domingo, 30 de abril de 2023

P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA um guerreiro


Talvez condenado à derrota, mas ele tudo fez pela vitória dos seus princípios morais e merecedor de um grande Bravo! - por este texto escrupuloso, condenado à derrota, contudo, num terreno sem escrúpulos. Também a maioria dos comentadores se apressa a sustentar esse seu conceito contra a perversidade de uma tal proposta de lei, mas há sempre os da mente suja a contestar, com as suas razões da força e hipocrisia do actual poder, a merecer forca.

Pôncio Pilatos Presidente?!

Qualquer que seja a atitude a tomar pelo Presidente da República, a sua decisão marcará, para sempre, a sua consciência e o seu mandato presidencial.

P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA Colunista

OBSERVADOR, 29 abr. 2023, 00:1727

Há dois tipos de políticos: os que se regem por princípios morais e os que actuam em função das conveniências, ou seja, os PPP, ‘Políticos Pôncio Pilatos’ (Observador, 9-1-2021).

Pôncio Pilatos, apesar de ter condenado Jesus à morte, era um bom homem, mas não, decididamente, um homem bom. Ele fez quase tudo o que podia para libertar Cristo, excepto o que devia ter feito, que era libertá-lo, por saber que estava inocente. Um bom homem faz coisas boas, mas não faz o bem, que só um homem bom é capaz de fazer.

De facto, Pilatos fez muitas coisas boas. Por exemplo, inicialmente não quis julgar Jesus, por se tratar de uma questão religiosa, em que não era competente.

Para ultrapassar este inconveniente, os sacerdotes alteraram a queixa, dizendo que Jesus de Nazaré se intitulava Rei dos Judeus. Este título punha em causa o imperador romano e, por isso, o seu representante não poderia ficar indiferente. Cristo confirmou a sua realeza, mas, como não atentava contra a dominação romana na Palestina, não se justificavam medidas repressivas contra o inofensivo Rei dos Judeus.

Depois, Pôncio Pilatos enviou Jesus a Herodes porque, sendo de Nazaré, que fica na Galileia, estava sob a sua jurisdição. Mas Herodes, não tendo conseguido que Jesus lhe respondesse, devolveu-o a Pilatos.

Mais tarde, como era costume conceder, por ocasião da Páscoa judaica, a amnistia de um condenado, Pilatos pensou recorrer a esta tradição, para libertar o Nazareno. Também não resultou, porque a multidão, devidamente manipulada, pediu a libertação de Barrabás e a condenação de Jesus.

Esta sucessão de malogros evidencia a boa intenção de Pôncio Pilatos, mas também a sua fraqueza e cobardia. Sabia que Jesus era inocente e que, portanto, o não podia condenar à morte. Mas deixou-se vencer pelo medo e, em vez de seguir a sua consciência, preferiu agradar à multidão.

Há uns anos, um jornalista, pouco versado em questões bíblicas, referiu-se a um barco com lixo tóxico que procurava um porto que o recebesse. Mas, em vez de usar a expressão proverbial ‘de Anás para Caifás’, disse que o dito andava de Pôncio … para Pilatos! A gaffe era certeira, pois expressava a duplicidade do magistrado romano, dividido entre as exigências da sua consciência e as conveniências políticas.

As idas e vindas de Jesus, bem como os expedientes utilizados por Pôncio Pilatos para evitar uma decisão que, embora evidente em termos éticos, lhe era politicamente penosa, evocam as idas e vindas do diploma que pretende despenalizar e legalizar a eutanásia. Neste conturbado processo, a Assembleia da República (AR) tem-se portado como o novo Sinédrio; o Tribunal Constitucional (TC) é como se fosse o sumo sacerdote Caifás, ao qual competia aplicar a Lei de Deus; e o Presidente da República (PR), a quem cabe a decisão final, representa o papel desempenhado por Pilatos.

Talvez alguém possa objectar que o Chefe de Estado não pode deixar de promulgar o diploma em causa, se ele for confirmado pela maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções. Contudo, à pergunta: “Caso o Parlamento envie novamente para a Presidência da República a lei tal como está, sem alterações, o Presidente é obrigado a promulgar?”, o Professor Paulo Otero, Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, respondeu: “A meu ver não é. O Presidente não é obrigado a promulgar, por duas ordens de razões. Primeiro, porque ainda pode desencadear a fiscalização preventiva, e o fundamento deste veto político abre caminho para essa possibilidade. Segundo, a meu ver, o Presidente pode, por razões de objecção de consciência, recusar legitimamente a promulgação.” (Rádio Renascença, 19-4-2023). Com efeito, embora o nº 6 do artigo 41º da Constituição afirme que “é garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei”; no seu nº 1 diz-se que “a liberdade consciência, de religião e de culto é inviolável”.

Mesmo que tenha essa prerrogativa constitucional, a não promulgação não seria um desrespeito pela AR, como afirmou a deputada socialista Isabel Moreira? Sucede que os deputados, que votaram a legalização da morte medicamente provocada, não o fizeram enquanto representantes dos seus eleitores, porque uma tal questão não foi ‘referendada’ nas últimas eleições legislativas e os dois maiores partidos, PS e PSD, deram liberdade de voto aos seus deputados que, portanto, votaram, apenas e só, em função das suas convicções pessoais, ou seja, de acordo com a sua consciência.

Assim sendo, também o Chefe de Estado, nesta matéria, pode e deve actuar de acordo com a sua consciência e em função dos seus próprios princípios éticos e morais, conhecidos pelos portugueses que, por esta razão, o elegeram e reelegeram para o cargo que ocupa. Decerto, o PR defraudaria o país se, em vez de proceder com a coerência que agora se lhe exige, actuasse em função de critérios de alegada oportunidade política.

