Para os Ucranianos parece, ao que se tem
visto, que essa coisa de Família ainda existe. E de Pátria também. Nós por cá…
vamos com as modas. De toda a maneira, a família é necessária nos primeiros
tempos. E mesmo nos seguintes. Mas os individualismos estão cada vez mais
exacerbados, não há dúvida. O “Amor” tout
court é que tende a diluir-se, na
estranheza dos egocentrismos, ou na estranheza apenas … Será?
Um excelente texto de Patrícia Fernandes.
A
abolição da família – Parte II
É por termos uma família que fazemos
muitas das coisas que fazemos, nomeadamente todo o tipo de sacrifícios para lhe
deixarmos um mundo melhor, seja uma vida mais confortável, seja um regime mais
livre.
PATRÍCIA FERNANDES,
OBSERVADOR, 12 set 2022 Professora
da Universidade da Beira Interior
1É precisamente por termos uma filha
A
definição de família pode dar origem a múltiplos debates filosóficos, mas a
literatura geralmente ajuda nas tarefas difíceis. É um momento literário deste
tipo que encontramos em O teu rosto será o último, quando João Ricardo Pedro descreve
a discussão que a resistência ao Estado Novo gera entre marido e mulher:
«“Vamos
embora. Podemos ir embora. Temos amigos na França, na Alemanha, eu tenho
família em Espanha, é um saltinho, pegamos na nossa filha e saímos daqui.” Ele
argumentava que a Espanha ainda era pior, e que estava quase. Que o regime
estava prestes a ruir. Que existiam movimentações externas. Pressões
diplomáticas. Os Estados Unidos, a Inglaterra. Era uma questão de meses.
Acabavam a discutir. “Temos uma filha”, dizia a minha mãe a chorar. “É
precisamente por termos uma filha.”»
É precisamente por termos uma filha.
Ou, mais genericamente, é por termos uma família que fazemos muitas das coisas
que fazemos, nomeadamente, todo o tipo de sacrifícios para lhe deixarmos um
mundo melhor, seja uma vida mais confortável e com menor sofrimento, seja um
regime político mais democrático e livre. Até muito recentemente na história da humanidade, a família
constituía o primeiro ponto a partir do qual nos pensávamos no mundo – o entendimento
individualista do homem é um produto da modernidade, e o individualismo
exacerbado um subproduto muito recente.
Na filosofia peripatética, este aspecto é evidente: a perspectiva
analítica de Aristóteles encontra na família a célula básica da organização
social. Ela
não é autossubsistente, o que levou à constituição de tribos e aldeias, por sua
vez reunidas em poleis, que seriam a forma comunitária perfeita – mas é em
torno da família que se organiza a oikonomía e se cria uma ampla rede
de deveres e obrigações que liga os seus membros.
Há,
naturalmente, razões
biológicas para isto
e a psicologia evolutiva (área polémica) tem oferecido contributos relevantes para a compreensão do nosso
comportamento: a família
é fundamental para a reprodução dos nossos genes e representa, nessa medida, a
nossa sobrevivência para lá da morte. Seria
este gene egoísta, para usar a expressão de Richard Dawkins, a
justificar os imensos sacrifícios que estamos dispostos a fazer pelos nossos
filhos (considerando
que, enquanto espécie, temos baixos índices de propagação), mas também as responsabilidades que estamos
dispostos a assumir pela família mais alargada, nomeadamente pelos nossos
sobrinhos e primos, que ainda nos carregam geneticamente.
Encontraríamos a mesma lógica nas
grandes religiões monoteístas: a proteção da família e a condenação do aborto, dos
métodos de contraceção e da homossexualidade resultariam da necessidade de
propagação dessas religiões em contextos altamente competitivos. Quanto mais os crentes se reproduzem, maior é a
probabilidade de sobrevivência dessa fé, pelo que as suas regras devem proteger
as possibilidades de reprodução.
E a própria instituição
do casamento deveria ser entendida historicamente como um mecanismo
de proteção genética: se o princípio de fidelidade garantiria ao marido a paternidade real da
descendência, a impossibilidade
de dissolução garantiria
à mulher que o homem continuaria a providenciar a sua vida e a dos seus filhos
para lá do término da sua fertilidade, quando o homem poderia procurar novas
parceiras para expandir os seus genes.
Desta
forma, a família
estava ligada de forma inexorável à nossa sobrevivência, mesmo quando nos pensávamos enquanto indivíduos. E as
nossas obrigações presentes correspondiam a obrigações futuras das
próximas gerações em relação a nós.
2A transformação familiar
O século XX veio,
contudo, transformar radicalmente a instituição familiar e a sua dinâmica, com
particular contributo de dois fatores: o
desenvolvimento tecnológico e a criação do estado
social.
