Que o hábito não faz o monge, eu acho
que sim, que faz, pois é o que tenho colhido nas minhas mundanais experiências,
mais de vista – televisiva, hoje, já lá vai o tempo do conhecimento prático. Mas,
como dizia, com irónica ferocidade, o senhor França Amado, bibliotecário do
Instituto Francês na Faculdade de Letras de Coimbra, “basta a gravata para
distinguir o doutor. Sem gravata não se é doutor” - mesmo que se seja. É certo
que era mais naqueles tempos “engravatados”, a gravata tornou-se hoje dispensável,
sobretudo nos sítios de trabalho, onde era obrigatória, e já não é, para mostrar
quanto realmente se trabalha, sem o pescoço apertado. E até as preferências hodiernas
vão muito no sentido da exploração do roto, para se acamaradar melhor com os
pobrezinhos, graças à onda de empatia em que vivemos actualmente, por tudo e
todos os que se menosprezavam dantes – os do pé descalço e da calça rota, que a
juventude e até gente mais adulta de agora resolve dignificar, usando,
cristãmente ou rebuscadamente, o roto, na sua roupa inocente.
O Dr. Salles refere-se principalmente, é
certo, ao efeito de certos trajes para invocar os espíritos e convencer os
“beneficiados” das invocações divinas, praticadas por quem de direito, seja
sacerdote ou medium. Embora ele se ria disso, a solenidade requer rituais
próprios, quer para convencer os deuses, quer para convencer os que os
suplicam, os solenes ornatos são uma mais valia sempre.
Nem todos pensam assim, é certo. Que o diga o
velho Garrinchas do conto do Miguel Torga que, na simplicidade da sua fé, não
podendo passar o Natal na Lourosa, por via do frio e da neve que se abatera
sobre a montanha a atravessar, acabou por o passar na ermida da Senhora dos
Prazeres, escaqueirando o andor, para se aquecer e mais à Nossa Senhora e o seu
Menino, que trouxe do altar para a lareira, pois estava um frio de rachar - antes
de encetar o seu repasto de pão e presunto, das esmolas que recolhera. Sem
formalidades de maior, assumindo mesmo o papel de S. José, embora se sentisse
indigno, mas o que era preciso era o conforto distribuído com uma fé generosa.
HENRIQUE
SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO,
08.09.22
Este
texto esteve para se intitular «Trompe l’oeil» ou «Epatant les
innocents» mas lembrei-me de que já somos poucos os que sabemos francês e, vai
daí, fiquei-me por algo mais directo.
*
* *
Então,
já que o princípio não é como devia ser, vai tudo às avessas e começo pela
conclusão:
Conclusão –
As Divindades não se deixam enganar e mal vai quem o tente.
*
* *
As
vestes antigas eram de outras modas e não faria sentido que a nossa actual
Primeira Dama se apresentasse num qualquer acto público vestida como a D.
Urraca o faria se por cá andasse. Não faltaria quem dissesse que a solenidade
se transformava numa mascarada.
Dizem
as pinturas antigas que tanto homens como mulheres de elevada condição
usavam aquilo a que hoje chamamos saias e o povo usava tangas. Os
sacerdotes egípcios usavam um «chapéu» alto, cilíndrico e que à frente
ostentava uma cobra, o símbolo da Divindade invocada nas respectivas
solenidades.
Claramente,
todo o aparato vestimental tinha como propósito convencer os fiéis de que
aquela pessoa assim paramentada possuía o poder de comunicar com a Divindade, o
que estava vedado ao comum dos mortais. E os fiéis acreditavam nessa
mediunidade.
Hoje, sabemos que essas Divindades do
politeísmo eram falsas e que não podia haver mediunidade com algo que, afinal,
era falso. Mas as pessoas impressionavam-se com as solenidades, a simbologia de
gestos, vestes, ornatos e preces.
*
* *
Nos
primeiros anos deste século, morreu uma das minhas inquilinas cujo único familiar era o Patriarca de uma Igreja de
rito ortodoxo a quem tive que transmitir a infausta notícia e perguntar qual o
destino a dar ao recheio do apartamento. Temas bem prosaicos para um Patriarca.
Fiz-me anunciar com alguns dias de antecedência para que Sua Eminência tivesse
tempo de pensar em assuntos tão vulgares e no dia aprazado compareci no templo
uns minutos antes da hora combinada e não me fizeram esperar: abriu-se uma
porta igual a qualquer porta de casa antiga na parte alta de Alfama, em Lisboa.
Depara-se-me uma sala relativamente pequena e apenas iluminada por três ou
quatro velas. O suficiente para me aperceber de um vulto mediano envergando uma
veste longa negra e com decorações (bordados?) doirados. Na cabeça, um
gorro do feitio dos cofiós, negro e com decoração doirada. Tive alguma
dificuldade em me adaptar à escuridão e foi no último instante que retive
alguma manifestação de surpresa (alguma gargalhada) pelo espectáculo que
inesperadamente se me deparava. Logo me imaginei num cerimonial de veneração a
Amon ou Zaratustra mas contive-me e comportei-me com o respeito devido a fé
alheia. Tratámos dos assuntos que lá me tinham levado, despedimo-nos
cerimoniosamente e regressei ao século XXI.
*
* *
Creio
que o misticismo não carece de balandraus, gorros nem casulas ou tiaras. Mais
creio que todo esse «décor» serve apenas para impressionar (enganar) os
inocentes mortais pois Deus e os Santos de altar não se deixam enganar.