A este propósito, não será demais recordar que o actual diploma viola o artigo 24º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece, sem excepções, a inviolabilidade da vida humana – “a vida humana é inviolável” (nº 1) – como recordou o Desembargador Pedro Vaz Patto, Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (RR, 19-4-2023). Mais ainda, em termos técnicos, este diploma, não obstante os reparos do PR e do TC, ainda padece de numerosas deficiências. Como muito bem aqui escreveu a jurista Teresa de Melo Ribeiro (“A legalização da eutanásia não trará paz, nem terrena, nem eterna”, Observador, 19-4-2023), são tantas as insuficiências técnicas do texto que o PR, se quisesse, não teria nenhuma dificuldade em encontrar numerosos fundamentos, de natureza estritamente jurídica, para se opor à promulgação desta inaceitável lei.

Para além da questão política, constitucional e legal, o PR não pode deixar de ser sensível à questão ética e moral, que interpela o fiel Marcelo Rebelo de Sousa. Mesmo que estivesse obrigado a promulgar por um imperativo constitucional, legal, ou político, o que, como se disse já, pelo menos para alguns constitucionalistas de reconhecido mérito, não acontece, um cristão coerente não pode propor, nem aprovar, nem muito menos promulgar um diploma que viola directamente o 5º Mandamento da Lei de Deus: “Não matarás” (Ex 20, 13; Mt 5, 21). É pena que ainda ninguém, com mais autoridade, o tenha dito publicamente, com a frontalidade e coragem profética de João Baptista, que, sem vergonhosas tibiezas, nem cobardes cedências às conveniências políticas, censurou, em público, o imoral Herodes.

Qualquer que seja a atitude a tomar pelo Presidente da República, a sua decisão marcará, para sempre, a sua consciência e o seu mandato presidencial. Pode ser esta a ocasião para que passe à História como um Chefe de Estado digno da sua condição cristã e do país que o elegeu e reelegeu. Ou então, fazendo sua a lei que despenaliza e legaliza a morte a pedido, promulgando-a, assuma essa culpa moral e fique para sempre reduzido à insignificante dimensão de um mero PPP, ou seja, Pôncio Pilatos Presidente.

EUTANÁSIA   SAÚDE   PRESIDENTE DA REPÚBLICA   POLÍTICA

COMENTÁRIOS:

