A culpa é dos telemóveis, que provocam
cada vez mais distanciamento nas relações humanas de contacto. Das doutrinações
políticas também, que defendendo os desprotegidos antigos, com muita virtude,
atacam, com muita impiedade, os representantes actuais dessas sociedades
racistas de todo o sempre, estimulando ódios em desafio permanente. A educação
tem muito a ver com tudo isso, é claro, não só pela falta de disciplina regulamentada,
que desautoriza pais e professores, como pela falta de valores, que desrespeita
a História pátria, na tal aldeia global em que se pretende viver, como se fosse
um fosso onde todos se espojam, de cambulhada. Mais grave do que o conflito de
gerações, sobre que os clássicos expunham. O mundo está cada vez mais povoado, a
confusão é maior, e o ruído também. Povoado pelos desprotegidos de ontem, que
avassalam hoje os espaços, penetrando-os em força, porque só eles se reproduzem
bem.
Mas não é taxativo que seja tão genérico
assim, a tal falta de contemplações. Gestos de bondade e delicadeza sempre os
houve, os sentimentos que definem os humanos vão-se mantendo, de geração em
geração, o amor existe, por muita degradação que sofra, na irracionalidade do
homem racional, os pais amam os filhos como sempre amaram, a cadeia humana
manter-se-á pelos tempos fora, enquanto tempos houver…
Não há contemplações
Não é bonito o que notei nestas férias
em matéria de sensibilidade para com os outros. A cultura portuguesa está a
mudar ou há aqui qualquer fenómeno estranho – pandemia a mais e educação a
menos.
JOSÉ CRESPO DE
CARVALHO: Professor Catedrático; Presidente da Comissão Executiva – INDEG – ISCTE
Executive Education
OBSERVADOR, 03 set
2022, 00:1310
Notei
que não há trabalhadores portugueses em cafés, restaurantes e supermercados. Não sei para onde foram, mas, mesmo os sazonais,
desapareceram quase todos. Notei que há imensas novas nacionalidades
entre os portugueses – e bem precisamos delas. Notei o óbvio, i.e., que o
país está sequíssimo e, não obstante isto, se vai ainda vendo, em duche de
praia e contra todas as proibições, malta a tomar banho de gel e shampoo.
Notei que os portugueses queriam fazer férias à força – party
hard – e notei, infeliz e finalmente para primeiras impressões, que o
cumprimento dos horários dos estabelecimentos comerciais são para inglês ver.
Ora fecham mais cedo, ora têm horários de almoço prolongadíssimos, ora estão
mesmo fechados contra o “aberto” do Google. Falta de colaboradores, vamos
admitir.
Até
aqui, portanto, tudo bem. Tudo normal. Em conversa com amigos vão-me dizendo
que é tudo já antigo e que sempre assim foi. Aceito que sim. Nem parei
muito para pensar a não ser porque o estou agora a escrever.
Mas
o que notei de verdadeiramente preocupante nestas miniférias?
Notei
uma falta total de pequenos favores de custo zero. Simpatia, apenas.
Ao “pode por favor dar-me um copo com água” responde-se agora que só se vende
em garrafa. Isto no final de uma refeição. Os meus amigos também me dizem que
já era normal.
Notei,
porém, que se acentua a falta de contemplações. A falta de comiseração. A falta
de empatia para com os outros. A falta de consideração. Isto sim, são sinais
alarmantes. E não são apenas geracionais. São transversais a todas as idades.
Alguém
aflito ou visivelmente maldisposto e ninguém pára.
Um
carro parado ou um acidente de madrugada e ninguém se digna ajudar.
Uma
senhora idosa a tentar colocar o lixo num recipiente daqueles verdes grandes,
sem força, é um problema, chega a ser um empecilho, pois é preciso é nem olhar
para ela. E ninguém se detém para a ajudar.
Um
malandro parado na portagem é um malandro. Não consegue passar. Alguém que saia
do carro e vá ajudar? Não, é preferível, contra tudo e todos, tocar a buzina e
produzir um som estridente.
Um
adulto de idade indefinida que caia na rua não tem ninguém para ajudar.
Mexe-te, “pensará” quem passa. Ou nem isso.
Um
senhor tropeça e cai na praia e a melhor palavra para definir o ambiente geral
é… “paciência”. Desenrasca-te.
Até
uma criança a chorar, sozinha ou perdida, que outrora faria virar olhares e
levantava preocupações, agora nada. É como se não existisse. É como se não
fosse pessoa, quanto mais criança. Que se encontre, ora bem.
Alguém
viu que apenas havia um jornal final à venda e uma pessoa à espera dele. Pois
se aparecer alguém mais “inteligente” o jornal é desse “inteligente”. “Toma que
te passei para trás”.
Se
se espera por uma mesa de esplanada é bom que se espere colado à mesa. A
agarrá-la com as duas mãos para ela não fugir e mesmo antes de os clientes
anteriores se levantarem. Porquê? Porque há sempre alguém que, na desatenção de
quem espera ou mais do que sabendo que há fila, vai deixar alguém apeado e
“tira” a mesa. Esperteza, apenas. Com a qual os cafés ou esplanadas compactuam.
Ou nem ligam.
E
quando se espera por um lugar para estacionar é melhor mandar alguém para fora
do carro, se andarmos acompanhados, para sinalizar que se espera. Senão, alguém
vem de não sei onde e estaciona mesmo o carro. Não importa quem espera e, se
espera, é porque quer esperar.
