Se o tempo no-lo permitir – (o “nos”
ambíguo da “nossa” discrição pessoal). Todavia, Isabel II poderia ter abdicado
em favor do filho há mais tempo, talvez não o tenha feito com receio do
desmoronamento desse seu mundo sobre si própria e os seus. Mas não será culpa
de Carlos que o império britânico, essa Commonwealth que a respeitou, queira livrar-se
desses laços, que afinal ajudavam à estabilidade e coesão do mundo em geral. A culpa
não será de Carlos, mas desse mundo particular, esbatido o simbolismo da figura
da rainha, na irrequietude e ambição que grassam por aí, provocando mais
desequilíbrio, se tal acontecer…
Alberto Gonçalves não é, para mais,
generoso com o mundo burguês que se atravessou na vida dessa rainha. Porquê
tanto desprezo?
A rainha não deixou herdeiros
Se um rei é cretino, o facto resulta
do carácter fortuito do regime – e o povo não tem culpa. Se um presidente é
cretino, o povo tem, além da culpa, precisamente aquilo que merece.
ALBERTO GONÇALVES Colunista do
Observador
OBSERVADOR, 10 set
2022, 00:2176
A maior tragédia da nossa época é a
valorização cega da mudança. O maior
mérito de Isabel II foi escapar a essa perigosa crendice e tentar resistir-lhe. Conseguiu-o? Claro que não, ou claro que sim: durante
o seu longuíssimo reinado o mundo mudou imenso, umas vezes para melhor, em
geral para pior. O mundo mudou, ela não. E
através do silêncio que lhe competia e da maneira digna como o administrou, a
rainha de um império extinto emprestou-nos uma pequenina ilusão de permanência,
um lugar simbólico e sereno a que se podia regressar após cada desmiolada vaga
de voluntarismo e esquecimento. Enquanto tudo nos fugia, Isabel
II continuava lá. E se isso
não era remédio, pelo menos servia de consolo, um consolo que nem sabíamos que
tínhamos. Com a sua morte, morrem também alguns dos últimos laços que prendiam
este tempo a tempos precedentes, e lhe conferiam a continuidade e a memória
necessários para que a existência não perca o sentido por inteiro.
A
resistência de Isabel II começou, literal e paroquialmente, em casa, por cuja
porta os descendentes introduziram um espectacular desfile de patetas, desde a
famosa “Princesa do Povo” até a outra actriz que casou com o benjamim daquela,
passando por uma Sarah que terminou em “reality shows”. As patetas em questão, que invariavelmente se
proclamaram vítimas do que calha excepto da falta de noção do ridículo, não
desmerecem os cavalheiros que as desposaram. A rainha
não teve sorte. Teve decência, e pairou acima do elenco de telenovela com as
doses adequadas de integridade e desprezo. Por fortes e recorrentes que fossem
os abalos do populismo, Isabel II aguentou-os e assegurou a sobrevivência da
instituição a que devotou 70 anos. Não parece fácil e não é fácil.
A
vida de Isabel II não foi fácil. Os
pasmados contemplam a realeza, a realeza a sério e cumprida com seriedade, e,
com doçura ou rancor, invejam-lhe a ostentação e a vida cheia. Eu preferiria ser cozinhado vivo por canibais das
Ilhas Fiji, de que aliás a rainha de Inglaterra era a soberana. Sempre seria
mais rápido, bastante mais rápido do que sete décadas a abdicar do próprio
destino em prol dos aspectos alegóricos de uma mitologia colectiva e fatalmente
alheia. Sobretudo
não concebo alternativa pior a um quotidiano interminável de protocolos,
sacrifícios, salamaleques e escrutínios. Uma pessoa vê as filmagens de Isabel,
em criança, a brincar com os cães e pergunta-se se Isabel, a monarca, voltou a
fazê-lo com tamanho desprendimento e alegria. Quantas viagens inúteis a rainha
realizou? Em quantas cerimónias dilacerantes a rainha participou? Quantas
nulidades a rainha recebeu e se viu forçada a entreter? Milhares, milhares e
milhares.
Em
2016, salvo o erro, a pobre senhora encontrou-se com o prof. Marcelo, que
confessou tê-la visto em 1957 em Lisboa, era ele petiz. Espantou-me que o prof.
Marcelo não lembrasse a Sua Majestade que o petiz envergava calções, hoje a
peça dominante do seu vestuário. Não me espantou a violenta falta de tino que o
levou a sublinhar a diferença de idades. A rainha, que não fazia ideia dos
modos do indivíduo à sua frente, respondeu à má-criação com um “Tenho a
certeza que sim!” Depois o prof. Marcelo mencionou o Terreiro do Paço e
o general Craveiro Lopes, referências que a rainha acompanhou com o
conhecimento e o interesse que eu dedico à geografia do “Senhor dos Anéis”. As
imagens divulgadas do encontro duram 38 segundos, que chegam e sobram para
inspirar duas ou três considerações sobre regimes e tal.
Não
sou, nunca fui monárquico. Nunca experimentei a mínima curiosidade alusiva ao
folclore e às intrigas do Palácio de Buckingham. Fora dez minutos, que me
adormeceram, nunca vi “The Crown” ou similares. Não sendo igualmente
republicano, concordo com os republicanos quando acusam a monarquia de ser
injusta e aleatória. É verdade que ninguém consegue prever as competências de
uma criatura designada à nascença, ou perto disso, para chefiar, ainda que
tacitamente, o Estado. Henrique VIII revelou-se psicopata, Jorge III revelou-se
maluquinho. Nas repúblicas, psicopatas e maluquinhos acontecem, e meros
tontos abundam. A nuance é a legitimação pelo voto, que permite a
escolha e, logo que se aceite a razão da maioria, a exacta conformação da
vontade popular ao chefe eleito. No processo de sucessão, e em contextos
democráticos, a república não é intrinsecamente mais eficaz que a monarquia: é
só mais justa. Para o bem e, com frequência, para o mal. Ou seja, se
um rei é cretino, o facto resulta do carácter fortuito do regime – e o povo não
tem culpa. Se um presidente é cretino, o povo tem, além da culpa,
precisamente aquilo que merece. Suspeito que inúmeros britânicos não mereciam
Isabel II.
Sem
nada que o garantisse, Isabel II foi uma líder extraordinária, à altura, se não
acima, das extraordinárias circunstâncias que testemunhou. Após a sua morte,
olha-se em redor, no Reino Unido e no resto, nas monarquias e nas repúblicas, e
o que há são líderes ordinários, incapazes de enfrentar circunstâncias banais:
ao contrário de um rochedo, temos grãozinhos de areia, não por acaso o material
que lhes enche as cabeças. A rainha não pertencia ao nosso tempo, e, digam o
que disserem as notícias, não deixou herdeiros.
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