Soeiro: Segundo S. Paulo sem Ressureição não há Cristianismo, logo, sem Pôncio Pilatos não haveria Cristianismo.             José Paulo C Castro: O TC já provou que irá fiscalizar a lei de forma a que passe. Com o novo presidente, ainda mais. Tudo que o PS quiser passará, todas as decisões da justiça que envolvam políticos serão bloqueadas. Portanto, se o PR pedir a fiscalização e o TC aprovar, as mãos ficam bem lavadas. Demitir-se não é com ele. Vai é receber o Papa nas JMJ com o espectro de ter promulgado a eutanásia. Será divertido ver a retórica. Outra hipótese é o TC apontar umas correções menores e ele dissolver a AR antes da promulgação e tentar que se crie um limbo legal qualquer. Seria oportunismo, ao misturar questões, mas pode acontecer.            Anastácio Jorge: Já deu para perceber que Marcelo vai promulgar … e logo depois estará numa cerimónia católica a comungar .. e assim será nas jornadas mundiais da juventude                Francisco Almeida: Das duas vezes anteriores, Marcelo apenas invocou questões de ordem técnica dirigidas já à aplicação da Lei. Nem questões de ordem constitucional nem de objecção de consciência. Ao contrário do que preconiza o Pe. Gonçalo, não poderá agora fazê-lo sem revelar incoerência, com a consequente baixa de popularidade. Poderá sim, pedir a fiscalização preventiva ao TC mas, para isso e para o que se irá ainda ver, o PS já conseguiu colocar José João Abrantes, como presidente, com voto de qualidade. Habituem-se.               Pedro de Freitas Leal: Forte e autêntico! Parabéns pela sua frontalidade. Gostei muito.                   Marco Botelho de Sousa: Quem são os candidatos? Pilatos, Herodes, Felipe, Arquelau Gaio Júlio César Octaviano e Tibério?              João Ramos: Boa analogia, mas a característica de Poncio Pilatos em Marcelo, não se restringe apenas ao caso da eutanásia mas sim a todo o seu consulado como presidente da República!!!              Carminda Damiao: Óptimo artigo. A nossa consciência deve prevalecer acima de tudo. Marcelo como católica, nunca deveria promulgar esta lei.               bento guerra: Este Tramontano não desiste. Marcelo é professor de Direito, deve conhecer melhor as leis do que os zelotes amigos deste pastor                    Joaquim Lopes > bento guerra: Professor de Direito mas que pouco sabe do que ensina, ele é mais comentador sobre Direito Constitucional é um zero à esquerda, parece que é sobre isso que ensina, não tem bases nem conhecimento e o que o autor do artigo diz é baseado em interpretações de peritos de Direito Constitucional sobre o Projecto de Lei em causa que por acaso é uma questão que não pode, nem deve, ser entregue a maiorias de ocasião, depende de facto da consciência de cada pessoa e Marcelo ou quem diz que será obrigado a promulgar, é mentiroso e manipulador. Um pouco de tino no caso fazia bem, mas é coisa impossível para um bento que deveria mudar de nome.          bento guerra > Joaquim Lopes:  Não esperava esse comentário ofensivo da sua parte, mas a arma do teclado dá muito jeito aos descabelados Alberto Pereira: Excelente artigo. Consoante o que Marcelo fizer vamos ficar a conhecê-lo melhor.            Jose Almeida > Alberto Pereira: Acho que já o conhecemos o suficiente para calcular o que ele vai fazer Quem está a mandar em Portugal, através do PS e restantes partidos de esquerda, é a NOM que pretende matar, matar e matar seja quem for e à custa do que for, porque o objectivo é diminuir a população porque esses monstros acham que somos muitos no planeta e por isso, como têm muito dinheiro, julgam-se donos de tudo, e com o direito de decidir quem deve morrer e quem pode continuar a viver! Os deputados da AR não pretendem fazer o trabalho deles que seria governar Portugal, mas sim trabalham para as elites financeiras, que são desprovidas de sentimentos, de valores e de moral! O mundo está entregue a Satanás, e estes nossos governantes, venderam-se! O que podemos esperar? Destruição, guerra, terrorismo, mentiras, corrupção, suicídios, assassinatos, miséria, fome, etc... Quem não está com Deus, também não consegue ver mais longe porque as trevas do inimigo lhe ofuscam a mente! Só a luz do Espírito Santo nos pode levar pelo caminho da Verdade e da Vida.                Hipo Tanso > Maria Emília Ranhada Santos: Não comungando da sua confissão religiosa, concordo com tudo o que escreveu. A NOM tem contaminado toda a actividade política essencial praticamente em todo o mundo.             José Miranda: Vamos ver o que faz o Marcelo. Se promulgar a lei, pode-se concluir que tudo fez para que se dissesse que não podia fazer outra coisa. Se assim for, também se pode concluir que engana a todos, mas não engana a Deus               Lúcio Monteiro:  “Neste conturbado processo, a Assembleia da República (AR) tem-se portado como o novo Sinédrio; o Tribunal Constitucional (TC) é como se fosse o sumo sacerdote Caifás, ao qual competia aplicar a Lei de Deus; e o Presidente da República (PR), a quem cabe a decisão final, representa o papel desempenhado por Pilatos” (padre Portocarrero). Se o padre Portocarrero fosse coevo de Pilatos, este não escaparia de ser pressionado por ele. É o que acontece agora com Marcelo que, para este cronista, não passa de um Pôncio Pilatos redivivus, que, necessariamente, tem de chumbar o diploma sobre a despenalização da eutanásia. Quanto à Assembleia da República, não passa de um repulsivo “Sinédrio”, que não merece – para o cronista – senão desprezo. Só que se esquece que a Assembleia da República é o único órgão de soberania cuja principal função é legislar. No que concerne ao referido diploma, este órgão de soberania tem recebido trato de polé, quer da parte do Presidente da República, quer da parte do Tribunal Constitucional. Este diploma tem andado em bolandas, ou seja, de Anás para Caifás, tal como aconteceu com Jesus Cristo. Aqueles que estão unicamente focados e amordaçados aos ditames da Igreja Católica - como Marcelo, o padre Portocarrero e os demais da tribo deles – estão-se marimbando para o sofrimento dos únicos destinatários do diploma da despenalização da eutanásia, ou seja, os doentes terminais, que assim se veem impossibilitados – no caso desta lei não entrar em vigor – de pôr termo ao seu sofrimento, não só desnecessário como irreversível. Não será assim tão difícil de prever o destino que está reservado a este diploma: Marcelo não o promulgará, simplesmente, porque este está ao serviço de dois “senhores” – a Igreja Católica e a Constituição da República. Mas que, na situação de conflito de interesses, não hesita uma única vez sequer em cumprir os ditames da Igreja Católica. Ele, mais do que ninguém, se devia lembrar de um dos ensinamentos evangélicos, segundo o qual, ninguém pode servir a dois senhores, sem cometer iniquidades. A nossa actual democracia, em muitas situações, é apenas um simulacro, já que a influência da Igreja Católica na sociedade portuguesa é de tal forma tentacular e perversa, que até leis emanadas de um órgão de soberania, como a Assembleia da República, chegam a ser descartadas e atiradas na sarjeta.         Jose Marques > Lúcio Monteiro: O homem de negrito ataca de novo! Hoje deixou cair o enxofrado pseudónimo "Amon Ra" que usou nos últimos vómitos contra o Pe GPA. E, pelo que se vê, repete à saciedade os pretensos argumentos de sempre, numa toada monocórdica, aleivosa, manipuladora, por onde vai destilando o rancor e ódio ao Pe e à ICAR. Ó Lúci(o)fer, vai de retro e desampara a loja!             Vitor Batista > Jose Marques: Não deixa de ser sintomático o homem de negrito ter usado o pseudónimo Amon Ra, o deus Egipcio da Antiguidade, serviu para atacar e muito Portocarrero de Almada.         Viktor > Lúcio Monteiro: Continua a abusar do bold ! Isso é gritar!              Horácio Félix > Lúcio Monteiro; Matar é sempre matar, chame-lhe o que quiser.               Jota Mamba: Marcelo é um homem virado para a "imagem" (ou não fosse ele o Marcelfie), não é um homem de carácter exemplar porque se o fosse sabia que Deus está primeiro que a Pátria e a Pátria antes da Família, ou seja, se a tua família te pede para negares a pátria então desobedece à família, ou se a tua pátria te pede para negares Deus então desobedece à pátria. E um católico para ser católico tem que perseguir o carácter exemplar. Vamos ver se o Marcelo é católico.                  Alexandre Barreira: Pois. Mas como é sabido. Até ao lavar dos cestos. É vindima. E se o PR não abusar do "bagaço". A "coisa" até pode ficar em "banho-maria"....!     manuel rodrigues: Haveria ainda outra solução que, julgo, a todos contentaria: a demissão.             Hipo Tanso > manuel rodrigues: Acho que será melhor sentar-se, MR.               manuel rodrigues >Hipo Tanso: Acho , com franqueza, que está cheio de razão              Coronavirus corona: Há uns tempos pensei exactamente o mesmo que vem descrito nesta crónica. Marcelo pode ser de facto um presidente singular, único e que ficará conhecido para sempre pela sua coragem (ainda que a política de terra queimada lhe destrua a imagem) ou vai atrás da popularidade e não passará de mais um.             António Antunes: Não vejo como pode uma pessoa pôr a sua assinatura num édito qualquer que viole de maneira grave a sua consciência. Não assinava e acabou-se. Ainda não ouvi nenhum jurista explicar o que acontecerá se o Presidente da República se recusar a assinar o tal decreto. É destituído? Vai preso?                Alcides Longras: Marcelo Rebelo de Sousa é um católico e um político. Mas é as duas coisas por uma ordem bastante clara: a da popularidade. Objectar esta questão condená-lo-ia a uma perda de popularidade, fruto de anos de encenação pública, que não suportaria. Muito desejo estar errado, mas a probabilidade é baixa.

 

sábado, 29 de abril de 2023

Repondo as verdades


Para obstar às inépcias da toleima nacional, de falsidade embrutecedora. Como os seus comentadores, também agradeço a hombridade corajosa de Jaime Nogueira Pinto. O poder agora reside na desordem generalizada, da conveniência de quem manda, para melhor dissimular os seus próprios jogos de compadrio e farsa.

