sexta-feira, 7 de abril de 2023

Admirável mundo novo


O nosso. Mas já o antigo era assim, simbolizado no canto das sereias, que o Ulisses bem ouviu, atado ao poste, os marinheiros impávidos e serenos, por via da cera com que o Ulisses lhes tapou os ouvidos, enquanto remavam. Hoje, andamos todos à solta, sem cera nos ouvidos, por via das cotonetes ou das gotas, agradados da sereia, que até nos é compincha, pois podia aboletar-se com todo o pecúlio que recebe de fora e não! Distribui como prometeu, embora leve nas vendas, que a vida está má para todos, além de que ele tem que prestar contas, para ter oportunidade de continuar a receber de fora, nós, de facto, é que somos uns ingratos. E exigentes a dar com o pau.

 

Aumentos que são cortes

Explorando a sua iliteracia financeira, geram-se expectativas enganadoras nas populações carenciadas sobre os apoios que o Estado presta — prometendo-lhes aumentos quando afinal lhes aplica cortes.

ALEXANDRE HOMEM CRISTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 06 abr. 2023, 00:2114

Um dos truques mais tentadores na política consiste em lançar anúncios de apoios ou promessas de reforços orçamentais pelas várias áreas sectoriais. Chega a ser irresistível: como ninguém gosta de ouvir falar em cortes, os governantes desdobram-se a anunciar mais dinheiro a cada vez mais gente, para depois difundir notícias sobre essas iniciativas e gerar uma percepção positiva sobre o seu desempenho. E, se for preciso, depois cortam mesmo o orçamento a eito. Muitas vezes, a diferença entre o que se diz e o que se faz parece um abismo, pelo que importa escrutinar e procurar respostas à pergunta: afinal, os anúncios passaram a realidade?

Na análise de medidas políticas, uma abordagem para responder a esta pergunta está na distinção entre o dinheiro prometido (a dotação inicial) e o dinheiro efectivamente utilizado (o montante executado). O raciocínio é simples: se o governo anunciar uma medida de apoios que custa 50 milhões de euros, mas executar apenas 10 milhões de euros, importa perceber porque guardou o dinheiro no cofre. E, quando esse desalinhamento é surpreendentemente enorme, torna-se legítimo concluir que houve uma deliberada manipulação dos valores para fins de marketing político.

Aqui vai um exemplo. Se olharmos para as dotações iniciais para bolsas de estudo no ensino superior (acção social directa), constatamos que, entre 2015 e 2021, mais do que duplicou: entre 119 milhões de euros (2015) e 243 milhões de euros (2021), o aumento foi de +104%. Aliás, a partir de 2018, o reforço orçamental subiu em flecha: de 2018 (143 milhões de euros) para 2021 (243 milhões de euros) observou-se um aumento de 100 milhões de euros na dotação inicial, atingindo valores nunca antes alcançados, e que tanto orgulharam o então ministro Manuel Heitor — que salientou o carácter “inédito” do reforço da acção social naquele que qualificou de “melhor orçamento” dos últimos anos. Mas será que é mesmo assim?

A história muda radicalmente se, em vez de se analisar a partir das dotações iniciais (o dinheiro prometido), a análise for feita com os dados dos montantes executados (o dinheiro efectivamente gasto). Hoje, em 2023, essa análise já é possível de fazer quanto a 2021, o ano em causa. E os números são reveladores. É que, apesar de a dotação inicial aumentar +104% entre 2015 e 2021, o montante executado diminuiu -8,8%. E repare-se no intervalo temporal de 2018 a 2021: enquanto a dotação inicial aumentou em +100 milhões de euros, o montante executado caiu -16 milhões de euros. Sim, é mesmo extraordinário constatar o desfasamento entre o discurso de Manuel Heitor e a realidade. Afinal, o governo (que alegadamente bateu recordes históricos de investimento no apoio aos estudantes) apresentou montantes executados inferiores aos de 2015, o último ano do governo PSD-CDS, ou inferior até a qualquer um dos anos da geringonça.

A tendência mantém-se mesmo quando aplicada a toda a acção social no Ensino Superior, juntando às bolsas as despesas com alimentação, alojamento e outros apoios: em 2021, o montante executado foi inferior ao de 2015 (-22 milhões de euros), mesmo se nas dotações iniciais constava um espectacular aumento de +129 milhões de euros. É uma nova espécie de novilíngua: no governo, prometer enormes aumentos corresponde, afinal, a aplicar cortes. E para quem quiser confirmar com os seus próprios olhos, tanto estes como os números acima têm fonte nos organismos oficiais e estão compilados na PORDATA.

Enfim, confio que, nas mãos do actual Secretário de Estado do Ensino Superior Pedro Teixeira, esta pouca-vergonha orçamental tenha fim. Mas o caso serve de exemplo de uma actuação que vai muito além do Ensino Superior. Na semana passada, expus dados que provam como, nos últimos 20 anos, aumentou a população em risco de pobreza e dependente de apoios do Estado. Esta semana, pareceu-me oportuno lembrar isto: Portugal não é apenas um país onde aumentou a dependência da população nos apoios sociais para fugir à pobreza, é também um país que gera expectativas enganadoras sobre os apoios que o Estado presta às populações carenciadas — prometendo-lhes aumentos quando lhes aplica cortes, sem ninguém protestar. Portugal é um multiplicador de pobres também por isso: na sua iliteracia financeira, escrutina pouco e escrutina mal os seus governantes.

