quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Não vejo isso na Guerra da Ucrânia


Para os Ucranianos parece, ao que se tem visto, que essa coisa de Família ainda existe. E de Pátria também. Nós por cá… vamos com as modas. De toda a maneira, a família é necessária nos primeiros tempos. E mesmo nos seguintes. Mas os individualismos estão cada vez mais exacerbados, não há dúvida. O “Amor” tout court  é que tende a diluir-se, na estranheza dos egocentrismos, ou na estranheza apenas … Será?

Um excelente texto de Patrícia Fernandes.

A abolição da família – Parte II

É por termos uma família que fazemos muitas das coisas que fazemos, nomeadamente todo o tipo de sacrifícios para lhe deixarmos um mundo melhor, seja uma vida mais confortável, seja um regime mais livre.

PATRÍCIA FERNANDES,

OBSERVADOR, 12 set 2022 Professora da Universidade da Beira Interior

1É precisamente por termos uma filha

A definição de família pode dar origem a múltiplos debates filosóficos, mas a literatura geralmente ajuda nas tarefas difíceis. É um momento literário deste tipo que encontramos em O teu rosto será o último, quando João Ricardo Pedro descreve a discussão que a resistência ao Estado Novo gera entre marido e mulher:

«“Vamos embora. Podemos ir embora. Temos amigos na França, na Alemanha, eu tenho família em Espanha, é um saltinho, pegamos na nossa filha e saímos daqui.” Ele argumentava que a Espanha ainda era pior, e que estava quase. Que o regime estava prestes a ruir. Que existiam movimentações externas. Pressões diplomáticas. Os Estados Unidos, a Inglaterra. Era uma questão de meses. Acabavam a discutir. “Temos uma filha”, dizia a minha mãe a chorar. “É precisamente por termos uma filha.”»

É precisamente por termos uma filha. Ou, mais genericamente, é por termos uma família que fazemos muitas das coisas que fazemos, nomeadamente, todo o tipo de sacrifícios para lhe deixarmos um mundo melhor, seja uma vida mais confortável e com menor sofrimento, seja um regime político mais democrático e livre. Até muito recentemente na história da humanidade, a família constituía o primeiro ponto a partir do qual nos pensávamos no mundo – o entendimento individualista do homem é um produto da modernidade, e o individualismo exacerbado um subproduto muito recente.

Na filosofia peripatética, este aspecto é evidente: a perspectiva analítica de Aristóteles encontra na família a célula básica da organização social. Ela não é autossubsistente, o que levou à constituição de tribos e aldeias, por sua vez reunidas em poleis, que seriam a forma comunitária perfeita – mas é em torno da família que se organiza a oikonomía e se cria uma ampla rede de deveres e obrigações que liga os seus membros.

Há, naturalmente, razões biológicas para isto e a psicologia evolutiva (área polémica) tem oferecido contributos relevantes para a compreensão do nosso comportamento: a família é fundamental para a reprodução dos nossos genes e representa, nessa medida, a nossa sobrevivência para lá da morte. Seria este gene egoísta, para usar a expressão de Richard Dawkins, a justificar os imensos sacrifícios que estamos dispostos a fazer pelos nossos filhos (considerando que, enquanto espécie, temos baixos índices de propagação), mas também as responsabilidades que estamos dispostos a assumir pela família mais alargada, nomeadamente pelos nossos sobrinhos e primos, que ainda nos carregam geneticamente.

Encontraríamos a mesma lógica nas grandes religiões monoteístas: a proteção da família e a condenação do aborto, dos métodos de contraceção e da homossexualidade resultariam da necessidade de propagação dessas religiões em contextos altamente competitivos. Quanto mais os crentes se reproduzem, maior é a probabilidade de sobrevivência dessa fé, pelo que as suas regras devem proteger as possibilidades de reprodução.

E a própria instituição do casamento deveria ser entendida historicamente como um mecanismo de proteção genética: se o princípio de fidelidade garantiria ao marido a paternidade real da descendência, a impossibilidade de dissolução garantiria à mulher que o homem continuaria a providenciar a sua vida e a dos seus filhos para lá do término da sua fertilidade, quando o homem poderia procurar novas parceiras para expandir os seus genes.

Desta forma, a família estava ligada de forma inexorável à nossa sobrevivência, mesmo quando nos pensávamos enquanto indivíduos. E as nossas obrigações presentes correspondiam a obrigações futuras das próximas gerações em relação a nós.

2A transformação familiar

O século XX veio, contudo, transformar radicalmente a instituição familiar e a sua dinâmica, com particular contributo de dois fatores: o desenvolvimento tecnológico e a criação do estado social.