#NÃOPODIAS

Estando, neste regime e neste país, preparado há muito para tudo, confesso que fiquei, por uma vez, surpreendido.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 29 abr. 2023, 00:194

Pensei, em primeiro lugar, que se tratava de uma manobra da reacção, de uma campanha engendrada por saudosistas do fascismo, sepultado há 49 anos, e que, para desacreditar o regime democrático, tinham publicado, como que vindos de genuínos antifascistas delirantes, os cartazes e as frases do Antes do 25 de Abril #NãoPodias.

Mas não. Era mesmo uma campanha institucional, presumo que generosamente financiada, com o objectivo deDar ênfase às liberdades conquistadas com a revolução dos cravos, mostrando aos mais novos o que não se podia fazer antes do Dia da Liberdade”, porque “Conhecer a História é imprescindível para compreender o presente e construir o futuro.

Trata-se nitidamente de uma campanha de Acção Psicológica que cumpre um duplo objectivo: entreter os mais novos, sensibilizando-os para a amordaçada existência juvenil dos agora “idosos”; e surpreender os que, antes do Dia da Liberdade, já tinham atingido a “idade da razão”. Não sei quem tem a responsabilidade da campanha, mas, se fosse seu correligionário, ficaria seriamente preocupado.

Senão, vejamos algumas das coisas que não podíamos fazer antes do 25 de Abril:

#NãoPodias esperar pela namorada ao sair das aulas

Lamento desiludir os mais novos, mas não foi a revolução dos cravos que veio acabar com o “namoro de janela”. Eu andei, no Porto, no Liceu Normal de D. Manuel II, um óptimo estabelecimento de ensino onde tive excelentes professores, geralmente de esquerda, que me marcaram profundamente pelo seu saber, amor à profissão e atenção aos alunos. No fim das aulas, íamos em bando para a porta do vizinho liceu feminino Carolina Michaellis ver a saída das “miúdas”. Alguns, os que ali tinham namoradas, iam buscá-las e acompanhavam-nas a casa. Outros, ficávamos a ver, a conversar e a tentar a sorte, por vezes através de piropos, geralmente decentes e inocentes (coisa que hoje #NãoPodes).

#NãoPodias beber vinhos francesesnão podiam entrar no mercado nacional bebidas estrangeiras

Bebia-se whisky, sim, e não era nacional; e, pelo menos nos bons restaurantes de Lisboa e do Porto, havia vinhos franceses. É natural que nesse período, anterior à entrada de Portugal no Mercado Comum, houvesse impostos altos para proteger a produção nacional, que era de boa qualidade. Enfim, não beber vinhos franceses podia ser uma provação infligida pelo antigo regime, mas a revolução dos cravos só nos veio libertar dela com a entrada na CEE. Agora, embora haja vinhos franceses relativamente baratos em qualquer supermercado nacional, representam um grande #NãoPodes para um número cada vez maior de portugueses (a par de muitos bens de primeira necessidade).

#NãoPodias ver um filme dobrado

Lá isso é verdade. Ao contrário do que acontecia no Brasil e em Espanha, países onde vivi no exílio depois do 25 de Abril (porque #NãoPodias não gostar de cravos vermelhos), os filmes em Portugal não eram dobrados, e a prática, graças a Deus, continuou com a democracia. O argumento avançado pela campanha de que a legendagem ajudava à censura é, no mínimo, insólito, pois quem fazia a dobragem também teria de ler um texto e a legendagem permitia até a comparação com o original. Na altura, vi muito filme com muita legenda em Portugal, mas nunca vi traduzir-se “extrema-esquerda” e “ultra-esquerda” por “extrema-direita” e “ultra-direita”, como há dias na reportagem da RTP sobre as manifestações de França.

#NãoPodias ter as pernas à mostra nas praias

A grande revolução dos costumes não se deu com a revolução dos cravos, deu-se bem antes, nos anos 60, com os Beatles, o biquíni, a mini-saia, os grupos yé-yé. Lembro-me de que, até ao final dos anos 50, até para os homens havia uma regra nos fatos de banho, que tinham de ter uma espécie de peitilho; mas isso acabou por volta de 1960. E bem antes do 25 de Abril já se usavam biquínis nas praias portuguesas. Tive muitas amigas e conhecidas que usavam biquíni nesse tempo. O “Biquíni pequenino às bolinhas amarelas” era aqui cantado, desde os anos 60, por Pedro Osório e Seu Conjunto; e todos conhecíamos o “biquíni encarnado” que, em 1968, Natércia Barreto levava para a praia juntamente com o rádio portátil e os óculos de sol (além do pente, do espelho, do bâton e do “creme muito bom”). Não é difícil deduzir que houvesse também pernas à mostra. Mas a comissão para a comemoração do 25 de Abril, lá saberá de outras praias, talvez no Mar Negro ou no Báltico da RDA, onde os costumes seriam mais vigiados.

#NãoPodias sonhar com um curso

A taxa de escolaridade e frequência de cursos médios e superiores era com certeza inferior à de hoje, como em qualquer país europeu. No entanto, os licenciados não tinham de emigrar porque #Podiam sonhar com um emprego em Portugal.

#NãoPodias viajar sem autorização

Outra vez, o redactor desta frase deve estar a confundir o Portugal de antes de Abril com a então União Soviética… Independentemente do facto de, há 50 anos, aqui e no resto do mundo, se viajar muito menos, sobretudo para o estrangeiro, no meu caso concreto – e de todos os jovens que tínhamos feito 20 anos e estávamos a aguardar a incorporação militar –, tínhamos de pedir autorização para deslocações ao estrangeiro; mas o resto era livre. Quanto às mulheres casadas, foi antes da revolução que deixaram de precisar do aval do marido para viajarem sozinhas.

