Derivada de biblos – livro. O Livro. De todo o
sempre. Para sempre. Na dimensão do seu universo real e irreal. Objectivo e
subjectivo. Simples e complexo. Biblos.
Um catálogo da natureza humana
O relato da Paixão de Cristo é um
compêndio intemporal da Humanidade, um catálogo da natureza humana.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 07
abr. 2023, 00:1824
É o Evangelho mais longo do ano, o de
Domingo de Ramos, que narra a Paixão. É sempre lido em diálogo e fala de nós e
connosco.
É um texto de grande dramaticidade por onde desfilam os nossos pecados
e debilidades e até a debilidade de Cristo, enquanto homem. Nesse sentido, o
itinerário da Paixão do Senhor, a Sua entrega até à morte que abre portas à
Ressurreição, sendo o mais misterioso e decisivo dos mistérios da Fé, é um
compêndio intemporal da Humanidade, um catálogo da natureza humana. Judas,
Pedro, os sacerdotes, Pilatos, a multidão, os dois ladrões, o Centurião, José
de Arimateia são de ontem, de hoje e de sempre.
A traição
de Judas é a traição paga com dinheiro – trinta moedas de prata. O
papel de Judas é ingrato: tinha de haver um traidor para que se cumprissem as
Escrituras. Lembro-me de ser adolescente e de, com o meu sentido humanista
e revolucionário de então, achar que Judas era vítima de um guião pré-definido
que fazia dele o inevitável mau da fita, o cúmplice daquela oligarquia oficial
e oficiosa de sacerdotes, anciãos, fariseus e escribas, uma colecção de
intriguistas acomodados e reaccionários, a classe política do Velho Testamento,
a cerrar fileiras contra a Boa Nova.
A
traição de Judas pode também ver-se como a traição de um radical que queria um
Jesus político, justiceiro e
identitário, que levantasse os judeus contra o colonialismo romano e os
colaboracionistas judeus. Traindo o Messias, forçava-O a recorrer ao Seu
poder divino para libertar o povo e impor neste mundo o Reino de Deus. A
traição de Judas, a tentação de politizar, de usar politicamente e de manipular
a Boa Nova para fins temporais é também uma tentação de sempre.
A Páscoa judaica celebrava a
libertação dos filhos de Israel da tirania do Faraó do Egipto. Cristo trazia outro tipo de libertação. A noite da última ceia era o princípio do
dia judaico, e o sacrifício dos cordeiros – memória da passagem do Egipto – vai coincidir com o sacrifício do
Cordeiro de Deus, a Páscoa cristã.
É
na ceia que Jesus
diz que entre os doze que ali estão com ele está
um que O vai trair. E Judas,
enredado já nas teias da traição, pergunta, cinicamente se é ele; ao que Cristo
lhe responde “Tu o disseste”. É o modo de o Mestre responder a perguntas
insidiosas. Fará o mesmo com Pilatos.
Cristo institui então a
Eucaristia – nas formas do Pão e do Vinho, do Corpo e do Sangue – outro
mistério e outro milagre que é, para os católicos, a transubstanciação.
A noite das Oliveiras
Depois
da Ceia, no Horto, no Jardim das Oliveiras, Cristo começa por prevenir os
discípulos de que, também eles, O vão renegar e abandonar. Pedro
responde que, mesmo que tenha de morrer, nunca o negará, mas Cristo
assegura-lhe que sim, que Pedro O vai negar três vezes antes que o galo cante.
Depois aparta-se, pedindo ao Pai que afaste DEle o cálice. A
sós, no Jardim de Getsémani, sofre e chora.
Diz-nos S. João que Cristo, quando chorara a morte de Lázaro, chorara um choro
silencioso (edakrusen é o verbo grego usado); mas em Getsémani chora mesmo e, segundo Lucas, num estado de profunda angústia,
sua sangue, implorando ao Pai que o livre do que o espera – das humilhações, do
martírio, da morte – antes de se submeter à Sua vontade.
Depois
vem Judas, com a multidão dos captores, os agentes da ordem e a
turba, mandados por Caifás e
pelos anciãos com espadas e varapaus; é o tempo
de Judas Iscariotes consumar a traição, beijando o Mestre. Um dos que está com
Cristo puxa da espada e corta a orelha a um lacaio de Caifás; mas Cristo
repreende-o, dizendo-lhe que se quisesse recorrer a esses meios, contaria com
legiões de Anjos: as regras do jogo e o guião do Reino de Deus eram outros.
Então, como Ele previra, todos
o abandonam. Só Pedro
O vai seguindo, como anónimo; mas quando confrontado, acaba mesmo por O negar
três vezes, antes do cantar do galo.
Segue-se
o interrogatório de Caifás, que acusa Cristo de blasfemo e o remete para Pilatos, o
representante da autoridade de ocupação de Roma, o único que O pode flagelar,
condenar e executar. Mas Pilatos, diz-lhe o Réu, só tem o poder que lhe é
dado, e é menos condenável do que os que a ele O entregam. Quando Jesus lhe responde, “Tu o disseste: sou rei!
