quarta-feira, 7 de setembro de 2022

Um Homem atento

 

Aos feitos pátrios, certamente, pelo mundo, embora não só, pois também os homens do mundo lhe merecem atenção tamanha. E, como afirma o seu amigo Adriano Lima é cada vez mais apurado o requinte da sua expressão plástica, de acordo com a referência histórica, que prima pela multiplicidade dos referentes a merecer-lhe a atenção e o regozijo, sobretudo pela sua história, que envolve os lugares e os nomes conhecidos, como também o genérico inominado, soldado ou navegador desconhecido, igualmente corajoso e lutador, a colherem todos o destaque que aquele lhes dá, com a emoção de quem se sente já apenas um sobrevivente dos que prezavam a sua História - a qual tende não só a ser menosprezada como a ser definitivamente esquecida  - ou sagazmente aproveitada, como recentemente aconteceu, para serem achincalhados esses que a defenderam, por quem, rasteiramente a ultrajou, desculpabilizando-se, junto das populações visitadas, das prestações menos humanas, naturalmente, em tempo de terrorismo acicatado pelos papões do mundo, e em defesa da estabilidade própria. Por isso estamos gratos ao Dr. Salles da Fonseca, pelos seus textos sinteticamente expressivos de saber e de intenção crítica.

NA RUA DOS NAVEGANTES - 2

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO 06.09.22

Ficou célebre a frase de Vasco da Gama em que ele disse que «Há homens para tudo, até para andar ao mar».

Foi já no século XX que o meu avô conheceu um Comandante da Marinha Mercante que, em serviço, usava habitualmente um chicote.

* * *

Nem todas as ondas foram sempre cavalgadas por nobres cavalheiros e heróis, também as houve  galgadas por plebeus, vilões e quejandos «de quem só Deus sabe»…

Seria bonito dizer aqui que é gloriosa a saga de um povo que cavalgou os mares para conquistar o mundo mas a realidade não se fica por aí: moldou-se pela necessidade do ganho de dimensão que nos permitisse a defesa contra a cobiça do vizinho ibérico, pela fuga da fome causada por terras curtas e magras, enfim, por aqueles que, depois de algumas doses de carrascão do Cartaxo, adormeciam à porta das tabernas lisboetas e acordavam com o balanço das naus fazendo já parte das tripulações. E, contudo, todos serviram a causa.

Uma das maiores fraudes intelectuais que hoje podemos cometer é o julgamento da História ao abrigo dos actuais conceitos éticos, nomeadamente a questão da escravatura.

O Império que os nossos navegantes construíram foi eminentemente comercial e marítimo. A componente terrestre foi sobretudo uma consequência, não um propósito.  As especiarias e os escravos eram as «commodities» de então que os nossos mareantes compravam ali para vender acolá… e os mares não tinham fim…

Quem foram os comerciantes portugueses que colaboraram na reconstrução de Jakarta depois de vizinhos malignos a terem arrasado? Quem foram esses embarcadiços que colaboraram na saga do dente de Buda no regresso a Candi?  Quem foram, Cavalheiros ou de outras condições, que criaram e fizeram funcionar os 17 hospitais de apoio à rota da Índia entre Tavira e Baçaim? Quem foram os soldados e marinheiros algarvios daquém e dalém mar em África que se perderam com Gaspar e com Miguel Corte Real nas imensidões do Atlântico Norte? Quem foram os que morreram com Bartolomeu Dias? Tantos… muitos mais do que todos aqueles que ficaram na História. E, contudo, todos eles fizeram História. Então, já que o «Padrão dos Descobrimentos» celebra os feitos dos gloriosos, façamos da Torre de Belém o  «Memorial ao Navegante Desconhecido».