#NãoPodias ler o livro que quisesses

Havia alguns livros proibidos ou retirados de circulação, ora por razões políticas, ora por serem considerados moralmente impróprios. Mas quem tivesse vontade de ler, lia. Li as principais obras de Marx e Lenine em francês ou em edições brasileiras. Os escritores esquerdistas e comunistas, franceses e italianos, estavam todos na edição corrente. Quanto à “moralidade”, li a Lolita, de Nabokov, e O Amante de Lady Chaterley, de D.H. Lawrence, entre os 15 e 16 anos, no Livre de Poche.Agora há livros que só se podem ler quando devidamente expurgados pelos novos censores (que não existem, porque #VivemosEmDemocracia).

#NãoPodias falar com um grupo de amigos na rua

Esta “História” (de não poder falar com um grupo de amigos na rua) é verdadeiramente “imprescindível para compreender este presente.”

#NãoPodias votar

Podia-se votar, os adultos maiores de sexo masculino e as mulheres licenciadas ou cabeças de casal podiam votar… só que, de facto, o governo ganhava sempre as eleições (PS: Felizmente, temos agora liberdade de voto e muito por onde escolher, como se pode ver). Antes da Revolução não havia partidos políticos, o regime era autoritário e havia censura. Mas sabia-se que havia e o que aquilo era, para efeitos de confronto.

#NãoPodias beber Coca-Cola

Não havia, de facto, Coca Cola em Portugal. Foi proibida no tempo da I República pelo Professor Ricardo Jorge por causa de a marca não facultar publicamente os ingredientes. Quanto à embirração de Salazar com a Coca Cola tem uma história curiosa, ligada a um administrador da dita marca que veio a Portugal e, pensando que estava numa república das bananas ou no Portugal de hoje, tentou subornar o próprio Presidente do Conselho… No Portugal pós-revolucionário, no seu período mais eufórico, o entusiasmo com a entrada no País da “água suja do imperialismo americano” também não foi unânime.

#NãoPodias adoecer

Só entre os anos 70 e 80 se generalizaram na Europa os Serviços de Saúde universais. Agora, felizmente temos SNS, mas dado o estado a que chegou nos últimos anos #ÉMelhorQueNãoAdoeças.

#NãoPodias dizer “vermelho”

Quanto custou este cartaz? O orçamento já deve estar a bater no vermelho. No Porto sempre se disse e, em Lisboa, era mais uma questão social, como, de resto, ainda é. Dizer ou não dizer “vermelho” ou “encarnado” não é nem nunca foi uma questão política.

#NãoPodias namorar na rua

Não fiz outra coisa – eu e toda a minha geração. Na rua, na faculdade, nos cafés.

#NãoPodias manifestar-te

É um facto. No Estado Novo todas as manifestações de rua tinham de ser autorizadas pelo Governo Civil. Agora, basta avisar a Câmara Municipal. Pode também dizer-se que, então, as manifestações não eram propriamente encorajadas, dado que não havia muitos direitos políticos. Mas havia direitos civis. Apesar disso vi, desde o liceu, muitas manifestações estudantis e entrei em algumas.

#NãoPodias fazer parte da Europa

Felizmente, não fazíamos parte da Europa do Pacto de Varsóvia, mas estávamos na EFTA, Associação Europeia de Comércio Livre. Ao tempo, o Mercado Comum tinha apenas nove membros: Alemanha, França, Itália, Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, Dinamarca, Irlanda, Reino Unido.

#NãoPodias discordar

Agora podemos discordar. E até perguntar: a quem foi entregue esta campanha? Qual o orçamento desta Comissão, paga por nós todos? Chegou-se a isto por consenso político? A escolha foi por concurso público? #PodesDiscordarOuPerguntar mas #NinguémTeVaiResponder.

Estando, neste regime e neste país, preparado há muito para tudo, confesso que fiquei, por uma vez, surpreendido.

A SEXTA COLUNA   PAÍS   HISTÓRIA   CULTURA   25 DE ABRIL

COMENTÁRIOS:

Fernando CE: Esqueceu-se dos fósforos e dos isqueiros….para proteger a indústria nacional. Na democrática França e embora tivesse caído em desuso antes, há duas décadas, revogou-se uma lei que proibia as mulheres de usarem calças. E na democrática Inglaterra em 1948 condenou-se o homossexual Alan Turing em castração química, tão só por essa sua orientação sexual. Este último foi o inventor do Codebreaker que desvendou as comunicações secretas dos nazis e que hoje é considerado um herói nacional reabilitado há menos de uma  década pela rainha Isabel Ii.            Rui Lima: São cartazes ridículos, o 25 de abril fala por si não precisa de lavagens ao cérebro nem de campanhas culturais inspiradas nos valores maoistas. Muito bom!        GateKeeper: Excelente "lembrete" para nós, os mais velhos e um esclarecimento fundamental sobre o que nos "vai na ialma", para os mais novos. Haja alguém que sabe "pôr em texto" aquilo que "dizemos surdamente para dentro". Especialmente para aqueles e aquelas que comungam de um certo tipo e forma da amargura "envergonhada" de uma [ ainda viva] 'maioria silenciosa'. Obrigado JNP. Essa do #Não podias adoecer é típica! A Saúde só começou no pós 25 A, até então morriam todos doentes, depois do 25 A passaram a morrer na mesma ....Mas cheios de saúde! Estes pandilheiros querem convencer-nos que foi um tal advogado Arnaut que criou o SNS, que já estava criado desde o tempo da rainha D. Leonor com as Misericórdias, também existiam as caixas de previdência, as casas do Povo, dos Pescadores, mútuas e outras formas de protecção. O que o SNS faz foi "nacionalizar" essas estruturas que continuaram a funcionar tal qual funcionavam e que foram lentamente adaptando ao dito SNS. Olhem eu trabalhei em saúde no concelho de Fafe, fiz os postos médicos de Serafão, Queimadela e Sra da Lagoa, isto nos anos 70, aposto que nos dias de hoje, com o tal SNS o pessoal tem que ir á sede do concelho para ter uma consulta médica ou um serviço de enfermagem, querem apostar?              GateKeeper > Maria Augusta Martins: Não, porque sei há muito tempo que perdia a aposta.          Rui Guilhoto Loureiro: Brilhante texto! Isto é autêntico serviço público. Obrigado JNP.                 Ana Silva: Excelente artigo a desmontar a propaganda socialista. Entre o testemunho pessoal de Jaime Nogueira Pinto e algumas pinceladas de humor se descobrem as verdades. Obrigada.             Paulo J Silva: Excelente artigo como só o JNP sabe fazer! Seria bom que as direitas organizassem também eventos comemorativos nos 50 anos do 25 de Abril fazendo memória da verdade histórica, quer do que foi na realidade a autocracia do Estado Novo (que não era fascista), quer do que foi a revolução (que não foi dos comunistas) e o 25 de Novembro (que nos deu a democracia e a liberdade cumprindo as promessas de Abril). Não ao revisionismo histórico!                Ana Silva > Paulo J Silva: Apoiado!               S Belo: Que madrugador é o lápis azul ! Sete da manhã e já  me retiraram uma opinião completamente inócua, educada etc, etc..         S Belo > S Belo: Falava de uma campanha cujo alvo parece ser uma sociedade infantilizada e ignorante  manuel rodrigues: Excelente artigo, caro Jaime Nogueira Pinto! Espero, sinceramente espero, que venha a ser lido pelos jornalistas e demais colaboradores do Observador. Bem precisam.               Coronavirus corona: Excelente. Que grande crónica.               Jorge Barbosa: Muito obrigado ao JNP por mais uma vez, com este excelente artigo pôr a nu as mentiras idiotas que continuam a ser despudoradamente propaladas sobre o regime anterior, certamente que para esconderem os gigantescos insucessos da actual III República, até agora dominada pelo Centro esquerda.                Paulo Moreira e Silva: Muito bom! #keepcalm #estamosentreguesàbicharada