Vim ao mundo para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que vive
da Verdade escuta a minha voz.”, Pilatos
faz-lhe a célebre pergunta, tão definidora dos tempos que vivemos: “O que é a verdade?”
A
seguir a multidão, perante a possibilidade que lhe é dada por Pilatos de
libertar Cristo, o Rei dos Judeus, ou Barrabás, um criminoso de delito comum, escolhe
Barrabás, instigada pelos agentes de Caifás. Pilatos
lava daí as suas mãos e entrega Cristo aos captores. Era lá com eles e lá
entre eles.
Pouco depois da aclamação na entrada
triunfal em Jerusalém vem o calvário do linchamento popular: a tortura, a
humilhação da coroa de espinhos e do manto falso. Cospem-lhe, esbofeteiam-no,
forçam-no a carregar a cruz para o Gólgota. No caminho, encontra o Cireneu, que
O ajuda a levar a cruz.
Entre ladrões
Crucificam-no no meio de dois ladrões. É nestas três cruzes que Santo
Agostinho vai ver concentrado o drama humano, pessoal e colectivo, perante a
Verdade e a Salvação: “Estão três
homens pregados na cruz: um que dá a salvação, um que a recebe, e um que a perde.
No centro o Justo, a um lado o pecador arrependido e a outro lado o que se
fechou no seu pecado”.
Entretanto,
outros, continuam a desafiar e a provocar o Crucificado – se é Deus, porque
não desce da cruz? É A última tentação de Cristo, a tentação da facilidade, de
fugir à missão maior, que Martin Scorsese tentará imaginar em filme. Cristo expira finalmente. Rasga-se o véu do templo
e a terra treme. E é um Centurião, um estranho ao “povo de Deus”, quem confirma a identidade do Salvador: “Em
verdade, Aquele era o Filho de Deus”.
No fim, aparecem as santas mulheres e
o também misterioso José de Arimateia, um homem rico, um discípulo clandestino
de Jesus, que vai pedir a Pilatos para levar o corpo de Cristo. E são outra vez
os sacerdotes e os fariseus que pedem a Pilatos que ponha guardas no sepulcro,
com o governador a dizer-lhes que tratem eles disso. E eles, além da grande
pedra que tapa o túmulo, põem-lhe selos e guardas.
Dante vai definir a traição como algo que pressupõe laços
pré-existentes – laços de sangue, como Caim, que mata o irmão, Abel, por
inveja. Judas também tem a
confiança de Cristo; é um intelectual (tesoureiro, homem de contas) entre
homens simples, pescadores. Dante condena Judas ao Nono e último Círculo do
Inferno, uma região a que chama Judeca, de Judas, mas talvez também de Judeu,
supondo que o poeta possa ter sido movido por algum preconceito anti-semita. Os traidores abundam em Shakespeare –
Macbeth, Iago, o próprio Ricardo III. Judas é o traidor por excelência, mas, na
noite da Paixão, todos vão, por medo, trair e abandonar o Mestre, quando vem a
multidão.
É
o reconhecimento da fraqueza da natureza humana, da fraqueza da nossa condição
– mesmo dos que virão a ser santos – e a certeza de que pode ser redimida. Pedro,
a pedra sobre qual Cristo quis fundar a Sua Igreja, depois de, assustado,
renegar o Filho de Deus, vai morrer por Ele e com Ele em Roma.
Os interlocutores de Judas são
também intemporais e espelham realidades que, muitas vezes, nos tocam de
perto, pessoal e colectivamente: são os
poderosos do tempo e do templo; uma elite de serviço
colaboracionista com os romanos, como hoje as classes políticas dos países de
periferia em relação aos centros dominantes. O traidor
Judas negoceia
com estes senhores do Templo a venda de Cristo, que está fora do controlo deles e os
perturba. As oligarquias, sejam do sangue, do dinheiro, do
partido, da cultura – e não só as oligarquias – continuam a ser assim: não gostam
de recém-chegados que não conhecem nem controlam. E sacrificam-nos ao ocupante.
O ocupante é o romano,
representado por Pilatos, um burocrata que sentimos como especialmente próximo
de nós, no lavar de mãos e na manipulação de palavras e conceitos. Pilatos
e o julgamento de Jesus de Nazaré é o livro que, no livro de Bulgákov O Mestre
e Margarida, o Mestre tinha escrito e acabado por ter de queimar. Pilatos, o
burocrata, não se quer comprometer, por isso dá as respostas que os políticos
do sistema (seja ele qual for) quase sempre dão – lavam as mãos, falam em
problemas estruturais e devolvem a decisão ao povo – ou “aos tribunais”, ou “à
comunidade científica”, ou “à opinião pública”, não querendo ficar com o peso
do sangue do justo – ou sequer do “injusto”.
E aqui entra o povo, a multidão, que tinha aclamado o Nazareno, mas
que já trabalhada pelos sacerdotes, os anciãos e a sua gente, escolhe Barrabás. Uma realidade de manipuladores e manipulados que também conhecemos
bem. É a gente agitada e empurrada pela comunidade mediática ou por quem quer
que a agite e manipule, dizendo-lhe o que é correcto escolher, quem são os bons
e quem são os maus, quais os culpados à partida e quais os inocentes de sempre,
uma multidão que quando decide a favor dos instigadores é “sábia” e que quando
os rejeita “está a ser manobrada”.
