segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Aterrador


Como dizia Jô Soares: "Estão mexendo no meu bolso.

 Mas é mesmo pra valer, desta vez?

JOSÉ MANUEL FERNANDES:

OBSERVADOR, 12/9/22

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Numa semana especialmente cheia de acontecimentos, uma Newsletter que começa com o programa “Famílias Primeiro”, continua com um tributo a Isabel II e termina com a história de uma fotografia de Boris Johnson, que esta semana deixou o cargo de primeiro-ministro.

A minha longa experiência como jornalista diz-me que é muitas vezes em momentos de descontração que os políticos baixam a guarda e deixam escapar desabafos que revelam a sua natureza profunda – ou as suas intenções não assumidas. Ora foi precisamente num momento de descontracção, num jantar com centenas de pessoas que terá ocorrido há quase 20 anos, que me calhou ouvir este desabafo a um António Costa que já tinha sido ministro mas ainda não fora presidente da Câmara de Lisboa: “Em Portugal só se fazem reformas com muito dinheiro”. Não sei se estou a citar as palavras exactas, mas o sentido é este, ou seja, sem dinheiro para comprar a boa vontade de funcionários ou de eleitores, em Portugal nem vale a pena tentar fazer reformas.

Como imaginam, tenho recordado estas palavras inúmeras vezes nos últimos anos ao assistir à resistência – não encontro outro termo – de Costa a tudo o que sejam reformas. Ele até já chegou ao ponto de se manifestar contra o conceito de “reformas estruturais”, disse que até a expressão o “arrepiava”.

O que se passou então para agora, sem aviso prévio, o governo de António Costa se preparar para propor uma reforma do nosso sistema de pensões? O que é que aconteceu para o homem que não gosta de reformas ir iniciar uma reforma precisamente quando soam sinais de alarme sobre o fim do tempo do dinheiro fácil e barato?

A resposta é simples: o dinheiro está a acabar-se e, como um dia notou Margaret Thatcher, “o socialismo acaba quando termina o dinheiro dos outros”. Com uma pequena nuance: o dinheiro ainda não se acabou, este ano até há bastante dinheiro, por isso ainda é possível fazer um número de prestidigitação. Exactamente o que António Costa fez esta semana ao apresentar o pacote de medidas a que pomposamente chamou “Famílias Primeiro” (o PS continua muito bom na propaganda).

Já discuti esta semana, com a Helena Matos, no Contra-corrente da Rádio Observador, não só “os logros e a propaganda” deste pacote de medidas, como depois discutimos, com a ajuda de especialistas, aquilo que considerámos ser a forma como António Costa se deixou enredar na trafulhice das pensões. Aí tratámos de explicar, sem margem para dúvidas, que a solução apresentada representa um corte efectivo das pensões a partir de 2024, um corte que, a existir uma nova fórmula de cálculo, ainda pode ser maior do que hoje se imagina.

Tal como as coisas estão não há lugar para fugas à dura realidade: a partir de 2024 todos os pensionistas terão um corte permanente nos seus rendimentos equivalente a cerca de meio mês de pensão. Nunca os governos de Passos Coelho tentaram sequer algo tão radical. Mas, como referi atrás, percebe-se porque é que isto vai ser assim.

Primeiro, como o governo reconhece, o dinheiro está-se a acabar. A reforma Vieira da Silva adiou o colapso do sistema público de pensões, mas não resolveu nem a sua sustentabilidade, nem a sua iniquidade intergeracional. Há quem ande a dizer isto há anos sem ser ouvido, agora que os números grossos da inflação tornam o problema mais evidente, Costa e os socialistas dão por fim ouvidos aos que antes classificaram de alarmistas. Agora até são eles que tentam ser alarmistas.

Depois, antes de o dinheiro se acabar ainda houve, está a haver, em 2022, uma chuva de euros por causa do efeito conjugado da inflação e de um agravamento fiscal furtivo. De 2021 para 2022, só nos primeiros seis meses a cobrança fiscal aumentou 5,5 mil milhões de euros, bem acima dos 3,5 mil milhões previstos. É como um bodo aos pobres, mas em fim de festa.

Finalmente, tendo um problema pela frente, o governo tentou o tal truque de prestidigitação: antecipou para Outubro o pagamento de uma parte do aumento devido nas pensões de 2023 e disse que com isso estava a acorrer às necessidades dos pensionistas. Do ponto de vista orçamental, usa-se em 2022 uma parte do excedente (um pouco mais de mil milhões de euros, o que custa aos cofres públicos a meia pensão a entregar em Outubro) e poupa-se sensivelmente o mesmo no orçamento de 2023, um Orçamento onde provavelmente vai ser mais difícil arredondar as contas.

De caminho, cria-se a ilusão de que se está a dar um bónus em Outubro quando na verdade esse bónus é logo descontado em 2023 e, a partir de 2024, passa a ser o tal corte definitivo nas pensões.

Como o truque não passou despercebido, o governo adoptou um discurso contraditório – por um lado diz que não haverá qualquer corte nas pensões, por outro diz que sem mudar a fórmula de cálculo (ou seja, sem cortar no valor real das pensões) está em causa a sustentabilidade da Segurança Social.

É uma trapalhada que não deixará de prejudicar gravemente a discussão sobre a reforma do sistema de pensões, mas uma trapalhada inevitável se pensarmos que não vai haver dinheiro e António Costa, lá no seu íntimo, acha que sem dinheiro não se fazem reformas.

Não só acha como pratica, e muito por causa disso não aproveitámos os anos com o vento de feição, como ainda esta semana voltou a recordar o Rui Ramos, para mudar o tinha de ser mudado na nossa economia e no nosso Estado. Como não o fizemos, empobrecemos em termos relativos. Como estamos mais pobres, temos menos dinheiro. E como continuamos e continuaremos a ter Costa, já estão a ver para onde caminhamos.

 

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