O
impacto da tecnologia na família está proficuamente estudado, em especial
quanto à reformulação dos papéis desempenhados pelos seus membros. Mais do
que as máquinas de lavar, terá sido o fogão
a gás a libertar
as mulheres para o desempenho de outras tarefas (uma vez que acender
e manter o fogo constituía uma missão demorada e contínua), e todos os novos
aparelhos domésticos avançaram na mesma lógica. A progressiva emancipação da mulher face às tarefas
domésticas libertou-a para uma vida profissional e, com isso, toda a
organização familiar de cuidado e educação dos filhos se revolucionou. Simultaneamente, os avanços científicos permitiram
dispositivos de controlo
de natalidade, que
passou a ser criteriosamente dominado
pela mulher.
Mas a tecnologia ofereceu
igualmente novas garantias de sobrevivência. A esperança média de vida teve um crescimento contínuo ao longo do último
século, enquanto a mortalidade
infantil caiu a
pique, levando à diminuição do número de filhos. A ideia de sobrevivência
genética foi-se adaptando e as últimas décadas têm oferecido uma reflexão
de cariz mais individualista: a grande ambição já não é a de sobrevivermos na
nossa descendência, mas a de avançarmos
para alguma forma de transição pós-humana. A aspiração humana é agora a de viver
para sempre enquanto indivíduo,
seja pela substituição deste corpo biológico por um corpo
mecânico ou eletrónico, seja pela
transição para uma espécie de
equipamento de memória externa. Se a modernidade se caracteriza pelo entendimento da natureza como um objecto nas nossas
mãos (pensemos em Francis Bacon, o filósofo, e o seu Novum Organum,
de 1620), o
individualismo exacerbado da contemporaneidade assume em pleno a sua tentativa
de emancipação biológica.
Importa
recordar que este individualismo moderno resulta directamente da
criação do estado moderno: é a
modernidade que estabelece a noção abstracta de poder que nos coloca como
agentes individuais de direitos e deveres, pelo que o desenvolvimento e
crescimento do estado significou sempre um aprofundamento desse individualismo.
Mas será a função
social do estado a abalar
radicalmente a lógica familiar: as obrigações que tradicionalmente
cabiam à família – previdência, apoio, cuidado – foram transferidas para
instituições estatais, o que naturalmente dispensa a necessidade de
descendência e fragiliza as relações familiares mais amplas.
Este
aspecto, quase sempre negligenciado, é evidente nos países onde o estado social
é mais amplo (como nos admirados países nórdicos): onde se acredita que os serviços de
previdência social vão assegurar as nossas necessidades presentes e futuras,
regista-se um decréscimo da natalidade, uma desvalorização do casamento e fenómenos
agravados de solidão nos mais velhos. Um estado mais amplo tende a enfraquecer
as redes de solidariedade familiares e comunitárias, ao mesmo tempo que nos
torna menos autónomos e mais individualistas.
3A fuga total
O
caminho percorrido conduziu-nos, não inesperadamente, a um individualismo agravado, em que a
família parece
agora representar todos os males do mundo e do passado – pelo que dela nos devemos libertar se queremos
ser verdadeiramente livres e devidamente progressistas. Ao invés de nos concebermos a partir da família e
das obrigações recíprocas que a alimentam, somos constantemente bombardeados
com uma visão da família do tipo da de Alexander Portnoy, naquele que é, provavelmente, um dos melhores romances
do século XX norte-americano:
“Para que servem, no fundo – pergunto
eu – todas essas regras e proibições dietéticas, senão para nos dar a nós,
criancinhas judias, o hábito da repressão? Vai-te habituando, meu querido,
habitua-te, sim, habitua-te. A inibição não cai assim do céu, sabe – requer
paciência, requer concentração, requer um pai ou uma mãe dedicados e cheios de
espírito de sacrifício e uma criancinha esforçada e atenta para criar, no
espaço de poucos anos, um ser humano verdadeiramente tolhido e servil.”
Essa
demonização da família transporta-nos para uma realidade alternativa, na qual estaríamos marcados, como
Portnoy, “da cabeça aos pés pelas minhas repressões, como um autêntico mapa das
estradas. As auto-estradas da vergonha, da inibição e do medo
atravessam-me o corpo todo.” E se não
podemos negar que a realidade por vezes assume vestes abomináveis, em justiça
temos de reconhecer o carácter excepcionalíssimo dessas circunstâncias.
Decisões
como a recente Recomendação do
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre o processo de Consentimento Informado
em menores de idade, que visa ampliar a autonomia dos adolescentes e
recusa, nessa medida, o direito à curiosidade por parte dos pais, são sintoma
do modo individualista do nosso tempo, mas partem de uma noção malfazeja de família. Como se os interesses, as obrigações e, sim, a
curiosidade não decorressem desse laço insolúvel que nos liga à família e que
leva os pais a quererem o bem dos seus filhos e os filhos a cuidarem dos pais
quando estes são mais velhos. Partir de uma consideração autonomista e individualista
do adolescente condenar-nos-á a uma sociedade de adultos egoístas e idosos
abandonados.
