sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Embora se diga


Que o hábito não faz o monge, eu acho que sim, que faz, pois é o que tenho colhido nas minhas mundanais experiências, mais de vista – televisiva, hoje, já lá vai o tempo do conhecimento prático. Mas, como dizia, com irónica ferocidade, o senhor França Amado, bibliotecário do Instituto Francês na Faculdade de Letras de Coimbra, “basta a gravata para distinguir o doutor. Sem gravata não se é doutor” - mesmo que se seja. É certo que era mais naqueles tempos “engravatados”, a gravata tornou-se hoje dispensável, sobretudo nos sítios de trabalho, onde era obrigatória, e já não é, para mostrar quanto realmente se trabalha, sem o pescoço apertado. E até as preferências hodiernas vão muito no sentido da exploração do roto, para se acamaradar melhor com os pobrezinhos, graças à onda de empatia em que vivemos actualmente, por tudo e todos os que se menosprezavam dantes – os do pé descalço e da calça rota, que a juventude e até gente mais adulta de agora resolve dignificar, usando, cristãmente ou rebuscadamente, o roto, na sua roupa inocente.

O Dr. Salles refere-se principalmente, é certo, ao efeito de certos trajes para invocar os espíritos e convencer os “beneficiados” das invocações divinas, praticadas por quem de direito, seja sacerdote ou medium. Embora ele se ria disso, a solenidade requer rituais próprios, quer para convencer os deuses, quer para convencer os que os suplicam, os solenes ornatos são uma mais valia sempre.

 Nem todos pensam assim, é certo. Que o diga o velho Garrinchas do conto do Miguel Torga que, na simplicidade da sua fé, não podendo passar o Natal na Lourosa, por via do frio e da neve que se abatera sobre a montanha a atravessar, acabou por o passar na ermida da Senhora dos Prazeres, escaqueirando o andor, para se aquecer e mais à Nossa Senhora e o seu Menino, que trouxe do altar para a lareira, pois estava um frio de rachar - antes de encetar o seu repasto de pão e presunto, das esmolas que recolhera. Sem formalidades de maior, assumindo mesmo o papel de S. José, embora se sentisse indigno, mas o que era preciso era o conforto distribuído com uma fé generosa.

 SOLENES ORNATOS

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO,  08.09.22

Este texto esteve para se intitular «Trompe l’oeil» ou   «Epatant les innocents» mas lembrei-me de que já somos poucos os que sabemos francês e, vai daí, fiquei-me por algo mais directo.

* * *

Então, já que o princípio não é como devia ser, vai tudo às avessas e começo pela conclusão:

ConclusãoAs Divindades não se deixam enganar e mal vai quem o tente.

* * *

As vestes antigas eram de outras modas e não faria sentido que a nossa actual Primeira Dama se apresentasse num qualquer acto público vestida como a D. Urraca o faria se por cá andasse. Não faltaria quem dissesse que a solenidade se transformava numa mascarada.

Dizem as pinturas antigas que tanto homens como mulheres de elevada condição usavam aquilo a que hoje chamamos saias e o povo usava tangas.  Os sacerdotes egípcios usavam um «chapéu» alto, cilíndrico e que à frente ostentava uma cobra, o símbolo da Divindade invocada nas respectivas solenidades.

Claramente, todo o aparato vestimental tinha como propósito convencer os fiéis de que aquela pessoa assim paramentada possuía o poder de comunicar com a Divindade, o que estava vedado ao comum dos mortais. E os fiéis acreditavam nessa mediunidade.

Hoje, sabemos que essas Divindades do politeísmo eram falsas e que não podia haver mediunidade com algo que, afinal, era falso. Mas as pessoas impressionavam-se com as solenidades, a simbologia de gestos, vestes, ornatos e preces.

* * *

Nos primeiros anos deste século, morreu uma das minhas inquilinas cujo único familiar era o Patriarca de uma Igreja de rito ortodoxo a quem tive que transmitir a infausta notícia e perguntar qual o destino a dar ao recheio do apartamento. Temas bem prosaicos para um Patriarca. Fiz-me anunciar com alguns dias de antecedência para que Sua Eminência tivesse tempo de pensar em assuntos tão vulgares e no dia aprazado compareci no templo uns minutos antes da hora combinada e não me fizeram esperar: abriu-se uma porta igual a qualquer porta de casa antiga na parte alta de Alfama, em Lisboa. Depara-se-me uma sala relativamente pequena e apenas iluminada por três ou quatro velas. O suficiente para me aperceber de um vulto mediano envergando uma veste longa negra e com decorações (bordados?) doirados. Na cabeça, um gorro do feitio dos cofiós, negro e com decoração doirada. Tive alguma dificuldade em me adaptar à escuridão e foi no último instante que retive alguma manifestação de surpresa (alguma gargalhada) pelo espectáculo que inesperadamente se me deparava. Logo me imaginei num cerimonial de veneração a Amon ou Zaratustra mas contive-me e comportei-me com o respeito devido a fé alheia. Tratámos dos assuntos que lá me tinham levado, despedimo-nos cerimoniosamente e regressei ao século XXI.

* * *

Creio que o misticismo não carece de balandraus, gorros nem casulas ou tiaras. Mais creio que todo esse «décor» serve apenas para impressionar (enganar) os inocentes mortais pois Deus e os Santos de altar não se deixam enganar.