O impacto da tecnologia na família está proficuamente estudado, em especial quanto à reformulação dos papéis desempenhados pelos seus membros. Mais do que as máquinas de lavar, terá sido o fogão a gás a libertar as mulheres para o desempenho de outras tarefas (uma vez que acender e manter o fogo constituía uma missão demorada e contínua), e todos os novos aparelhos domésticos avançaram na mesma lógica. A progressiva emancipação da mulher face às tarefas domésticas libertou-a para uma vida profissional e, com isso, toda a organização familiar de cuidado e educação dos filhos se revolucionou. Simultaneamente, os avanços científicos permitiram dispositivos de controlo de natalidade, que passou a ser criteriosamente dominado pela mulher.

Mas a tecnologia ofereceu igualmente novas garantias de sobrevivência. A esperança média de vida teve um crescimento contínuo ao longo do último século, enquanto a mortalidade infantil caiu a pique, levando à diminuição do número de filhos. A ideia de sobrevivência genética foi-se adaptando e as últimas décadas têm oferecido uma reflexão de cariz mais individualista: a grande ambição já não é a de sobrevivermos na nossa descendência, mas a de avançarmos para alguma forma de transição pós-humana. A aspiração humana é agora a de viver para sempre enquanto indivíduo, seja pela substituição deste corpo biológico por um corpo mecânico ou eletrónico, seja pela transição para uma espécie de equipamento de memória externa. Se a modernidade se caracteriza pelo entendimento da natureza como um objecto nas nossas mãos (pensemos em Francis Bacon, o filósofo, e o seu Novum Organum, de 1620), o individualismo exacerbado da contemporaneidade assume em pleno a sua tentativa de emancipação biológica.

Importa recordar que este individualismo moderno resulta directamente da criação do estado moderno: é a modernidade que estabelece a noção abstracta de poder que nos coloca como agentes individuais de direitos e deveres, pelo que o desenvolvimento e crescimento do estado significou sempre um aprofundamento desse individualismo. Mas será a função social do estado a abalar radicalmente a lógica familiar: as obrigações que tradicionalmente cabiam à família – previdência, apoio, cuidado – foram transferidas para instituições estatais, o que naturalmente dispensa a necessidade de descendência e fragiliza as relações familiares mais amplas.

Este aspecto, quase sempre negligenciado, é evidente nos países onde o estado social é mais amplo (como nos admirados países nórdicos): onde se acredita que os serviços de previdência social vão assegurar as nossas necessidades presentes e futuras, regista-se um decréscimo da natalidade, uma desvalorização do casamento e fenómenos agravados de solidão nos mais velhos. Um estado mais amplo tende a enfraquecer as redes de solidariedade familiares e comunitárias, ao mesmo tempo que nos torna menos autónomos e mais individualistas.

3A fuga total

O caminho percorrido conduziu-nos, não inesperadamente, a um individualismo agravado, em que a família parece agora representar todos os males do mundo e do passado – pelo que dela nos devemos libertar se queremos ser verdadeiramente livres e devidamente progressistas. Ao invés de nos concebermos a partir da família e das obrigações recíprocas que a alimentam, somos constantemente bombardeados com uma visão da família do tipo da de Alexander Portnoy, naquele que é, provavelmente, um dos melhores romances do século XX norte-americano:

“Para que servem, no fundo – pergunto eu – todas essas regras e proibições dietéticas, senão para nos dar a nós, criancinhas judias, o hábito da repressão? Vai-te habituando, meu querido, habitua-te, sim, habitua-te. A inibição não cai assim do céu, sabe – requer paciência, requer concentração, requer um pai ou uma mãe dedicados e cheios de espírito de sacrifício e uma criancinha esforçada e atenta para criar, no espaço de poucos anos, um ser humano verdadeiramente tolhido e servil.”

Essa demonização da família transporta-nos para uma realidade alternativa, na qual estaríamos marcados, como Portnoy, “da cabeça aos pés pelas minhas repressões, como um autêntico mapa das estradas. As auto-estradas da vergonha, da inibição e do medo atravessam-me o corpo todo.E se não podemos negar que a realidade por vezes assume vestes abomináveis, em justiça temos de reconhecer o carácter excepcionalíssimo dessas circunstâncias.

Decisões como a recente Recomendação do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre o processo de Consentimento Informado em menores de idade, que visa ampliar a autonomia dos adolescentes e recusa, nessa medida, o direito à curiosidade por parte dos pais, são sintoma do modo individualista do nosso tempo, mas partem de uma noção malfazeja de família. Como se os interesses, as obrigações e, sim, a curiosidade não decorressem desse laço insolúvel que nos liga à família e que leva os pais a quererem o bem dos seus filhos e os filhos a cuidarem dos pais quando estes são mais velhos. Partir de uma consideração autonomista e individualista do adolescente condenar-nos-á a uma sociedade de adultos egoístas e idosos abandonados.

