sábado, 3 de setembro de 2022

Riqueza de Férias


Para quem as viveu, naturalmente, mas também para os que, através das experiências, do saber e do sentido crítico desses viageiros, podem reconstituir os passos percorridos por aqueles, no prazer da sua leitura, sem as maçadas das deslocações, e no encantamento das reflexões, de prática sublinhando a teoria, com o humor e a sensibilidade que reconhecemos num escritor como Alberto Gonçalves. Uma espécie de maná, no deserto do nosso comodismo, ou de outras naturais limitações.

21 dias pela terra dos bravos e pelas cidades dos progressistas

Em Nova Iorque tudo é caro e chique e padronizado e cansativo. Sei que é o capitalismo a funcionar, mas aborrece-me que os capitalistas em questão ostentem o rosto do “Che” na “t-shirt” de marca.

ALBERTO GONÇALVES

OBSERVADOR, 03 set 2022, 00:216

Após quase quatro anos de ausência, vinte mil quilómetros de avião e cinco mil de carro, regressei de três semanas nos Estados Unidos. Eis o que vi.

Vi o derradeiro avanço da “gentrificação” das cidades, principalmente Nova Iorque, que se tornou de vez um retiro de abonados. O curioso é que os beneficiários não usam a cartola, o monóculo e as polainas da lenda. Não, senhor. Uma breve observação nas zonas residenciais, como o Upper West Side ou a Village devolve-nos um desfile de criaturas saídas das séries da Netflix ou do Disney+: jovens com consciência da moda e profissões “criativas”, afectados, sensíveis e que terminam as frases afirmativas num tom interrogativo e que dá vontade de os agredir com um rodovalho na cabeça. Ou seja, o tipo de criaturas que, se chamadas a fazê-lo, condenam a “gentrificação” por remover a “alma” dos bairros e fingem não perceber que são eles os protagonistas do processo. John Varvatos, o “designer” que já em 2008 abriu uma loja caríssima e inútil no lugar do infecto e saudoso CBGB, o berço do “punk” e da “new-wave”, é um ruidoso defensor de todas as patetices “woke”. Ao som de protestos hipócritas, a “alma” de Manhattan, que só apanhei de raspão vai para duas décadas, sumiu sem deixar rasto nem inspirar culpa. Até os “delis” de fancaria, que haviam substituído os verdadeiros, estão a ceder à praga de cafetarias “orgânicas” e assépticas, onde um reles “espresso” vem com pedigree e custa quatro dólares. Não há espaço para a excentricidade (em São Francisco, diga-se, espaço não falta: no Castro, o bairro gay, vi três homens completamente nus a almoçar numa esplanada) nem para a tradição e o hábito (desde 2018, a Amoeba Records de Los Angeles foi despejada em favor de uma “experiência imersiva” sobre Van Gogh, que para cúmulo desfigurou o edifício de arquitectura “googie”). Em Nova Iorque, fora o tradicional lixo nos passeios e as habituais ratazanas, tudo é caro e chique e padronizado e cansativo. Sei que é o capitalismo a funcionar, mas aborrece-me que os capitalistas em questão ostentem o rosto do “Che” na “t-shirt” de marca.

Vi inúmeras lojas fechadas, umas por estreitamento do horário, outras por estrangulamento da economia. No primeiro caso, ainda em 2018 era facílimo encontrar em Nova Iorque um restaurante aberto de madrugada. Agora, até os coreanos têm horário de encerramento (meia-noite, valha-me Deus). Às dez, salvo por um ou dois pedaços, São Francisco está a dormir. Phoenix, que nunca se notabilizou pela boémia mas hoje é uma megalópolis sem fim, idem. Los Angeles, ibidem. Las Vegas é há muito um pandemónio deprimente. Tomar um café à uma da manhã transformou-se num desafio. Não sei a razão, mas responsabilizo a inclinação deliberada ou fortuita para transformar o mundo num lugar mais triste a cada ano que passa. Pelo contrário, no segundo caso desconfio da causa que levou incontáveis estabelecimentos a fechar definitivamente e a assemelhar zonas prósperas das principais cidades a lugarejos delapidados do Mississippi, com tapumes a vedar a vitrine do que outrora foi uma promessa de negócio. Mais alguém aposta nas brincadeiras a pretexto da “pandemia”?

Vi que as brincadeiras deixaram vasta herança. A reboque das falências e do desemprego, as estatísticas e meia dúzia de cidadãos sortidos contaram-me que o crime urbano subiu imenso nos últimos dois anos. Julgo que a nova susceptibilidade das autoridades às críticas por “excessos”, a beatificação racista das “minorias” e os progressos das drogas sintéticas também não serão alheios à tendência. Ao entardecer e com frequência em pleno dia, em qualquer sítio com mais de cem mil habitantes, há dois zombies a cada esquina. Esclareço que nenhum me atacou, embora alguns me tenham cravado cigarros com sucesso.

Vi que, a contrário dos seus custos, a “pandemia” desapareceu, tirando nos bonacheirões que mantêm a máscara e em certas reservas índias, que mantêm as restrições por inteiro. Os pobres “nativo-americanos” continuam com pavor das doenças dos brancos, por acaso oriundas da China, e continuam a ser manipulados por eles. Amber, uma navajo educadora de infância, informou-me que 10% dos “indígenas” (termo oficial) morreram de Covid. Sem descontarmos a inflação nas contagens, o valor “correcto” é 0,4%, de facto um pouco acima das demais etnias.

