturas saídas das séries da
Netflix ou do Disney+: jovens com consciência da moda e profissões “criativas”,
afectados, sensíveis e que terminam as frases afirmativas num tom interrogativo
e que dá vontade de os agredir com um rodovalho na cabeça. Ou seja, o
tipo de criaturas que, se chamadas a fazê-lo, condenam a “gentrificação” por
remover a “alma” dos bairros e fingem não perceber que são eles os
protagonistas do processo. John Varvatos, o “designer” que já em 2008 abriu
uma loja caríssima e inútil no lugar do infecto e saudoso CBGB, o berço do
“punk” e da “new-wave”, é um ruidoso defensor de todas as patetices “woke”. Ao
som de protestos hipócritas, a “alma” de Manhattan, que só apanhei de raspão
vai para duas décadas, sumiu sem deixar rasto nem inspirar culpa. Até os
“delis” de fancaria, que haviam substituído os verdadeiros, estão a ceder à
praga de cafetarias “orgânicas” e assépticas, onde um reles “espresso” vem com
pedigree e custa quatro dólares. Não há espaço para a excentricidade (em São
Francisco, diga-se, espaço não falta: no Castro, o bairro gay, vi três homens
completamente nus a almoçar numa esplanada) nem
para a tradição e o hábito (desde 2018, a Amoeba Records de Los Angeles foi
despejada em favor de uma “experiência imersiva” sobre Van Gogh, que para
cúmulo desfigurou o edifício de arquitectura “googie”). Em
Nova Iorque, fora o tradicional lixo nos passeios e as habituais ratazanas,
tudo é caro e chique e padronizado e cansativo. Sei que é
o capitalismo a funcionar, mas aborrece-me que os capitalistas em questão ostentem
o rosto do “Che” na “t-shirt” de marca.
Vi
inúmeras lojas fechadas, umas por estreitamento do horário, outras por
estrangulamento da economia. No primeiro caso, ainda em 2018 era facílimo
encontrar em Nova Iorque um restaurante aberto de madrugada. Agora, até os
coreanos têm horário de encerramento (meia-noite, valha-me Deus). Às dez, salvo
por um ou dois pedaços, São Francisco está a dormir. Phoenix, que nunca se
notabilizou pela boémia mas hoje é uma megalópolis sem fim, idem. Los Angeles,
ibidem. Las Vegas é há muito um pandemónio deprimente. Tomar um café à uma da
manhã transformou-se num desafio. Não
sei a razão, mas responsabilizo a inclinação deliberada ou fortuita para
transformar o mundo num lugar mais triste a cada ano que passa. Pelo contrário,
no segundo caso desconfio da causa que levou incontáveis estabelecimentos a
fechar definitivamente e a assemelhar zonas prósperas das principais cidades a
lugarejos delapidados do Mississippi, com tapumes a vedar a vitrine do que
outrora foi uma promessa de negócio. Mais alguém aposta nas brincadeiras a
pretexto da “pandemia”?
Vi
que as brincadeiras deixaram vasta herança. A reboque das falências e do
desemprego, as estatísticas e meia dúzia de cidadãos sortidos contaram-me que o
crime urbano subiu imenso nos últimos dois anos. Julgo que a nova
susceptibilidade das autoridades às críticas por “excessos”, a beatificação racista das “minorias” e os
progressos das drogas sintéticas também não serão alheios à tendência. Ao entardecer e com frequência em pleno dia, em
qualquer sítio com mais de cem mil habitantes, há dois zombies a cada esquina.
Esclareço que nenhum me atacou, embora alguns me tenham cravado cigarros com
sucesso.
Vi
que, a contrário dos seus custos, a “pandemia” desapareceu, tirando nos
bonacheirões que mantêm a máscara e em certas reservas índias, que mantêm as
restrições por inteiro. Os pobres “nativo-americanos” continuam com
pavor das doenças dos brancos, por acaso oriundas da China, e continuam a ser
manipulados por eles. Amber, uma navajo educadora de infância, informou-me
que 10% dos “indígenas” (termo oficial) morreram de Covid. Sem
descontarmos a inflação nas contagens, o valor “correcto” é 0,4%, de facto um
pouco acima das demais etnias.
Vi,
dentro e fora das reservas do Arizona, do Novo México e do Nevada, o culto
de Trump em rédea solta. Por toda a parte abundam, à venda e
já vendidos, dísticos, camisolas e bonés a solicitar o regresso do empresário à
Casa Branca. O
entusiasmo é apenas proporcional à repulsa pelo sr. Biden, o taralhouco em
funções. Nada é tão americano, no sentido de
interessante, quanto um índio montado numa Harley decorada com uma enorme
bandeira a declarar “Fuck Brandon” (procurem na net as origens da expressão,
mas “Let’s Go Brandon” é uma maneira gentil de insultar o sr. Biden, gentileza
que o índio em causa dispensou). Em
Oatman, numa parte velhinha da Route 66, tudo excepto os burros selvagens é
simbologia republicana. Em Winslow, Arizona, um comércio central de
“souvenirs” converteu-se numa casa de propaganda libertária. Perguntei ao dono se tinha clientes democratas.