Uma trama bem urdida


Prestes a sair da arena governativa, Marcelo, que finge amar - amar perdidamente, aqui, além - na realidade de ninguém gosta, a não ser da sua própria pessoa, ridiculamente exibicionista. Não creio que ignore as críticas de que é alvo, embora finja isso, numa impassibilidade a que se sente a frieza, indiferente aos problemas e às pessoas. Este regabofe com Lula, (precedido dos passeios anteriores de Marcelo ao Brasil, com um exercício de natação num lago de jacarés em Brasília, com risco que precisou de ser supervisionado), julgo que lhe serviu – e a A.Costa - este, todavia, mais virilmente empenhado nas suas maroscas (mais cordatas) – julgo que não passou de uma vingança contra os portugueses e a nação portuguesa que finge amar. Vingança por saber que já não é mais apetecido, por lhe terem descoberto a impostura. Todo este maquiavelismo – primeiro com Lula, chamado despropositadamente ao 25 de Abril, após o sensacionalismo imbecilmente atrevido e ofensivo das declarações deste, de conserto bélico russo-ucraniano, e agora o discurso traiçoeiro sobre a escravatura portuguesa – assunto excelentemente tratado por JOÃO PEDRO MARQUES – pondo em risco a própria segurança económica e pacífica do seu país – parece desplante de loucura, se não, pura vingança senil contra os que há muito lhe descobriram a careca.

PARÊNTESE: Mas acabo de ler sobre a morte de Paulo Tunhas, aos 62 anos. Um escritor a quem o pensamento claro não faltou, que tantas vezes transcrevi do OBSERVADOR. Faço minhas as palavras dos primeiros comentadores, no OBSERVADOR:

OBSERVADOR, 29/4/2023: (há 22 minutos): Morreu Paulo Tunhas. Professor, investigador, escritor e cronista do Observador tinha 62anos: Professor universitário com um currículo de décadas ligado à área da Filosofia, deu aulas, publicou livros e contribuiu para vários jornais. Tinha 62 anos.             COMENTÁRIOS: Fernando CE: Foi com muita tristeza que recebi a notícia da sua morte. Adorava ler as suas crónicas. Que descanse em paz.      Luis Morais: Uma pena, um dos cronistas que mais prazer dava ler. Que descanse em paz.


Marcelo e a escravatura: Reprovado

Nunca se viu vontade do Brasil em pedir desculpa a Portugal por ter continuado a comprar escravos na África portuguesa, sabotando os frágeis esforços das nossas autoridades para estancar esse comércio

JOÃO PEDRO MARQUES Historiador e romancista

OBSERVADOR, 28 abr. 2023, 00:2137

Há cerca de três meses, Luca Argel, uma pessoa que se apresenta a si própria como “cantautor brasileiro radicado em Portugal”, veio incentivar Marcelo Rebelo de Sousa a pedir desculpa pela escravatura. Luca Argel fez esse seu desafio de duas formas engenhosamente combinadas: através de uma canção e de um artigo, que vieram a público exactamente no mesmo dia, num esplendor de estereofonia woke.

Terá Marcelo Rebelo de Sousa sido sensível ao apelo do cantautor brasileiro? Terá querido agradar mais uma vez ao visitante Lula da Silva e à sua comitiva que já estavam de partida? Terá sido vencido pela pressão da nossa extrema-esquerda ou por razões menos evidentes? Não sei responder. O que é certo é que, no seu discurso de 25 de Abril, na Assembleia da República, Marcelo, indo na corrente politicamente correcta destes tempos que vivemos, e falando como representante máximo do Estado português, pediu desculpa ao Brasil pela escravatura e, dando um passo maior que a perna, decidiu assumir “responsabilidades para o futuro” pela sua existência nesse território (e, também, pela exploração dos índios e pelo sacrifício dos interesses da colónia Brasil). Enfiou, assim, uma das várias carapuças que o Brasil anda há muito a tentar enfiar na cabeça de um velho país que foi colonizador. De facto, há uma antiga corrente de pensamento no Brasil que, sacudindo a água do próprio capote, tende a atribuir todos os malefícios e limitações de que o país sofre e sofreu ao antigo colonizador, e Marcelo deu gás e corda a essa corrente. Fez mal. Equivocou-se, pois ainda que seja eticamente aceitável ou, até, recomendável, não faz sentido histórico e é um salto político sem rede pedir unilateralmente desculpa pela escravatura a uma sociedade e a um país que a praticavam e continuaram a praticá-la já depois de se terem visto livres de Portugal.