Bem sei que a todo o cerimonial religioso cumpre o respeito pelas Divindades invocadas e, às gentes cumpre um formalismo igualmente respeitoso pelo que, não aceitando indumentárias desrespeitosas, também creio que os celebrantes e a assembleia de fiéis deviam trajar com formalismo da época e sem ornatos enganadores. A fé não se confunde com balandraus.

A conclusão está no quase início do presente texto.

8 de Setembro de 2022

 Tags: avulsos

COMENTÁRIOS:

 Adriano Miranda Lima  08.09.2022  23:24; É fantástico como o Dr. Salles da Fonseca consegue variar os temas dos textos que nos dá o prazer de ler aqui. Ou é o sol que nasce e o leva para as longitudes mais distantes do planeta (lorosae), ou é o rumor do mar em que navega o nosso inconsciente colectivo, ou é a interrogação sobre os desvarios e desencontros do homem que não atina com a bússola do seu destino, ou é... enfim, tudo e mais alguma coisa que o inspira e serve como tema de reflexão e oportunidade para estimular o diálogo neste espaço, A BEM DA NACÃO. Apreciei o tema deste post, "Os solenes ornatos". De francês, de facto, só uns poucos, porque o inglês é que hoje dá cartas. Considero que acertou em cheio nas considerações e na conclusão. Desde sempre, e eu era ainda rapaz imberbe, me intrigou o aparato desses "balandraus", artefactos e ostentações dos sacerdotes e dos templos. Ainda assim, dá-se desconto aos que em épocas remotas tentavam com o aparato da vestimenta e da ornamentação dos seus corpos enganar os pobres de espírito e outros que nem eram assim tão carenciados de espírito. Agora, que o ludíbrio continue em séculos de mais luz para os espíritos, é que causa engulho. Mas, olhe, Dr. Salles, que a falsidade não era flagrante só com o politeísmo. O monoteísmo católico não foi e continua a ser tão pródigo no "espantalhaço" como outros, se é que até não os supera? Sou agnóstico e não frequento qualquer templo religioso. Mas, como me sinto cristão nos princípios e na filosofia moral que o enforma, a ter de frequentar uma igreja seria a dos protestantes. Eles apenas utilizam uma sala com cadeiras e um púlpito, sem qualquer ornamento a não ser uma simples cruz na parede ao fundo. E o pastor se veste com roupas normais, assim como as ovelhas. Ora, com os islâmicos é a mesma coisa, não é verdade? Para esses dois cultos, Deus é invisível e não se pode ter a veleidade de o fabricar em barro ou madeira, o que consideram um sacrilégio. Assim, não se pode dizer que queiram enganar alguém com o aparato exterior. Acredite quem quiser, devem eles pensar. Quanto aos católicos romanos, eu até admito que o actual Papa muito gostaria de acabar com a riqueza espanpanante das vestimentas e de tudo o que ornamenta os espaços em que se movimentam. Mas ele sabe que há toda uma corte que se sente confortável nos seus palácios e que acredita que vão continuar a enganar os fiéis ainda por secula seculorum. Não se dão conta que desde o primeiro momento Deus se deve rir às gargalhadas para não se escandalizar com tanto espalhafato?

 Adriano Miranda Lima  09.09.2022  20:58: Como os textos do Dr. Salles da Fonseca têm pano para muita manga, é natural que os comentários se desdobrem ou procurem outras derivações. Diz o autor que o misticismo não devia necessitar de balandraus para convencer os fiéis. Completamente de acordo. Mas ocorre-me perguntar se o homem precisa também de misticismo para viver ou para sobreviver neste planeta. Ou até quando? Quando, e se, o homem concluir que a percepção do mundo afinal não transcende o raciocínio lógico da sua capacidade intelectual, os balandraus passarão a simples peças de museu. E os novos enfeites só serão necessários para desfiles e bailes carnavalescos. Assim já deve ter entendido o adepto do Benfica que se mascara de bispo para ir aos jogos do seu clube. Adriano Lima

 Adriano Miranda Lima  10.09.2022  14:15: Com o comentário anterior a respeito do misticismo, não quis ofender quem frequenta "religiosamente" as igrejas e olha embevecidamente para os "ornatos" que os sacerdotes julgam necessários para a sua missão de intermediários entre o céu e a terra. Assim como se valoriza a liberdade no campo da política, também tem de se valorizar a liberdade de opção religiosa. Mas repare-se que esta só foi adquirida e consagrada com o triunfo do Liberalismo e das democracias. Recue-se aos tempos da Inquisição e veja-se o que sofreram os que não professavam o Catolicismo: a prisão; a tortura; a fogueira. E olhe-se também para alguns países islâmicos da actualidade, neste século XXI em que vivemos, e veja-se o que sofrem os fiéis de outros credos, principalmente os cristãos. Portanto, saudemos a liberdade religiosa que vive paredes-meias com a liberdade política. O meu reparo contido no comentário anterior, suscitado pela reflexão que em boa hora o Dr. Salles da Fonseca nos proporcionou, apenas pretende questionar se precisamos de grandes "ornatos" para acreditar na transcendência ou para, não acreditando nela, percebermos o sentido da nossa existência e aperfeiçoarmos a espiritualidade da nossa condição humana. Um abraço. Adriano Lima


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