Prendeu um sorriso e respondeu que sim, e que metade saía logo depois de
entrar. Eu demorei-me o suficiente para adquirir um par de livros (apolíticos)
e um belo chapéu com a “Gadsden flag”.
Vi a segunda melhor coisa que a América tem: americanos. Não conheço lugar em que seja tão fácil encontrar
sujeitos assim decentes e cordiais. Basta evitar as principais cidades. Nas
“small towns” e na ruralidade pura, as pessoas cumprimentam-nos à toa, puxam
conversa com sincero empenho, seguram-nos a porta o tempo necessário e o
desnecessário, não buzinam as nossas asneiras rodoviárias, abrandam para
entrarmos na estrada, etc. Claro que, na América que o cinema e a televisão
nos impingem, a América do sr. Biden e das sinistras corporações “modernas”,
estas pessoas ou não aparecem ou aparecem sob a forma de caricaturas, para
efeitos de galhofa ou sociologia. Claro que estas pessoas retribuem o desprezo.
Vi,
e revi e hei-de rever enquanto puder, a melhor coisa da América: as prodigiosas
avarias que a natureza por lá semeou, principalmente no Sudoeste. Nos últimos cento e cinquenta anos, pelo menos, produziram-se
milhares de páginas a notar a impossibilidade de descrever semelhantes paisagens.
Não contribuo para o rol. Limito-me a confirmar que enfim o pobre cliché da “beleza
indescritível” é adequado. Ateu, sempre que atravesso aqueles
desfiladeiros, aqueles vales, aquelas “mesas”, aqueles rochedos, aqueles
desertos e aquele céu, todos desmesurados, chega-me a suspeita de que o divino
afinal existe, e vive ali. E a certeza que dali, à revelia das mudanças do
mundo, não sairá.
ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO
COMENTÁRIOS:
Coronavirus corona: Excelente
descrição. Américo
Silva: Se
a américa nos falha não vamos mudar de religião, inventamos uma verdadeira américa atrás do arco-íris. Nós por cá,
tudo bem, encontrei no lixo um livrinho que diz, geografia 9º ano,
coitados dos petizes, em vez de ciência, doutrina, e o que diz este catecismo?
conta a desgraça dos ceguinhos e deficientes mentais nos países pobres, o risco
de um furacão nos levar a casa, uma avalanche nos soterrar, Américo Silva > Américo Silva: os flagelos da seca, da poluição, do aquecimento
global, dos incêndios, da desflorestação. Os adolescentes assim doutrinados
ficam logo queixosos, sem vontade de ter filhos, e os que não perdem desde logo
o te.são, pensam em for.nicar e usufruir o mais possível dos bens da
civilização, antes de se acabar o mundo. José Paulo C
Castro: É por causa dessa realidade oculta nos
media, a da América profunda, que "Brandon is fu***d". O bom
senso que fugiu das cidades mantém-se fora dos media. Paulo Sousa:
Li este o texto junto aos Finger Lakes,
no Norte do estado de NY, estendido num motel, depois de jantar comida típica
americana, que é qualquer coisa aquecida num micro-ondas. Na gaveta de cima da
mesa de cabeceira, a “Holly Bible” faz parte da mobília. Estive em NYC,
Washington DC e Philadelphia. Concordo com a pura cordialidade de quem vive
fora dos grandes aglomerados e com o incómodo que a cultura woke e
anti-republicana causa a essas gentes. Notei também no carácter selvagem e
quase intocado da natureza numa dimensão a que um europeu não está habituado.
Hoje conduzi várias centenas de km em freeways sempre ao lado de uma floresta
cerrada. Aqui e ali aparecem salpicas algumas povoações. Deslocar-se por ali
noutros tempos sem uma arma seria impensável e isso explicará em parte o grave
problema da abundância de armas. Tenho outras notas sobre a emigração dos portugueses,
de há muitos, de há poucos anos e de há poucos meses, mas sobre isso irei
escrever daqui a uns dias no Delito de Opinião. Gostei especialmente de ler
esta crónica do Alberto Gonçalves.
Paulo Silva: Uma
crónica simples, de Alberto Gonçalves. Bravo. Cupid Stunt:
Bem vindo e obrigado pelo relato!! Maria Silva: Uau!!!!! que relato tão giro da viagem. Adorei.
Que bom estar de volta, já fazia falta! :) Obrigada! (adorei o último parágrafo)
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