Vejamos isso um pouco mais de perto:

Logo em 1823, no contexto de uma Representação a apresentar ao corpo legislativo brasileiro, José Bonifácio de Andrade e Silva, o patriarca da independência do novo país, encorajou os seus concidadãos a que pusessem fim ao crime do tráfico negreiro e fossem abolindo gradualmente a escravidão. Porém, não foi isso que, já liberto da tutela portuguesa, o Brasil fez. E não o fez apesar de, em 1826, ter assinado um tratado com o Reino Unido para suprimir completamente o tráfico de escravos. Esse tratado foi letra morta ou, como se dizia na época, foi apenas “para inglês ver”. As autoridades brasileiras não aplicaram a legislação anti-tráfico, fecharam os olhos à importação massiva de escravos e, por isso, de 1822 em diante, entraram 1,3 milhões de africanos escravizados no Brasil independente.

Em 1835, no contexto da revolta dos (escravos) Malês, o representante brasileiro em Lisboa, solicitou a cooperação portuguesa no combate anti-tráfico, mas, no final desse ano, passado que estava o susto da revolta, essa ideia caiu e não voltou a ser aventada. Ou seja, por norma, o Brasil não procurou chegar a acordo com Portugal para pôr fim à chegada de escravos, muitos deles provenientes de zonas da costa africana administradas ou reivindicadas por Portugal. Pior. Quando, a partir de 1840, a Armada portuguesa começou efectivamente a apresar navios negreiros brasileiros nos mares e costas de Angola ou de Moçambique, o governo português viu-se bombardeado por queixas do seu homólogo brasileiro, que considerava esses apresamentos ilegais por serem supostamente feitos fora das águas territoriais ou por outros motivos igualmente discutíveis. Em conformidade, e a fim de evitar desinteligências e pendências com o Brasil, os governos de Lisboa ordenaram aos comandantes navais portugueses que não apresassem navios brasileiros senão quando fossem incontestavelmente negreiros e estivessem fundeados ou pairando nas águas consideradas como pertencentes à Coroa de Portugal.

É verdade que entre Brasil e Portugal persistiam estreitas ligações e que uma parte do tráfico transatlântico corria pelas mãos de aventureiros portugueses residentes no Rio, em Salvador e noutras cidades brasileiras, mas só o Brasil estava em posição e tinha meios para pôr fim ao tráfico negreiro, como, aliás, ficou provado em 1850, quando, sob fortíssima pressão inglesa, os brasileiros aprovaram e começaram a aplicar a chamada Lei Eusébio de Queirós, que extinguiu efectivamente esse tráfico num curto espaço de três anos. O estado de escravidão, esse, manteve-se por mais 35 anos, sendo abolido apenas em 1888, o que significa que o Brasil foi o último país do Ocidente a pôr fim à escravidão no seu território.

Perante este quadro, a pergunta que coloco é a seguinte: faz algum sentido Portugal pedir desculpa ao Brasil pela escravatura? A meu ver, e excepção feita aos aspectos éticos da questão, não faz. Sobretudo quando nunca se viu (que eu saiba) qualquer vontade do Brasil em pedir desculpa a Portugal por ter continuado a comprar escravos na África portuguesa, sabotando os intermitentes e geralmente frágeis esforços das autoridades portuguesas para estancar esse comércio proibido.

Sempre fui contrário a pedidos de perdão por factos ocorridos há muito tempo. Esses pedidos terão carga política, ideológica e marcadamente religiosa, mas não têm razão de ser histórica. De qualquer forma, tem-se insistido, com frequência, em que sejam apresentadas desculpas a África, o continente que, por acção conjunta e muitas vezes simultânea de negociantes árabes ou berberes, de chefias da África subsariana e dos negreiros ocidentais, foi privado de milhões de seres humanos numa emigração forçada de enormes e trágicas dimensões. E, efectivamente, já houve dirigentes políticos ou espirituais que vieram, por essa razão, pedir desculpa a África e aos africanos. Mas pedir desculpa ao Brasil, “the very child and champion of the slave trade”, como lhe chamou, em 1822, o grande abolicionista inglês William Wilberforce, é uma novidade, suponho eu, e um absurdo só compreensível por voluntarismo, excesso de zelo e desejo de agradar.

Mais absurdo ainda, a meu ver, é assumir “responsabilidades para o futuro” pela escravatura. Que quer isto dizer? Quererá Marcelo arcar com os males dos outros e, à semelhança dos nossos activistas woke, transferir a responsabilidade histórica brasileira no que à escravatura diz respeito, para as costas largas do simpático e hospitaleiro Portugal? Marcelo Rebelo de Sousa não especificou o que é que estas “responsabilidades” implicam, mas isso pode funcionar como um cheque em branco. Adverti, logo ao terceiro ou quarto artigo que escrevi sobre este assunto, que a seguir aos pedidos de perdão viriam as exigências de reparações materiais, indemnizações financeiras e outras compensações. Esse risco existe pois estas declarações do PR, ainda que bem intencionadas e inseridas num bom discurso, globalmente correcto, foram mal pensadas e muito insensatas.

Aliás, se passaram relativamente despercebidas à generalidade dos nossos comentadores, elas foram imediatamente percebidas, valorizadas e politicamente exploradas no estrangeiro, onde estão em destaque nas agências noticiosas e sites internacionais, tendo sido ampliadas — ampliação que o próprio Marcelo sugeriu — para abarcar não apenas a relação de Portugal com o Brasil, mas todo o envolvimento português na escravatura. A cadeia Al Jazeera, por exemplo, noticia que Marcelo Rebelo de Sousa é o primeiro líder português a pedir desculpa pelo papel central que os portugueses tiveram no tráfico transatlântico de escravos, e a reconhecer que o país devia assumir responsabilidades por esse facto. No Brasil, como era expectável, Silvio Almeida, o actual ministro brasileiro dos Direitos Humanos e da Cidadania, rejubilou com as declarações do nosso PR. Considerou que Marcelo tinha dado “um passo extremamente positivo” e sublinhou, como se este assunto fosse alheio aos antigos brasileiros, e como se eles tivessem sido vítimas passivas das vontades do colonizador, que o Brasil continua a sofrer “os reflexos de uma herança da escravidão”.

