domingo, 23 de abril de 2023

Ventos assustadores


 Para o mundo. Na descrição magistral de J.N.P.

Ventos de França

Menos de um ano depois da eleição, Macron tem a opinião desfavorável de 69% dos franceses, e a única vencedora da crise das Reformas parece ser Marine Le Pen.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 22 abr. 2023, 00:1716

Emmanuel Macron tornou-se motivo de escândalo quando, no regresso da China, quebrou a unidade da cruzada das democracias e da NATO, ao afirmar que, no caso de Taiwan, a Europa devia ter uma política própria: “A autonomia estratégica deve ser o combate da Europa”, foram as palavras que usou.

Referindo-se aos malefícios do alinhamento incondicional com os Estados Unidos e da consequente falta de autonomia estratégica da Europa, o Presidente francês sublinhou que a Europa não podia cair “na armadilha” de chegar tarde “à clarificação da sua posição estratégica”, sob pena de ser “apanhada por um desregulamento do mundo” e enredada em crises alheias.

Para Macron, a França não deve entrar numa lógica de blocos – República Popular da China versus Estados Unidos da América – e deve mesmo evitar ser atirada para o confronto amarrada à América. Mais: para não ficarem “fora da História”, a França e a Europa terão de criar entre a América e a China um terceiro pólo.

As declarações do Presidente francês levantaram desde logo reacções adversas na Alemanha, na República Checa e noutros países da Aliança. Nos Estados Unidos, como seria de esperar, também não foram bem recebidas. Apesar do silêncio apaziguador da Casa Branca, políticos republicanos, como Marco Rubio, não pouparam o Presidente francês, e a imprensa conservadora, nomeadamente o Wall Street Journal, fez duras críticas ao que Donald Trump resumiu como “Macron’s kissing Xi’s ass in China”.

Além das especulações, explicações e justificações em que Macron, o Eliseu e o Quai d’Orsay têm sido generosos, o mais importante, como sublinhou Ted Snider em The American Conservative, está no comunicado conjunto, em que a China e a França se declaram empenhadas em “fortalecer o sistema internacional multilateral, sob a égide das Nações Unidas num modo multipolar”.

Paris demarca-se assim da “ordem liberal internacional” e da solidariedade transatlântica, para passar ao reconhecimento de uma “ordem multipolar”. Talvez até seja já essa a realidade, mas do ponto de vista da frente UE-NATO é uma quebra grave.

Quando a França desce à rua

Estará o Presidente francês a recorrer à política externa para salvar a situação interna? Macron está a viver uma grave crise, com a resistência sindical e popular à mudança do regime geral da idade da reforma dos trabalhadores, embora os números e as condições objectivas pareçam justificar a razoabilidade da passagem da idade da reforma dos 62 para os 64 anos.

Quando o sistema foi instituído, nos anos do pós-guerra, a expectativa de vida dos franceses, que é agora de 83 anos, andava pelos 66 anos; e se hoje, por cada reformado, não chega a haver dois trabalhadores activos (1/1,7) na altura o ratio era 1 para 4. A França tem uma dívida pública de três triliões de Euros, equivalente a 113% do PNB, o orçamento geral do Estado é de quase 60% desse PNB e 14% vão para as pensões. Comparativamente, a idade da reforma em França é também das mais baixas da União Europeia. Assim, a reforma do governo Macron – Élizabeth Borne, parece até razoável.

Mas para os sindicatos e para uma larga fatia da opinião pública é tudo menos razoável. Porquê? Talvez porque os franceses não precisem de muito para descer à rua. É uma tradição que vem dos tempos da Fronda, entre 1648 e 1653, quando os parisienses vinham para as ruas contra Mazarino e o jovem Luis XIV, levando o Rei, logo que pôde, a mudar a corte para Versalhes. Depois, vieram as revoluções – de 1789, de 1830 e de 1848. E no século XX, sobretudo nos anos 30, o Quartier Latin assistia às arruadas de comunistas, socialistas, monárquicos, nacionalistas e fascistas, que por vezes envolviam pancadaria, quase sempre contra a Polícia, com mortos e feridos. Depois da Segunda Guerra, a tradição continuaria a cumprir-se: nos anos 50, foram as manifestações contra e a favor da Argélia Francesa, e nos anos 60, o Maio de 68. Desaparecidas as colónias e as paixões políticas extremas, foi o tempo das “reformas sociais” e das “questões fracturantes”. Em Novembro de 1995, o Plano Juppé para a reforma da Segurança Social mobilizou os sindicatos da função pública e deu origem às maiores manifestações multitudinárias desde o Maio de 68. Seguiram-se, mais próximas, as paradas arco-iris, das pró LGBT às MANIF POUR TOUS.

