segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Ficções da alma


Leiamos antes Pessoa. Ao menos, se é ambíguo e mesmo contraditório em alguns poemas, “fingidor” como poeta, como se define, explica o porquê disso, o sentimento real, descrito com a razão e a imaginação, tornado estranho e aparentemente falso, mas proporcionando uma visão múltipla e gradualmente enriquecida, para freguês ver e admirar - e sentir, se o entender, no seu próprio universo alheio, porque pessoal … Cito:

«ISTO:   Dizem que finjo ou minto  Tudo que escrevo.  Não. Eu simplesmente sinto  Com a imaginação. Não uso o coração.   Tudo o que sonho ou passo,  O que me falha ou finda,  É como que um terraço   Sobre outra coisa ainda.   Essa coisa é que é linda.   Por isso escrevo em meio   Do que não está ao pé,   Livre do meu enleio,   Sério do que não é.   Sentir? Sinta quem lê!»

Mas o Dr. Salles não vai em cantigas, prefere o rigor das contas dramáticas, e eu passo-me dos carretos, lendo e relendo a sua dramatização sobre os conceitos económicos, de inflação e teorias despesistas, segundo os dois dos protagonistas das opções citadas contribuindo para uma maior ou menor inflação, a que a guerra vem acelerar os efeitos. Por isso já nem se pode tomar um café decente, com o aumento inflacionário que sofreu, irra! Mais vale interpretar Pessoa pois sai mais barato.

Mas acabar com Putin e a guerra, como desenlace das crises várias, além da económica, como propõe o Dr. Salles, parece esplêndido, Deus o escutasse.

 

AS DUAS FACES DA MOEDA

 HENRIQUE SALLES DA FONSECA

 A BEM DA NAÇÃO, 24.09.22

ou

O GRANDE TEATRO DE CAPITAIS

Personagens e intérpretes por ordem de entrada em cena:

«Dinheiro barato» - Mário Draghi; «Dinheiro caro» - Christine Lagarde.

ACTO 1

CENA 1 – Economia europeia lenta

Para obrigar o investimento a saltar para a frente do desejado desenvolvimento, Draghi desenvolveu a política dos juros tão baixos que chegaram a negativos levando também o BCE a entrar no mercado primário das dívidas soberanas;

As poupanças saíram do entesouramento (que passara a ter rentabilidade negativa) e (como Draghi queria) optaram por aplicações mesmo que de modesta rentabilidade;

A política dos juros negativos conduziu à remuneração negativa das dívidas públicas e, daí, a avultados ganhos dos Estados devedores e a elevadas perdas dos respectivos credores.

No cenário do «Dinheiro barato»…

os investimentos de modesta TIR (“Taxa Interna de Retorno”) puderam ver a luz do dia porque os custos de capital eram baixos e porque os capitais preferiam uma remuneração modesta em vez de uma negativa;

…aos projectos de elevada TIR também não faltavam (obviamente) os capitais necessários.

CENA FINAL DO ACTO 1

Com Draghi, a economia europeia «mexeu» porque os capitais eram baratos.

* * *

INTERVALO – as pessoas dirigem-se ao «foyer» e conversam…

 o negócio bancário lida mal com dinheiro barato e pessimamente com juros negativos, há que mudar o cenário (de genericamente protector do devedor para assumidamente protector do credor; de defensor dos países perdulários do Sul para defensor dos frugais do Norte europeu) e também o intérprete.

* * *

ACTO 2

CENA 1 – Sai Draghi e entra Lagarde.

Sem solavancos, começam «murmúrios à navegação» de que os juros deixarão de ser negativos e de que as «facility easings» estavam num verdadeiro estado de moribundez, que a Reserva Federal estava a aumentar a taxa de juros «para «segurar a inflação» e que nós não podíamos continuar a política draghiana

Até que a Rússia invade a Ucrânia e disparam os preços da energia e dos cereais.