6 de Setembro de 2022

Henrique Salles da Fonseca

 COMENTÁRIOS:

 Adriano Miranda Lima  07.09.2022  12:4:  Assinalo essa curiosa mas credível metáfora:  ficava-se a dormir à porta das tabernas com uma grande bebedeira e acordava-se a bordo de uma nau balouçando sobre as ondas. Outros chegavam das terreolas e de repente trocavam a enxada pela corda das enxárcias. E a maior parte não sabia nadar, pelo que o "grito de homem ao mar" lançado a bordo de uma nau não seria mais que uma formalidade. O homem ao mar o mais certo seria um homem morto. Depois, como não tenho estômago de marinheiro, calculo o sofrimento por que passariam esses infelizes até o conseguirem obter. Mas se uma qualidade inegável do português é a espantosa capacidade de adaptação, assim se explica a superação dos transes por que passámos para nos tornarmos os maiores navegantes do planeta naquela era em que todos os outros temiam os adamastores e monstros marinhos. A História só pode ser justa para esses indómitos marinheiros. Um abraço.  Adriano Lima

 Anónimo  07.09.2022  16:14: É abominável a escravatura, mas classificar o que se passou há séculos com olhos do presente é, como dizes, Henrique, uma fraude histórica. Temos que assumir o passado com o que foi de bom, de menos bom ou até mau. Não será, por acaso, que o conhecido engenheiro naval “Álvaro de Campos”, na sua "Ode Marítima", saúda os “Homens que erguestes padrões que destes nomes a cabos! / Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!” (…) “Que trouxestes ouro, missanga, madeiras cheirosas, setas/ De encostas explodindo em verde vegetação!”, mas também “Que primeiro vendestes escravos de novas terras!” (…) “Homens que saqueastes tranquilas povoações africanas, / Que fizestes fugir com ruído de canhões essas raças,” / (…). Pessoas avançadas no Tempo, perfilhando Valores futuros, aperceberam-se cedo da ignomínia que era a escravatura e lutaram, com risco da sua própria vida, contra ela, como o Padre António Vieira, sobre o qual tu és autor de um livro. Não fomos os primeiros a acabar com a escravatura, mas estivemos entre os primeiros. De início, no rectângulo europeu, com o Marquês de Pombal, e depois no Império, com o Marquês de Sá de Bandeira. Já uma vez escrevi no teu blog que, uma das minhas recordações de infância, é a estátua a este, sita na Praça D. Luís I, onde eu brincava, que tem como figura ornamental uma ex-escrava, com uma criança ao colo, apontando para cima, para o Marquês, e com as grilhetas nos tornozelos quebradas. Sei que os Ingleses foram os primeiros a abolir a escravatura e tornaram-se, com a sua armada, “polícias” do mundo para evitar que ela continuasse, mas ficar-me-á sempre a dúvida se esse comportamento foi por adopção precoce de Altos Valores, ou se foi por a Revolução Industrial ter possibilitado prescindir desse tipo de mão-se-obra. Seja como for, nós abolimos a escravatura na ponta da pena, enquanto outros só o conseguiram, como os EUA, pela ponta das baionetas. Como hoje comemoram-se os 200 anos de Independência do Brasil, também me lembrei que o País Irmão extinguiu gradual e tardiamente a escravatura, designadamente pela pena da Princesa Isabel, filha do Imperador D. Pedro II, e há quem diga que isso apressou a queda do Império, por ir contra os interesses dos latifundiários. Como se vê, a escravatura e a sua extinção são fenómenos mais complexos do que aparentam, e soubemos que nessos dias ela existiu, a nível de Estados, embora sob outros rótulos. Espero que ainda não subsista por aí. Sobre a tua sugestão última, depois do vandalismo ignorante que o Monumento aos Descobrimentos impunemente foi alvo, por cautela deixaria a Torre de Belém queda. Grande abraço. Carlos Traguelho

 Adriano Miranda Lima  07.09.2022  18:13: Este post dá pano para muita manga e a questão da escravatura é uma. Em posts anteriores houve ocasião, e por mais de uma vez, de censurar os que pretendem julgar a história da escravatura segundo os códigos e preceitos morais da actualidade.
Quanto aos ingleses, parece demonstrado, como o Dr. Carlos Traguelho lembra, que a sua militância para a abolição da escravatura foi, efectivamente, determinada por factores não directamente relacionados com o humanismo. Como se eles, nesta matéria e em tudo o que se prende com os seus interesses vitais, tenham lições a dar aos outros! Um abraço
Adriano Lima

 

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