Bem
sei que a todo o cerimonial religioso cumpre o respeito pelas Divindades
invocadas e, às gentes cumpre um formalismo igualmente respeitoso pelo que, não
aceitando indumentárias desrespeitosas, também creio que os celebrantes e a
assembleia de fiéis deviam trajar com formalismo da época e sem ornatos
enganadores. A fé não se confunde com balandraus.
A
conclusão está no quase início do presente texto.
8
de Setembro de 2022
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avulsos
COMENTÁRIOS:
Adriano
Miranda Lima 08.09.2022 23:24; É fantástico como o Dr.
Salles da Fonseca consegue variar os temas dos textos que nos dá o prazer de
ler aqui. Ou é o sol que nasce e o leva para as longitudes mais distantes do
planeta (lorosae), ou é o rumor do mar em que navega o nosso inconsciente
colectivo, ou é a interrogação sobre os desvarios e desencontros do homem que
não atina com a bússola do seu destino, ou é... enfim, tudo e mais alguma coisa
que o inspira e serve como tema de reflexão e oportunidade para estimular o
diálogo neste espaço, A BEM DA NACÃO. Apreciei o tema deste post, "Os
solenes ornatos". De francês, de facto, só uns poucos, porque o inglês é
que hoje dá cartas. Considero que acertou em cheio nas considerações e na
conclusão. Desde sempre, e eu era ainda rapaz imberbe, me intrigou o aparato
desses "balandraus", artefactos e ostentações dos sacerdotes e dos
templos. Ainda assim, dá-se desconto aos que em épocas remotas tentavam com o
aparato da vestimenta e da ornamentação dos seus corpos enganar os pobres de
espírito e outros que nem eram assim tão carenciados de espírito. Agora, que o
ludíbrio continue em séculos de mais luz para os espíritos, é que causa
engulho. Mas, olhe, Dr. Salles, que a falsidade não era flagrante só com o
politeísmo. O monoteísmo católico não foi e continua a ser tão pródigo no
"espantalhaço" como outros, se é que até não os supera? Sou
agnóstico e não frequento qualquer templo religioso. Mas, como me sinto cristão
nos princípios e na filosofia moral que o enforma, a ter de frequentar uma
igreja seria a dos protestantes. Eles apenas utilizam uma sala com cadeiras e
um púlpito, sem qualquer ornamento a não ser uma simples cruz na parede ao
fundo. E o pastor se veste com roupas normais, assim como as ovelhas. Ora, com os islâmicos é a mesma coisa, não é verdade?
Para esses dois cultos, Deus é invisível e não se pode ter a veleidade de o
fabricar em barro ou madeira, o que consideram um sacrilégio. Assim, não se
pode dizer que queiram enganar alguém com o aparato exterior. Acredite quem
quiser, devem eles pensar. Quanto aos católicos romanos, eu até admito que o
actual Papa muito gostaria de acabar com a riqueza espanpanante das vestimentas
e de tudo o que ornamenta os espaços em que se movimentam. Mas ele sabe que há
toda uma corte que se sente confortável nos seus palácios e que acredita que
vão continuar a enganar os fiéis ainda por secula seculorum. Não se dão conta
que desde o primeiro momento Deus se deve rir às gargalhadas para não se
escandalizar com tanto espalhafato?
Adriano Miranda Lima 09.09.2022 20:58:
Como os textos do Dr. Salles da Fonseca têm pano para
muita manga, é natural que os comentários se desdobrem ou procurem outras
derivações. Diz o autor que o misticismo não devia necessitar de balandraus
para convencer os fiéis. Completamente de acordo. Mas ocorre-me perguntar se o
homem precisa também de misticismo para viver ou para sobreviver neste planeta.
Ou até quando? Quando, e se, o homem concluir que a percepção do mundo afinal
não transcende o raciocínio lógico da sua capacidade intelectual, os balandraus
passarão a simples peças de museu. E os novos enfeites só serão necessários
para desfiles e bailes carnavalescos. Assim já deve ter entendido o adepto do
Benfica que se mascara de bispo para ir aos jogos do seu clube. Adriano
Lima
Adriano Miranda Lima 10.09.2022 14:15:
Com o comentário anterior a respeito do misticismo,
não quis ofender quem frequenta "religiosamente" as igrejas e olha
embevecidamente para os "ornatos" que os sacerdotes julgam
necessários para a sua missão de intermediários entre o céu e a terra. Assim
como se valoriza a liberdade no campo da política, também tem de se valorizar a
liberdade de opção religiosa. Mas repare-se que esta só foi adquirida e
consagrada com o triunfo do Liberalismo e das democracias. Recue-se aos tempos
da Inquisição e veja-se o que sofreram os que não professavam o Catolicismo: a
prisão; a tortura; a fogueira. E olhe-se também para alguns países islâmicos da
actualidade, neste século XXI em que vivemos, e veja-se o que sofrem os fiéis
de outros credos, principalmente os cristãos. Portanto, saudemos a liberdade
religiosa que vive paredes-meias com a liberdade política. O meu reparo contido
no comentário anterior, suscitado pela reflexão que em boa hora o Dr. Salles da
Fonseca nos proporcionou, apenas pretende questionar se precisamos de grandes
"ornatos" para acreditar na transcendência ou para, não acreditando
nela, percebermos o sentido da nossa existência e aperfeiçoarmos a
espiritualidade da nossa condição humana. Um abraço. Adriano Lima
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