É
este espírito do tempo que tem oferecido campo fértil para uma cultura
de queerização, em
crescimento fulgurante nas gerações mais jovens. Na tentativa de desfazer no ar tudo o que é sólido,
já não basta a essa cultura a fuga total que Édouard Louis descreve em Para Acabar de
Vez com Eddy Bellegueule. Para ser Édouard, Édouard tentou
“acabar de vez” com Eddy, isto é, com o seu passado, as suas raízes, a sua
família. Como nos diz em História da violência:
“Os
estudos, a ideia de estudar tinha surgido muito mais tarde, quando compreendi
que esse seria o único caminho possível, ou pelo menos o único caminho que me
permitiria afastar-me não só geograficamente, mas também simbolicamente,
socialmente, e, portanto, totalmente, do meu passado. (…) Só os estudos
poderiam permitir-me uma fuga total.” Mas
Édouard Louis sabe que esta fuga é ilusória. Da mesma forma que não podemos
emanciparmo-nos da natureza e da biologia, não nos podemos libertar da nossa
família e do nosso passado e é por isso que os seus livros revolvem
continuamente em torno dessa família e desse passado. Crescer é
o processo de descobrir a ilusão da fuga total, mas trata-se de um caminho de
amadurecimento pessoal e que tem de ser percorrido individualmente.
A cultura de queerização quer,
no entanto, mais do que esta tentativa de fuga individual e é aí que reside o
seu perigo: nascida do individualismo exacerbado da última década, o que se
pretende aqui, sob as vestes de um novo vocabulário e uma nova linguagem, é
a abolição social da família – com o objectivo claro de nos fazer
esquecer de que é nela que reside a nossa identidade e a nossa maior
possibilidade de liberdade.
POLITICAMENTE
CORRECTO SOCIEDADE FAMÍLIA LIFESTYLE COMPORTAMENTO
COMENTÁRIOS:
João Dias: Graças a Deus, há quem esteja de guarda nesta guerra sem
quartel contra a família. Muito obrigado Professora
Patrícia Fernandes. Francisco Tavares de
Almeida: Mais uma vez, obrigado por
este excelente artigo em que a erudição é meramente acessória, embora uma
valorização. De facto, as duas vertentes mais visíveis - mas não as únicas - são
o arrancar dos jovens à educação familiar para os submeter a lavagens de
cérebro na escola, e o encorajamento "de facto" ao abandono dos
velhos em depósitos pré-tumulares. A coincidência do primeiro ser
uma violação directa da nossa constituição (e da DUHD) e do PR ser um
ex-professor de direito constitucional, é isso mesmo, uma coincidência(*). (*)
Coincidências são raras. Em política não existem.
NOTAS DA INTERNET:
A teoria queer (do inglês: queer
theory) é uma teoria sobre
o género que afirma que a orientação sexual e a identidade
sexual ou de género dos indivíduos são
o resultado de um constructo social e que, portanto, não
existem papéis sexuais essencial ou biologicamente inscritos
na natureza humana, antes formas socialmente
variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. Não há uma definição
genericamente aceita para esta corrente de pesquisa acadêmica e forma
particular de política pós-identitária. Os estudos queer constituem
um grande e variado de empreendimentos dispersos por áreas como os estudos
culturais, a sociologia da sexualidade humana, antropologia social, psicologia, educação, filosofia, artes, entre outras. De
uma forma geral, é possível afirmar que a teoria queer busca ir além
das teorias baseadas na oposição homens vs. mulheres e também aprofundar os
estudos sobre minorias sexuais (bissexuais, gays, lésbicas, transgêneros)
dando maior atenção aos processos sociais amplos e relacionados que sexualizam
a sociedade como
um todo de forma a heterossexualizar e/ou homossexualizar instituições, discursos, direitos.
A teoria queer propõe explicitar e analisar esses processos a partir
de uma perspectiva comprometida com aqueles socialmente estigmatizados,
portanto dando maior atenção à formação de identidades sociais normais ou
"desviantes" e nos processos de formação de sujeitos do desejo
classificados em legítimos e ilegítimos. Neste sentido, a teoria queer é
bem distinta dos estudos gays e lésbicos, pois considera que estas culturas
sexuais foram normalizadas e não apontam para a mudança social. Daí o interesse
em estudar a travestilidade, a transgeneridade e
a intersexualidade,
mas também culturas sexuais não-hegemônicas caracterizadas pela subversão ou
rompimento com normas socialmente prescritas de comportamento sexual e/ou
amoroso.
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