Desta vez, quem está na linha da frente são as centrais sindicais das várias famílias político-ideológicas. Porém, na vanguarda da escalada da violência, perfila-se o líder da La France Insoumise, Jean-Luc Mélenchon, que parece querer suscitar uma “revolução social”, num regresso nostálgico aos bons velhos tempos de juventude, ou ao tempo em que cerrava fileiras com dois saudosos amigos e companheiros de caminho, Fidel de Castro e Hugo Chávez:

“É preciso não só conquistar o poder, mas exercê-lo de forma revolucionária. A conquista da hegemonia política tem um preâmbulo: é preciso transformar tudo em conflito” – dizia, já em 2012.

É com esta radicalização que a Nova Esquerda – convencida da verdade e da razão absolutas dos seus valores e princípios e ciente de que, através do voto popular, não chegará nunca ao poder – declara o sistema como destituído de legitimidade.

Um dos seus grupos, os Black Blocs (ecologistas radicais que actuam com a cabeça tapada por cagulas) tem vindo a misturar-se nas manifestações multitudinárias. São os Black Blocs, conjuntamente com outros grupos radicais, os principais responsáveis pela deriva violenta a que temos vindo a assistir em Paris e noutras cidades francesas. Foi a este propósito que, com a sua habitual independência, a RTP traduziu em legenda “extrême-gauche” e a “ultra-gauche” (a cuja violência se referia claríssima e inequivocamente o Ministro do Interior francês, Gérald Darmanin) por “extrema-direita” e “ultra-direita”. A ignorância poderá ser grande, e tende a sê-lo, mas dificilmente chegará a tanto…

Por um relógio de pulso

De qualquer modo, e independentemente da razoabilidade da lei da reforma, Macron parece conseguir, como ninguém, encarnar a ideia de um poder desligado do povo, excitando o fenómeno de repulsa popular pelas elites prepotentes e alienadas.

Um episódio anedótico mostra-o bem: numa entrevista televisiva, transmitida pela TF1 e pela France 2 em 22 de Março, o Presidente retirou do pulso o relógio, sendo imediatamente acusado nas redes sociais de usar um objecto de luxo de 80 mil Euros. O Eliseu desmentiu a história como fake news, acrescentando que o relógio de Macron era um simples relógio de 2.400 Euros, ou seja, um gadget ao alcance da bolsa do comum cidadão de classe média.

Macron foi eleito por duas vezes em segunda volta contra Marine Le Pen, em 2017 e 2022, obrigando uma esquerda contrariada a juntar-se ao centrão e aos liberais para “parar o fascismo”. Só que, aparentemente, as coisas começam agora a ficar diferentes.

Em 2022 Marine Le Pen teve 41,5% dos votos contra os 58,5% do vencedor. Menos de um ano depois da eleição, segundo uma sondagem da IPSOS publicada por Le Point, Macron tem a opinião desfavorável de 69% dos franceses. Pior que ele, só a sua Primeiro-ministro, Élisabeth Borne, que não consegue mais do que 23% de popularidade. Como os líderes da esquerda, com Jean-Luc Mélenchon à cabeça, permanecem estáveis, os únicos vencedores desta crise parecem ser Marine Le Pen e o seu Rassemblement National.

