domingo, 4 de setembro de 2022

Ruído


A culpa é dos telemóveis, que provocam cada vez mais distanciamento nas relações humanas de contacto. Das doutrinações políticas também, que defendendo os desprotegidos antigos, com muita virtude, atacam, com muita impiedade, os representantes actuais dessas sociedades racistas de todo o sempre, estimulando ódios em desafio permanente. A educação tem muito a ver com tudo isso, é claro, não só pela falta de disciplina regulamentada, que desautoriza pais e professores, como pela falta de valores, que desrespeita a História pátria, na tal aldeia global em que se pretende viver, como se fosse um fosso onde todos se espojam, de cambulhada. Mais grave do que o conflito de gerações, sobre que os clássicos expunham. O mundo está cada vez mais povoado, a confusão é maior, e o ruído também. Povoado pelos desprotegidos de ontem, que avassalam hoje os espaços, penetrando-os em força, porque só eles se reproduzem bem.

Mas não é taxativo que seja tão genérico assim, a tal falta de contemplações. Gestos de bondade e delicadeza sempre os houve, os sentimentos que definem os humanos vão-se mantendo, de geração em geração, o amor existe, por muita degradação que sofra, na irracionalidade do homem racional, os pais amam os filhos como sempre amaram, a cadeia humana manter-se-á pelos tempos fora, enquanto tempos houver…

Não há contemplações

Não é bonito o que notei nestas férias em matéria de sensibilidade para com os outros. A cultura portuguesa está a mudar ou há aqui qualquer fenómeno estranho – pandemia a mais e educação a menos.

JOSÉ CRESPO DE CARVALHO: Professor Catedrático; Presidente da Comissão Executiva – INDEG – ISCTE Executive Education

OBSERVADOR, 03 set 2022, 00:1310

Notei que não há trabalhadores portugueses em cafés, restaurantes e supermercados. Não sei para onde foram, mas, mesmo os sazonais, desapareceram quase todos. Notei que há imensas novas nacionalidades entre os portugueses – e bem precisamos delas. Notei o óbvio, i.e., que o país está sequíssimo e, não obstante isto, se vai ainda vendo, em duche de praia e contra todas as proibições, malta a tomar banho de gel e shampoo. Notei que os portugueses queriam fazer férias à força – party hard – e notei, infeliz e finalmente para primeiras impressões, que o cumprimento dos horários dos estabelecimentos comerciais são para inglês ver. Ora fecham mais cedo, ora têm horários de almoço prolongadíssimos, ora estão mesmo fechados contra o “aberto” do Google. Falta de colaboradores, vamos admitir.

Até aqui, portanto, tudo bem. Tudo normal. Em conversa com amigos vão-me dizendo que é tudo já antigo e que sempre assim foi. Aceito que sim. Nem parei muito para pensar a não ser porque o estou agora a escrever.

Mas o que notei de verdadeiramente preocupante nestas miniférias?

Notei uma falta total de pequenos favores de custo zero. Simpatia, apenas. Ao “pode por favor dar-me um copo com água” responde-se agora que só se vende em garrafa. Isto no final de uma refeição. Os meus amigos também me dizem que já era normal.

Notei, porém, que se acentua a falta de contemplações. A falta de comiseração. A falta de empatia para com os outros. A falta de consideração. Isto sim, são sinais alarmantes. E não são apenas geracionais. São transversais a todas as idades.

Alguém aflito ou visivelmente maldisposto e ninguém pára.

Um carro parado ou um acidente de madrugada e ninguém se digna ajudar.

Uma senhora idosa a tentar colocar o lixo num recipiente daqueles verdes grandes, sem força, é um problema, chega a ser um empecilho, pois é preciso é nem olhar para ela. E ninguém se detém para a ajudar.

Um malandro parado na portagem é um malandro. Não consegue passar. Alguém que saia do carro e vá ajudar? Não, é preferível, contra tudo e todos, tocar a buzina e produzir um som estridente.

Um adulto de idade indefinida que caia na rua não tem ninguém para ajudar. Mexe-te, “pensará” quem passa. Ou nem isso.

Um senhor tropeça e cai na praia e a melhor palavra para definir o ambiente geral é… “paciência”. Desenrasca-te.

Até uma criança a chorar, sozinha ou perdida, que outrora faria virar olhares e levantava preocupações, agora nada. É como se não existisse. É como se não fosse pessoa, quanto mais criança. Que se encontre, ora bem.

Alguém viu que apenas havia um jornal final à venda e uma pessoa à espera dele. Pois se aparecer alguém mais “inteligente” o jornal é desse “inteligente”. “Toma que te passei para trás”.

Se se espera por uma mesa de esplanada é bom que se espere colado à mesa. A agarrá-la com as duas mãos para ela não fugir e mesmo antes de os clientes anteriores se levantarem. Porquê? Porque há sempre alguém que, na desatenção de quem espera ou mais do que sabendo que há fila, vai deixar alguém apeado e “tira” a mesa. Esperteza, apenas. Com a qual os cafés ou esplanadas compactuam. Ou nem ligam.