E Lagarde esfrega as mãos de contente pois é necessário aumentar as taxas de juro «para conter a inflação».

CENA FINAL DO ACTO 2

Francesa, Lagarde dirá para com os seus botões «Merci, Monsieur Putin!»;

Ao fundo, ouve-se um coro de frugais entoando carinhosos e agradecidos «VIVAS À CRISTINA!».

* * *

Como se mete pelos olhos de qualquer leigo, a inflação resulta da escassez (ou da putativa escassez) dos produtos inflacionados e nada a move que não sejam as causas que a provocaram. Os juros são consequência e não controlam nada a não ser uma eventual redução do investimento (carestia dos capitais), redução da produção, escassez da oferta, mais pressão inflacionista.

PERGUNTA: - Então, qual é a solução?

RESPOSTA: - Esvaziar o Kremlin de licenciados pela «fábrica de monstros» que é o KGB; acabar com a guerra; integrar a Ucrânia na EUE e respectivos métodos de formação de preços, nomeadamente agrícolas; deixar de mentir sobre a política monetária.

Se as taxas de juros activas para os titulares dos capitais (passivas para a banca) forem inferiores às taxas da inflação, ocorrerá a desvalorização dos capitais postos à guarda do sistema bancário. Ou seja, regressamos à situação draghiana do primeiro acto deste teatro.

BAIXA O PANO

Pelos vistos, esta moeda só tem uma face.

Lisboa, 24 de Setembro de 2022

Henrique Salles da Fonseca

Tags: economia

 

COMENTÁRIO

 Anónimo  25.09.2022  16:42

Talvez por há muito não ir ao teatro nem ler peças teatrais, em virtude de outras preocupações e interesses terem mobilizado ultimamente a minha atenção, estou com alguma dificuldade em comentar a tua peça teatral. Vamos a ver. É verdade que a inflação disparou com a invasão russa, em fevereiro de 2022, embora ela já se esboçasse desde o final de 2021, e nós aqui reflectimos sobre o papel do BCE na sua contenção. Estávamos perante a incapacidade de a oferta satisfazer o súbito acréscimo da procura decorrente do regresso à actividade pós-confinamento COVID. A aceleração da inflação ocorreu designadamente pelo aumento dos preços dos cereais e da energia, com especial incidência nos países europeus mais dependentes, nesse âmbito, da Rússia. Embora não concorde, nem subscreva o “dito”, não posso deixar de assinalar, utilizando designações da tua peça teatral, que alguém de um país perdulário do sul europeu “atirou” a um país frugal (um dos que mais tinha em tempo não distante “massacrado” aquele), que este, em termos de energia, estava a viver acima das suas possibilidades (a vingança serve-se fria). Não deixa de ser assinalável que, apesar de inesperadas diligências ao mais alto nível americano, junto do principal produtor de petróleo, não tenha sido possível aumentar a oferta, como forma de redução do preço. É mais uma vez verdade que a Banca lida mal com taxas de juro baixas, quanto mais negativas. É também verdade que muitos projectos de investimento fizeram mexer a economia em virtude das taxas de juro baixas. Veremos no futuro próximo se esses projectos eram os que verdadeiramente mais interessavam e se resistem ao aumento daquelas. Penso que a intervenção do BCE visa tornar mais selectivos os novos investimentos, refreando, assim, a Economia. Inquestionavelmente, estamos perante uma súbita, inesperada e significativa inflação, que, segundo um dos teus protagonistas, era de curta duração para, rapidamente, passar a classificá-la de prolongada, bem revelador da coerência e consistência do raciocínio. Confio (uma questão de fé e nada mais) que o bom senso acabe por prevalecer em alguns dos protagonistas, e que a inflação se reduza para níveis aceitáveis. Espero que, entretanto, sejam encontrados meios para que projectos de investimento de interesse continuem a ser viabilizados, desde que estes suportem taxas de juro normais, que não são as próximas de zero.   Abraço. Carlos Traguelho

 

 

 

 

 

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