Quando, logo a seguir à decisão favorável do Conselho Constitucional, presidido por Laurent Fabius, Macron promulgou a lei das reformas, Marine não perdeu tempo:

“Ao decidir promulgar a injusta lei das reformas às 3 horas e 28 minutos da madrugada, Emmanuel Macron provocou pela enésima vez os franceses […] É um pirómano”.

Ao mesmo tempo, uma sondagem da ELABE, com os mesmos candidatos de 2022, dava Marine como vencedora à primeira volta, com 31% dos votos, Macron com 23% e Mélenchon com 18,5%; só que, à segunda volta, Marine teria já 55%, contra os 45% de Macron.

Mas podem os antifascistas permanecer calmos, que ainda faltam quatro anos para 2027.

EMMANUEL MACRON   FRANÇA   EUROPA    MUNDO   MARINE LE PEN   FRENTE NACIONAL

COMENTÁRIOS (16):

João Floriano: Sobre a azia francesa com os Estados Unidos, tradicionalmente não é de agora. Os americanos sempre adoraram a França, talvez devido aos acontecimentos da Segunda Grande Guerra, ao sangue aliado que ficou nas praias da Normandia. meio um PSD Fiquei com a ideia de que a França tinha ficado melindrada por ter sido «esquecida» na formação da AUKUS ( um bloco geoestratégico). A França tem um passado de glória em que exportou as suas ideias, cultura e língua para todo o mundo. Agora as coisas são bem diferentes. A França enfrenta a radicalização de esquerda e direita e no meio fica não direi o vazio, mas uma força política cada vez mais fraca. Em Portugal caminhamos para o mesmo com o PS cada vez mais encostado à esquerda, o CHEGA no lado oposto e no que pretende ser moderado mas que não cativa, porque a clivagem a radicalização é muito grande. Sobre a criação de blocos como os novos BRICS, CIVETS e outros de menor expressão, lembro que também temos o nosso, sem grande brilho, mas é o nosso: PIGS.                             Antonio Marques Mendes: O problema dos franceses é que antes os soviéticos só tinham a esquerda para manipular as manifestações dos franceses, mas agora Putin tem a esquerda Mélenchon e a direita Le Pen para manipular. Estupidamente, Macron continua a apostar no tradicional chauvinismo e anti-americanismo dos Franceses e a aproximar-se de Putin/Xin alienando a unidade Ocidental.                  Maria Clotilde Osório: A Eurásia é uma realidade que se irá impor? Em oposição à América do Norte? E será que a Europa se irá voltar para Este novamente. Quase seiscentos anos depois? Seremos, no final do séc XXI, uma Europa mais asiática? O desenvolvimento do projecto da maior economia mundial actual, a China, irá impor as novas regras políticas e civilizacionais? E a Rússia, será o terceiro suporte nesta nova ordem? A aguardar as respostas.            João Ramos: Macron quer imitar o incomodo de Gaule, só que não é de Gaule e os tempos são outros e talvez muito mais perigosos, enquanto a Europa nas duas grandes guerras do século XX e sobretudo a França devem a sua liberdade aos EUA e porque não dizê-lo também à Inglaterra, caso contrário pelo menos a França ainda andaria de braço estendido e é este país que no pós guerras viveu abusivamente sob a protecção dos EUA vem agora irresponsavelmente pôr se em bicos de pés atraiçoando quem os protegeu e arriscando uma importante fissura dentro da Nato, isto num momento muito grave para todos os Europeus e não só…                Francisco Almeida: Macron criou o seu próprio partido que se esgotará no seu apoio. Pelo caminho esvaziou a esquerda e a direita moderadas. Quando terminar o seu mandato a França tem dois cenários possíveis e um garantido. A dúvida será entre Mélenchon e Le Pen. E a certeza é a violência nas ruas com os cenários consequentes de ingovernabilidade e/ou intervenção militar.