Não
é bonito o que notei nestas férias em matéria de sensibilidade para com os
outros. Das duas
uma: ou a cultura portuguesa está a mudar ou há aqui qualquer fenómeno
estranho que tem a ver com pandemia a mais e educação a menos. Porém,
paradoxalmente, um carro abranda a perguntar o caminho e ou as pessoas se
afastam ou falam todas umas em cima das outras na velha procura de ajudar.
Aqui sim, ainda notei Portugal apesar do GPS.
Dito
isto, fico a pensar na conclusão sobre o que se passa. E só tenho uma, faltando-me
outra melhor: nota-se a total ausência de contemplação. De qualquer tipo de
preocupação e empatia para com terceiros.
Há
um excesso de individualismo e posições e manifestações odiosas e
incompreensíveis nas redes sociais. Disso sabemos todos e nem vale a pena parar
para pensar.
O
problema, agora, é que me parece que estamos também a passar à força toda esse
“ódio” digital para o mundo real. Para isto podemos arranjar as desculpas que
quisermos, mas isto é já (os digitais também) um sinal cultural. E não é
dos bons. Espero, sinceramente, que a minha percepção esteja enviesada, mesmo
errada, porquanto as minhas foram mesmo umas miniférias. Sobre estes aspectos,
nada comentei ainda com os meus amigos.
COMENTÁRIOS:
Eunice Moore: Estamos a ficar com o individualismo do centro e do do norte europeu,
infelizmente.. Ana Martins: Boa noite Já há algum tempo que
verifico exactamente o que descreve no seu artigo.
Estamos já a viver numa sociedade individualista. As pessoas não se
colocam no lugar dos outros e não existem atitudes ou palavras como
respeito e educação. Não é contemplação é um facto. Sinónimo de que a
inteligência não lhes dá benefícios, apenas os está a fazer recuar na
civilização Parabéns e obrigada pela sua oportuna reflexão. Luis
Martinho: A crise de
autoridade parental, a permissividade nos estabelecimentos de ensino, a
enviesada concepção de liberdade e de cidadania veiculada pela escola oficial,
a exaltação do individualismo, o desprezo, quando não a ridicularização, dos
valores ditos tradicionais - a honra, o respeito pelo outro e pela palavra dada
- levam, infelizmente, a situações como as descritas no texto. O homem que
cumpria os seus compromissos era, noutros tempos, considerado um homem honrado,
de palavra, uma pessoa de bem; hoje é, habitualmente, rotulado de “lorpa”…Há
dias, uma senhora amiga, com os seus cabelos brancos, de 85 anos de idade,
contava-me que, numa viagem de comboio, do Porto para Espinho, com a carruagem
a abarrotar, se viu aflita pela dificuldade em manter-se equilibrada em pé, sem
que, inicialmente, alguém lhe cedesse um lugar para se sentar, até que se
aproximou uma jovem e a conduziu ao seu lugar. Quando quis agradecer a
gentileza e louvar o comportamento da jovem, esta, sorrindo, deu a entender que
não a entendia - era estrangeira!…Vamos confiar que, estando a bater no fundo,
as “coisas” só poderão melhorar no futuro… José Rego: Caro Crespo, que mundo tão
triste em que vives. Liberales
Semper Erexitque > José Rego:
Deve ter ido ao
Algarve, só pode!
Liberales Semper Erexitque: Desde que tenham
"certificado sanitário", como o gado, está tudo bem. Ah, e têm que
ser contra a Rússia. Se cumprirem estas duas condições, são bons cidadãos. A
chatice para mim é não as cumprir. Por não querer! Manuel Chagas: Tem toda a razão, é a verdade.
Eu acho que há falta de uma plataforma base de valores na sociedade portuguesa,
e isso se calhar deveria ter sido proporcionado na escola através do ensino de
educação cívica, para suprir as falhas de quem não a recebeu em casa, ou de
quem se vê excessivamente afectado pelas agressões do dia a dia. Essa falta de
valores traduz-se também em desonestidade, seja do cidadão comum, seja da
classe política. Ninguém tem a menor vergonha de mentir ou distorcer a
realidade para servir as suas conveniências. E eu vivo fora de Portugal, em
Roma, e portanto o meu padrão de comparação não é o top, é uma cidade que
inclusivamente é reconhecida como caracterizada por má educação por comparação
com outras cidades italianas. Mas eu vejo-a melhor que Portugal. Alexandre Barreira: Pois é. Os
"lambe-botas" estão em declínio ! bento guerra: Excelente análise. E nem tente
dizer que o Zelensky podia ter tentado uma negociação internacional, que é
imediatamente insultado( "Coragem é fazer a paz" M.Sousa Tavares, em
13 de Março, uma "obscenidade") Luis Figueiredo:
Totalmente de
acordo. O português tradicionalmente simpático foi chão que já deu uvas. E para
isso, contribui, na minha ideia, a percepção que o futuro que aí vem vai
ser muito pior que se pensava há décadas atrás e a sensação de impotência
para inverter esta tendência, seja via projectos políticos ou via
sociedade civil. Vêm tempos de muito egoísmo , sim, de um autêntico salve-se
quem puder. E salvadores das pátrias não se vêem....
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