E quando se espera por um lugar para estacionar é melhor mandar alguém para fora do carro, se andarmos acompanhados, para sinalizar que se espera. Senão, alguém vem de não sei onde e estaciona mesmo o carro. Não importa quem espera e, se espera, é porque quer esperar.

Não é bonito o que notei nestas férias em matéria de sensibilidade para com os outros. Das duas uma: ou a cultura portuguesa está a mudar ou há aqui qualquer fenómeno estranho que tem a ver com pandemia a mais e educação a menos. Porém, paradoxalmente, um carro abranda a perguntar o caminho e ou as pessoas se afastam ou falam todas umas em cima das outras na velha procura de ajudar. Aqui sim, ainda notei Portugal apesar do GPS.

Dito isto, fico a pensar na conclusão sobre o que se passa. E só tenho uma, faltando-me outra melhor: nota-se a total ausência de contemplação. De qualquer tipo de preocupação e empatia para com terceiros.

Há um excesso de individualismo e posições e manifestações odiosas e incompreensíveis nas redes sociais. Disso sabemos todos e nem vale a pena parar para pensar.

O problema, agora, é que me parece que estamos também a passar à força toda esse “ódio” digital para o mundo real. Para isto podemos arranjar as desculpas que quisermos, mas isto é já (os digitais também) um sinal cultural. E não é dos bons. Espero, sinceramente, que a minha percepção esteja enviesada, mesmo errada, porquanto as minhas foram mesmo umas miniférias. Sobre estes aspectos, nada comentei ainda com os meus amigos.

COMPORTAMENTO   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

Eunice Moore: Estamos a ficar com o individualismo do centro e do do norte europeu, infelizmente..           Ana Martins: Boa noite Já há algum tempo que verifico exactamente o que descreve no seu artigo. Estamos já a viver numa sociedade individualista. As pessoas não se colocam no lugar dos outros e não existem atitudes ou palavras  como respeito e educação. Não é contemplação é um facto. Sinónimo de que a inteligência não lhes dá benefícios, apenas os está a fazer recuar na civilização  Parabéns e obrigada pela sua oportuna reflexão.                     Luis Martinho: A crise de autoridade parental, a permissividade nos estabelecimentos de ensino, a enviesada concepção de liberdade e de cidadania veiculada pela escola oficial, a exaltação do individualismo, o desprezo, quando não a ridicularização, dos valores ditos tradicionais - a honra, o respeito pelo outro e pela palavra dada - levam, infelizmente, a situações como as descritas no texto. O homem que cumpria os seus compromissos era, noutros tempos, considerado um homem honrado, de palavra, uma pessoa de bem; hoje é, habitualmente, rotulado de “lorpa”…Há dias, uma senhora amiga, com os seus cabelos brancos, de 85 anos de idade, contava-me que, numa viagem de comboio, do Porto para Espinho, com a carruagem a abarrotar, se viu aflita pela dificuldade em manter-se equilibrada em pé, sem que, inicialmente, alguém lhe cedesse um lugar para se sentar, até que se aproximou uma jovem e a conduziu ao seu lugar. Quando quis agradecer a gentileza e louvar o comportamento da jovem, esta, sorrindo, deu a entender que não a entendia - era estrangeira!…Vamos confiar que, estando a bater no fundo, as “coisas” só poderão melhorar no futuro…                 José Rego: Caro Crespo, que mundo tão triste em que vives.                Liberales Semper Erexitque > José Rego: Deve ter ido ao Algarve, só pode!            Liberales Semper Erexitque: Desde que tenham "certificado sanitário", como o gado, está tudo bem. Ah, e têm que ser contra a Rússia. Se cumprirem estas duas condições, são bons cidadãos. A chatice para mim é não as cumprir. Por não querer!                Manuel Chagas: Tem toda a razão, é a verdade. Eu acho que há falta de uma plataforma base de valores na sociedade portuguesa, e isso se calhar deveria ter sido proporcionado na escola através do ensino de educação cívica, para suprir as falhas de quem não a recebeu em casa, ou de quem se vê excessivamente afectado pelas agressões do dia a dia. Essa falta de valores traduz-se também em desonestidade, seja do cidadão comum, seja da classe política. Ninguém tem a menor vergonha de mentir ou distorcer a realidade para servir as suas conveniências. E eu vivo fora de Portugal, em Roma, e portanto o meu padrão de comparação não é o top, é uma cidade que inclusivamente é reconhecida como caracterizada por má educação por comparação com outras cidades italianas. Mas eu vejo-a melhor que Portugal.               Alexandre Barreira: Pois é. Os "lambe-botas" estão em declínio !              bento guerra: Excelente análise. E nem tente dizer que o Zelensky podia ter tentado uma negociação internacional, que é imediatamente insultado( "Coragem é fazer a paz" M.Sousa Tavares, em 13 de Março, uma "obscenidade")           Luis Figueiredo: Totalmente de acordo. O português tradicionalmente simpático foi chão que já deu uvas. E para isso, contribui, na minha ideia,  a percepção que o futuro que aí vem vai ser muito pior que se pensava há décadas atrás e a sensação de impotência para  inverter esta tendência, seja via projectos políticos ou via sociedade civil. Vêm tempos de muito egoísmo , sim, de um autêntico salve-se quem puder. E salvadores das pátrias não se vêem....

 

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