A CEE foi um negócio, então paritário, entre a agricultura francesa e a indústria alemã. Essa foi a base do eixo Berlim-Paris. Entretanto a indústria alemã agigantou-se e a França endividou-se. Como o próprio Macron concedeu numa entrevista, a economia alemã era mais forte mas a França era mais forte militarmente. Kim Jong-un poderia ter dito o mesmo das duas Coreias. A França condensou o seu orgulho nacional, a sua superioridade moral, no porta-aviões nuclear (com sistemas elevatórios americanos) Charles de Gaulle e nos caças-bombardeiros Dassault-Rafale. Mas a guerra na Ucrânia, com o rearmamento europeu, veio baralhar os equilíbrios: só Alemanha, nórdicos e Holanda têm capacidade económica para isso. Alemanha, Suécia e Finlândia já mostraram oa seu empenho e não será certamente a França a liderar, possivelmente nem a co-liderar um hipotético exército europeu. Só lhe resta demarcar-se replicando De Gaulle. Só que a Macron falta tudo para isso. Nem farda nem tradição anti-nazi, nem carisma nem a lealdade dos para-quedistas da Legião Estrangeira que repuseram a ordem nas ruas em 1968. Macron está batido em todas as frentes e a sua ida à China é a última tentativa de um perdedor patético a tentar pôr-se em bicos dos pés. (Publicado no "Delito de Opinião". Editado)          José Tomás: No caso das pensões, Macron tem razão. É algo evidente, básico, indiscutível. Se quem tem razão não consegue prevalecer numa democracia devermo-nos preocupar com a qualidade dos eleitos e dos eleitores.        Maria Madeira: Mais um artigo bastante interessante.                    Pedro de Freitas Leal: Mais um artigo extraordinariamente lúcido do JNP, obrigado Jaime! Sim, os franceses fervem em pouca água. Tal como em Portugal, a direita radical ganha pontos. Mas Macron não apenas me parece correcto em termos nacionais, no que toca à reforma das pensões, como está já a preparar caminho para o tal mundo bipolar que ainda assusta os europeus. O que a França mais teme é ter que ir defender os interesses americanos no Mar do Sul da China.              Américo Silva:  A Europa já não pode viver sem ser sodomizada pelos USA.             TIM DO Á: A França, há algumas décadas um dos países mais belos do mundo, suicidou-se. Como voltar ao que era? Esse é o grande desafio. E ainda será possível?              bento guerra: Macron fez uma política errada, porque foi calculista em função do calendário eleitoral. Não avançou com as reformas, nem enfrentou os fortes sindicatos comunistas e anarquistas, para não perder votos e agora teve de recorrer ao célebre 49.3 para impor vontade "majestática" a franceses oportunistas e a apalpar o terreno. Mas, mais grave ,impôs a sua vontade sobre a Lagarde, no calendário das taxas de juro,              Alexandre Barreira: Pois. O mundo muda. A uma velocidade estonteante. As pessoas é que andam distraídas. E quando "acordarem"......!                   Rui Lima: A França que conheci em jovem não existe, morreu. 1/3 da sua população vinda ou descendente de longe, cria  condições de uma guerra civil de baixa intensidade há vítimas todos os dias . Até nisto era o país da gastronomia é agora  fast food  Ham­búr­gue­res, bagels, bur­ri­tos, wraps, sushi, piz­zas, tacos, espe­ta­das, taças... Nunca houve tan­tos res­tau­ran­tes de fast food no país: 52.500 no total - em com­pa­ra­ção com 13.000 vinte anos atrás. Deixo aqui um vídeo não são imagens da Ucrânia são de Marselha . https://www.dailymotion.com/video/x449nmw                     Jose Miguel Pereira > Rui Lima: Morreu 1/3 da sua população?... Ou foi a sua pontuação que nem chegou a nascer?                Rui Lima > Rui Lima: A maioria percebeu é o que conta, os franceses também percebem fecham os olhos quando votam porque sentem que lhes roubaram o seu modo de vida , por isso até os comunistas votam em le Pen que não é nenhuma solução mas é voto de protesto. Os engraçadinhos mestres de escola  aparecem sempre. Tem mais algo a dizer ? Ou não tem coragem ou conhecimento para mais? Como deve saber um QI normal percebe uma frase com 30% das palavras , lamento que não faça parte do grupo .           Rui Martins: Obrigado JNP Os novos ventos da Europa...

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