Vi, dentro e fora das reservas do Arizona, do Novo México e do Nevada, o culto de Trump em rédea solta. Por toda a parte abundam, à venda e já vendidos, dísticos, camisolas e bonés a solicitar o regresso do empresário à Casa Branca. O entusiasmo é apenas proporcional à repulsa pelo sr. Biden, o taralhouco em funções. Nada é tão americano, no sentido de interessante, quanto um índio montado numa Harley decorada com uma enorme bandeira a declarar “Fuck Brandon” (procurem na net as origens da expressão, mas “Let’s Go Brandon” é uma maneira gentil de insultar o sr. Biden, gentileza que o índio em causa dispensou). Em Oatman, numa parte velhinha da Route 66, tudo excepto os burros selvagens é simbologia republicana. Em Winslow, Arizona, um comércio central de “souvenirs” converteu-se numa casa de propaganda libertária. Perguntei ao dono se tinha clientes democratas. Prendeu um sorriso e respondeu que sim, e que metade saía logo depois de entrar. Eu demorei-me o suficiente para adquirir um par de livros (apolíticos) e um belo chapéu com a “Gadsden flag”.

Vi a segunda melhor coisa que a América tem: americanos. Não conheço lugar em que seja tão fácil encontrar sujeitos assim decentes e cordiais. Basta evitar as principais cidades. Nas “small towns” e na ruralidade pura, as pessoas cumprimentam-nos à toa, puxam conversa com sincero empenho, seguram-nos a porta o tempo necessário e o desnecessário, não buzinam as nossas asneiras rodoviárias, abrandam para entrarmos na estrada, etc. Claro que, na América que o cinema e a televisão nos impingem, a América do sr. Biden e das sinistras corporações “modernas”, estas pessoas ou não aparecem ou aparecem sob a forma de caricaturas, para efeitos de galhofa ou sociologia. Claro que estas pessoas retribuem o desprezo.

Vi, e revi e hei-de rever enquanto puder, a melhor coisa da América: as prodigiosas avarias que a natureza por lá semeou, principalmente no Sudoeste. Nos últimos cento e cinquenta anos, pelo menos, produziram-se milhares de páginas a notar a impossibilidade de descrever semelhantes paisagens. Não contribuo para o rol. Limito-me a confirmar que enfim o pobre cliché da “beleza indescritível” é adequado. Ateu, sempre que atravesso aqueles desfiladeiros, aqueles vales, aquelas “mesas”, aqueles rochedos, aqueles desertos e aquele céu, todos desmesurados, chega-me a suspeita de que o divino afinal existe, e vive ali. E a certeza que dali, à revelia das mudanças do mundo, não sairá.

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COMENTÁRIOS:

Coronavirus corona: Excelente descrição.         Américo Silva: Se a américa nos falha não vamos mudar de religião, inventamos uma verdadeira américa atrás do arco-íris. Nós por cá, tudo bem, encontrei no lixo um livrinho que diz, geografia 9º ano, coitados dos petizes, em vez de ciência, doutrina, e o que diz este catecismo? conta a desgraça dos ceguinhos e deficientes mentais nos países pobres, o risco de um furacão nos levar a casa, uma avalanche nos soterrar,             Américo Silva > Américo Silva: os flagelos da seca, da poluição, do aquecimento global, dos incêndios, da desflorestação. Os adolescentes assim doutrinados ficam logo queixosos, sem vontade de ter filhos, e os que não perdem desde logo o te.são, pensam em for.nicar e usufruir o mais possível dos bens da civilização, antes de se acabar o mundo.                     José Paulo C Castro: É por causa dessa realidade oculta nos media, a da América profunda, que "Brandon is fu***d". O bom senso que fugiu das cidades mantém-se fora dos media.               Paulo Sousa: Li este o texto junto aos Finger Lakes, no Norte do estado de NY, estendido num motel, depois de jantar comida típica americana, que é qualquer coisa aquecida num micro-ondas. Na gaveta de cima da mesa de cabeceira, a “Holly Bible” faz parte da mobília. Estive em NYC, Washington DC e Philadelphia. Concordo com a pura cordialidade de quem vive fora dos grandes aglomerados e com o incómodo que a cultura woke e anti-republicana causa a essas gentes. Notei também no carácter selvagem e quase intocado da natureza numa dimensão a que um europeu não está habituado. Hoje conduzi várias centenas de km em freeways sempre ao lado de uma floresta cerrada. Aqui e ali aparecem salpicas algumas povoações. Deslocar-se por ali noutros tempos sem uma arma seria impensável e isso explicará em parte o grave problema da abundância de armas. Tenho outras notas sobre a emigração dos portugueses, de há muitos, de há poucos anos e de há poucos meses, mas sobre isso irei escrever daqui a uns dias no Delito de Opinião. Gostei especialmente de ler esta crónica do Alberto Gonçalves.           Paulo Silva: Uma crónica simples, de Alberto Gonçalves. Bravo.              Cupid Stunt: Bem vindo e obrigado pelo relato!!                Maria Silva: Uau!!!!!  que relato tão giro da viagem. Adorei. Que bom estar de volta, já fazia falta! :) Obrigada! (adorei o último parágrafo)

 

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