EXECUÇÃO ORÇAMENTAL   ECONOMIA    ENSINO SUPERIOR   EDUCAÇÃO    APOIO SOCIAL    SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

Maria Tejo: Mas sabe o que é triste e desanimador? A oposição ter tanto para desmistificar com dados concretos e indesmentíveis e não ser capaz de o fazer na Assembleia da República.                Maria Clotilde Osório > Maria Tejo: Na mouche. A oposição que temos é fraca, fraquíssima. Já há que tempos se anda a pedir para não se olhar para os números do Orçamento mas para a sua execução. Se eu disser que vou dar bife todos os dias ao almoço e depois servir só nos dias de festa, estamos a ver a felicidade dos comensais. Nos restantes dias ponho a fotografia do bife no prato com ervas à volta. É por não vislumbrarmos uma saída que o desânimo aumenta                     Censurado sem razão: Um jornalismo decente é que devia fazer esse serviço público. Por exemplo a CNN é uma vergonha. Socialista do Carvalho. É de ir ao vómito. Nem disfarçam a esquerdice militante. Espere sentado. Com jornalismo deste calibre nada vai mudar.               observador censurado > Censurado sem razão Relativamente a este assunto, salvo melhor opinião, pelo menos: 1. O Ministro do Ensino Superior; 2. Os deputados da Comissão de Educação (deviam fiscalizar a execução  das verbas da Educação); deveriam ser responsabilizados criminalmente de forma a apresentarem uma fundamentação válida para os desvios mencionados pelo autor.                     Carlos Fernandes: Finalmente! Foi preciso um artigo de opinião para aqui no Observador se levantar a ponta do véu das diferenças entre o anunciado e o efectuado em termos orçamentais pelos governos de António Costa, quando seria uma tarefa mínima e obrigatório de um jornalismo que pretenda escrutinar o poder. Um jornalismo que, como os outros nesta terra, acorre sempre a todos os anúncios de medidas e os relata. E quando estes se repetem pela enésima vez, o artigo com o novo anúncio dispensa-se de o referir. Entenda-se, referi-lo seria tão só matéria de facto, não de opinião.                     João Ramos Depois de tanta vergonha será que a própria comunicação social completamente servil ao “poder” não terá vergonha de si própria…                   Carlos Carvalho: Como sabemos, o comunismo, e este ps, além de incompetente, quer ser bloco de esquerda, é fabricante de pobres e dependentes. Todos iguais e todos pobres. Até já tentam mudar voos comerciais para agradar à camarilha. Isto só nas ditaduras                   Carlos Chaves Caríssimo Alexandre, sinceramente não percebo como é que consegue rotular este comportamento, apenas, como “pouca-vergonha orçamental”! Se a isto juntar os sucessivos orçamentos maravilha, cheios de criminosas cativações, continua achar que é só pouca-vergonha? Eu tenho outros nomes para isto, mas não os posso escrever aqui!                  Luis Freitas: É como na habitação: António Costa prometeu mais de 12 mil casas para habitação social e só construiu 17 casas por ano nos últimos 7 anos. Como diz o ditado popular, muita parra e pouca uva, estes governos de António Costa são dos mais vigaristas e mentirosos de toda a história de Portugal e quem mais empobreceu Portugal neste século XXI, mas a grande maioria do povo adora esmolas e a classe empresarial subsídios, dessa forma Portugal fica mais pobre e dependente de um regime comandado pelo PS e que teve o apoio do PCP e BE.                S N: Basta olhar para a "boa notícia" da imprensa de hoje: governo vai "dar" um "aumento suplementar de 1%" a todos os funcionários públicos, "desde 1 de janeiro, não apenas a partir de abril". Sem esclarecer que é um "aumento" apenas nominal, ou seja, muito negativo em relação aos cortes reais provocados pela inflação (cerca de 20% nos últimos dois anos, podendo no entanto ultrapassar os 30 ou 40% nos mais pobres devido ao peso dos alimentos, cujos preços aumentaram em alguns casos mais de 50% ou 60% (cebolas, cenouras, leite, carne, bolachas, etc.)                     Alexandre Barreira: Pois. É a velha história:- Empresta-me 1000€ - É pá só tenho 500€ - Ok ficas a dever 500€....!                   Maria Correia: Mas acaso alguém recebeu o tal acerto das pensões de 22 ou os fantásticos apoios especiais aos "vulneráveis"? Não era para começar em Abril? Gostava de saber se pagaram ou se foi mais outra patranha                     observador censurado: "... Portugal é um multiplicador de pobres também por isso: na sua iliteracia financeira, escrutina pouco e escrutina mal os seus governantes." Parece que o autor quer dizer que os órgãos de soberania estão podres. Como o autor mostrou, o governo de Portugal faz publicidade enganosa. Os contribuintes passam dificuldades para pagar os elevados salários dos governantes e de quem os devia fiscalizar. E consequências? Um cidadão enganar na sua declaração de IRS comete um crime mas os governantes e quem os devia fiscalizar parecem estar isentos de qualquer responsabilidade e, consequentemente, acção criminal.                  F. Mendes: O artigo até é interessante. Só que, não acredito que estas práticas de embuste cristalizado, mudem significativamente com o actual Secretário de Estado, ou com qualquer outro membro do governo. Por uma razão simples: Costa só recruta aldrabões ou "yes men"; mais frequentemente uma combinação de ambos. Os resultados estão à vista de todos. Atente-se ao artigo de hoje do Paulo Tunhas, e conclua-se a que ponto tudo "isto" desceu.

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