Entre nós os activistas reagiram logo. A luso-moçambicana Paula Cardoso, fundadora da rede digital Afrolink, apreciou o simbolismo das palavras de Marcelo, mas lamentou que não tivessem sido acompanhadas por “medidas e compromissos” concretos. E Cristina Roldão veio, com o seu radicalismo habitual, zurzir o PR pelo que disse e pelo que não disse, por ter ficado aquém do que os activistas exigem, e por se ter atrevido a falar nas coisas boas que os portugueses também haviam feito, como se quisesse equilibrar o deve e o haver, e esquecendo que elas haviam sido feitas “pela bala, estupro e catequização jesuíta”.

Veremos o que o futuro nos reserva nesta área, mas, em pezinhos de lã e com toda a bonomia do mundo, no passado dia 25 de Abril de 2023 Portugal pode ter dado um tiro no próprio pé. Em Abril de 2017, de visita ao Senegal, Marcelo Rebelo de Sousa não atendeu às sugestões para que pedisse formalmente desculpa pelo envolvimento de Portugal na escravatura de africanos. O que fez foi lamentar a violência e iniquidade dessas práticas, mas recordou, também, que o nosso país abolira a escravatura no território metropolitano, em meados do século XVIII, se bem que só no século XIX tivesse alargado essa abolição aos territórios coloniais. Acrescentou que, ao fazê-lo, o país tinha reconhecido o que houvera de injusto e de condenável no “comportamento anterior”. Essas suas declarações foram muitíssimo criticadas pela esquerda woke, mas, do meu ponto de vista, foram adequadas e elogiei-o por isso num artigo intitulado Marcelo e a escravatura: 20 valores. Agora, no discurso que fez na Assembleia da República, o PR pediu desculpa ao Brasil pela escravatura — e, por analogia e extensão, a todas as outras antigas colónias ou províncias ultramarinas portuguesas — e decidiu assumir responsabilidades pela sua existência. Não sei o que o terá feito mudar de opinião, mas esteve mal. Esta sua nova posição é seguidista, historicamente absurda e, temo-o, politicamente desastrada. Não posso, por isso, deixar de reprová-lo.

BRASIL   MUNDO   ESCRAVATURA   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

klaus muller: Sem dúvida que esses africanos escravizados e transportados para as Américas foram uns desgraçados e devem ter sofrido horrores. Mas permitiram que aos seus atuais descendentes tenha saído a sorte grande.               Alfredo Vieira: A força da razão destes artigos é sempre um prazer de leitura. Obrigado! Lourenço de Almeida: Os antepassados dos brasileiros é que eram esclavagistas e não os nossos antepassados. Além de que continuaram a escravatura depois de independentes quando os nossos antepassados já a tínhamos proibido no nosso território.             Francisco Almeida: Em termos de ciência e fora da área do direito constitucional, Marcelo é um ignorante. E. na área do direito constitucional, sabe mas não exerce.     bento guerra: Sem a escravatura ,,não existiria o Brasil,mas o Marcelo é um pantomineiro           João Floriano: Não faz qualquer sentido Marcelo assumir responsabilidades para o futuro. Mais uma vez está a adiantar-se e a assumir compromissos que envolvem outros decisores políticos. Foi assim com o desastrado convite a Lula para discursar numa casa onde Marcelo não é o dono, a menos que os poderes estejam todos entrelaçados, o que até é verdade. O que daí resultou todos nós sabemos e as ondas de choque ainda não se acalmaram porque o grotesco encontro de amigos na sala de visitas foi visto e revisto pelos portugueses e cada vez mais eu acho aquilo mais parecido com uma sala de visitas do Júlio de Matos do que a troca de impressões de grandes figuras nacionais. Mas não apenas Marcelo deve ser apontado como tendo procedido mal. O Ministro da Cultura deu também um triste exemplo de completa submissão aos wokes brasileiros. Toda a visita de Lula está cheia de momentos insólitos em que não sabemos se havemos de rir ou irritar-nos. Este apontamento de Marcelo é mais um que nos pode acarretar altos custos porque o que esta gente quer é euros e só com muitos euros se lavam as ignominias do passado.               Paula Barbosa: Está a ficar completamente senil ! Faz pena assistir à degradação intelectual de uma pessoa tão culta, mas altamente calculista e verrinosa. Volte para sua casinha em Cascais e aos banhos na praia da Conceição e à missinha de Domingo, com o saco das esmolas partilhado com Lili Caneças.               Jorge Barbosa: Descontextualizar para se poder criticar os nossos antepassados, apenas para se tirarem dividendos políticos pessoais imediatos, é um acto eticamente execrável, o que dá conta da falta de caráter e da desonestidade pessoal de quem com estas ações pactua a sua acção presidencial.             Pontifex Maximus: Quando é que Marcelo exige que Itália se desculpe pela escravização dos povos ibéricos, lusitanos, cónios, turdulos, véteres, etc., etc. feita pela república / império romano? E a Tunísia pelo que os cartagineses fizeram por cá nesse domínio? E os alemães, pelas invasões suevas, vândalas e visigóticas? E os muçulmanos, não só aquando da invasão de 711 como depois da libertação do solo ibérico na guerra de corso, sobretudo contra o Algarve? Já agora, falta muito tempo para esse caramelo ir chatear outros?            Manuel Martins: No geral, concordo com o teor da crónica. Importa no entanto separar a abolição em lei da prática. A geração que viveu nas colónias antes do 25abril saberá certamente confirmar que existiam muitas situações que, não sendo escravatura, andavam lá perto ( por exemplo, o que se passava nas roças de café em São Tomé). Agora, também considero ridículo Portugal pedir desculpa ao Brasil na questão da escravatura, um pais onde existem muitos indícios que a escravatura ainda ocorre impunemente .          Denise Pereira > Manuel Martins: Se tiver oportunidade de visitar uma roça de café em São Tomé actualmente e trocar impressões com um trabalhador do tempo colonial vai ficar supreendido ..........             Fernando Magalhães: Novamente e como já é habitual, muitos parabéns por mais um notável artigo.

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