É por esta nossa humanidade de
traidores, de cobardes, de ladrões, de renegadores, de manipuladores, de
multidões acéfalas e de elites perversas, que se entrega um homem bom, uma
espécie de convidado surpresa nesta tragicomédia feita do “misto de trevas e
brilho” que somos. É por ela que ressuscita. Nestes tempos de Páscoa, meditando
a Sua paixão, olhando cada um dos que nela intervêm e confrontados com a nossa
verdade, temos, como todos os anos e como todos os dias, a mesma escolha que os
ladrões crucificados ao lado do Justo: abrirmo-nos à Salvação ou fecharmo-nos
no pecado.
Santa
Páscoa.
A SEXTA COLUNA PÁSCOA SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 26)
Francisco Figueiredo: Apreciei
imenso a meditação vertida em texto! Afonso De Bragança Mendes: Extraordinária análise esta. É um exercício fantástico
ler este texto e meditá-lo porque todo o seu conteúdo é de uma objectividade
tão profunda que impressiona. Bem haja!!! Maria Tejo: Magnífico texto dum grande pensador! Para ler, reler
e guardar. Obrigada.
Francisco Almeida: Nestes tempos que correm, com a religião católica na
Europa a caminhar para uma quase clandestinidade, textos como este, valem mais
do que pérolas. miguel
cardoso: Nas palavras repetidas, na sabedoria que
continua, lê-se a fé intensa e "racional" do talvez único pensador de
Tradição que ainda temos. Muito obrigado e ainda bem. É pena que sejamos poucos
a ler e a sentir o texto. Resta-me,
no entanto, a mensagem que me foi entregue há décadas por um velho Integralista
- Dr. José Pequito Rebelo . que quando o questionei sobre o desaparecimento
de toda uma geração de pensadores me disse: "Nunca é preciso que sejam
muitos. Basta que sejam alguns." Santa Páscoa João Ramos: É sempre bom revizitarmos a Paixão de Cristo ainda por
cima pela pena de um amigo erudito. Boa Páscoa Jaime!!! Alberto Rei: Não só zelotas, os radicais organizados, queriam um
novo líder depois do último ter sido vencido. Os judeus também : "vem,
encontrámos o Messias", João 1 : 40. Mas logo apareceram as dúvidas quando
começaram a ouvir os discursos de Jesus, a ver com quem ele andava, e a quem
ele queria levar amor e compaixão. Dali até à Páscoa, a trupe reduziu-se
consideravelmente. O grande milagre mesmo, é como é que aqueles desiludidos que
ficaram, irão edificar umas das histórias mais belas da Humanidade, o
Cristianismo. Excelente
texto Prof. Nogueira Pinto.
José Miranda: Este
texto demonstra( se tal fosse necessário) a enorme sabedoria do autor. Carlos Chaves:
Caríssimo Jaime
Nogueira Pinto, um enorme obrigado por esta “bela” crónica! Esta sua reflexão
contrasta em absoluto com a aridez reinante que vivemos neste tempo Pascal,
soberba e sentida, obrigado. Joaquim Lopes:
Um texto de
excelência como sempre, especialmente com a comparação subliminar ao que hoje
se passa pelo mundo e no nosso pequeno mundo que é Portugal. Eduardo Cunha: excelente reflexão. Santa
Páscoa. Américo
Silva: A natureza humana
é na sua essência formadora de hierarquias, como o lobo e o macaco, com um
vértice e uma base. Quando duas hierarquias colidem há violência, em certas
tribos todos os homens são sacrificados e as mulheres ficam para os vencedores.
Cristo tentou criar uma hierarquia consigo no topo, que fez colidir com a que
estava instalada, e perdeu. Tão simples quanto isto. Eduardo
Fernandes > Américo Silva: Caro Américo, respeitando a sua
opinião, Cristo não perdeu! A sua mensagem perdura há mais de 2000 anos. Ana Silva: Excelente reflexão sobre a
Páscoa de Jesus, lúcida e verdadeira, expondo, aliás como os próprios
Evangelhos, a fragilidade da natureza humana. Mas se somos frágeis e
pecadores é no reconhecimento dessa realidade crua e dura que nos desmascara de
todas as máscaras, que vem a grandeza do ser humano. É no momento em que pessoa
humana se abre à pessoa de Jesus e reconhece a sua própria verdade e fraqueza,
que vislumbra a avassaladora sabedoria de Deus e o Seu Amor completamente desmedido
por cada um de nós. É no olhar sobre Deus que agoniza na cruz por nós, que a
verdade assume as rédeas na nossa vida e nos liberta da nossa cegueira, vaidade
e orgulho. Prova-se, sente-se, entranha-se em nós o Amor Infinito e vemos com
uma clareza absoluta que nada nesta vida se lhe compara. E segui-LO torna-se o
mote da vida.
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