É este espírito do tempo que tem oferecido campo fértil para uma cultura de queerização, em crescimento fulgurante nas gerações mais jovens. Na tentativa de desfazer no ar tudo o que é sólido, já não basta a essa cultura a fuga total que Édouard Louis descreve em Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule. Para ser Édouard, Édouard tentou “acabar de vez” com Eddy, isto é, com o seu passado, as suas raízes, a sua família. Como nos diz em História da violência:

“Os estudos, a ideia de estudar tinha surgido muito mais tarde, quando compreendi que esse seria o único caminho possível, ou pelo menos o único caminho que me permitiria afastar-me não só geograficamente, mas também simbolicamente, socialmente, e, portanto, totalmente, do meu passado. (…) Só os estudos poderiam permitir-me uma fuga total.” Mas Édouard Louis sabe que esta fuga é ilusória. Da mesma forma que não podemos emanciparmo-nos da natureza e da biologia, não nos podemos libertar da nossa família e do nosso passado e é por isso que os seus livros revolvem continuamente em torno dessa família e desse passado. Crescer é o processo de descobrir a ilusão da fuga total, mas trata-se de um caminho de amadurecimento pessoal e que tem de ser percorrido individualmente.

A cultura de queerização quer, no entanto, mais do que esta tentativa de fuga individual e é aí que reside o seu perigo: nascida do individualismo exacerbado da última década, o que se pretende aqui, sob as vestes de um novo vocabulário e uma nova linguagem, é a abolição social da família – com o objectivo claro de nos fazer esquecer de que é nela que reside a nossa identidade e a nossa maior possibilidade de liberdade.

POLITICAMENTE CORRECTO   SOCIEDADE   FAMÍLIA   LIFESTYLE   COMPORTAMENTO

COMENTÁRIOS:

João Dias: Graças a Deus, há quem esteja de guarda nesta  guerra sem quartel contra a família. Muito obrigado Professora Patrícia Fernandes.                 Francisco Tavares de Almeida: Mais uma vez, obrigado por este excelente artigo em que a erudição é meramente acessória, embora uma valorização. De facto, as duas vertentes mais visíveis - mas não as únicas - são o arrancar dos jovens à educação familiar para os submeter a lavagens de cérebro na escola, e o encorajamento "de facto" ao abandono dos velhos em depósitos pré-tumulares. A coincidência do  primeiro ser uma violação directa da nossa constituição (e da DUHD) e do PR ser um ex-professor de direito constitucional, é isso mesmo, uma coincidência(*). (*) Coincidências são raras. Em política não existem. 

NOTAS DA INTERNET:

A teoria queer (do inglês: queer theory) é uma teoria sobre o género que afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de género dos indivíduos são o resultado de um constructo social e que, portanto, não existem papéis sexuais essencial ou biologicamente inscritos na natureza humana, antes formas socialmente variáveis de desempenhar um ou vários papéis sexuais. Não há uma definição genericamente aceita para esta corrente de pesquisa acadêmica e forma particular de política pós-identitária. Os estudos queer constituem um grande e variado de empreendimentos dispersos por áreas como os estudos culturais, a sociologia da sexualidade humanaantropologia socialpsicologiaeducaçãofilosofiaartes, entre outras. De uma forma geral, é possível afirmar que a teoria queer busca ir além das teorias baseadas na oposição homens vs. mulheres e também aprofundar os estudos sobre minorias sexuais (bissexuaisgayslésbicastransgêneros) dando maior atenção aos processos sociais amplos e relacionados que sexualizam a sociedade como um todo de forma a heterossexualizar e/ou homossexualizar instituições, discursosdireitos. A teoria queer propõe explicitar e analisar esses processos a partir de uma perspectiva comprometida com aqueles socialmente estigmatizados, portanto dando maior atenção à formação de identidades sociais normais ou "desviantes" e nos processos de formação de sujeitos do desejo classificados em legítimos e ilegítimos. Neste sentido, a teoria queer é bem distinta dos estudos gays e lésbicos, pois considera que estas culturas sexuais foram normalizadas e não apontam para a mudança social. Daí o interesse em estudar a travestilidade, a transgeneridade e a intersexualidade, mas também culturas sexuais não-hegemônicas caracterizadas pela subversão ou rompimento com normas socialmente prescritas de comportamento sexual e/ou amoroso.

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