terça-feira, 25 de abril de 2023

Já Verney


No seu “O VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR”, criticara a tacanhez interesseira que presidia ao espírito das praxes académicas, que fazia que os “doutores” protectores dos “caloiros”, vivessem quantas vezes à custa destes, a troco de tal protecção. A mim sobretudo incomodava esse espírito de praxe, de que passageiramente também fui vítima, mas o estudo e o entusiasmo das leituras fornecidas pelas bibliotecas em breve relativizariam todos esses aspectos vindos dum espírito medieval para mim grotesco, apesar do aparatoso dessas “Queimas de Fitas”, em que colaborei docilmente, fazendo flores de papel para o nosso carro das Letras. Sim, Coimbra não perde o espírito da carnavalada, aliás hoje transposta ao país inteiro, nessas greves que serão também consequência da tal falta de espírito científico que acompanhou sempre a formação universitária coimbrã, segundo a análise do Dr. Salles, impregnada tal formação do espírito devoto primeiro, que se prolongou no tempo – pese embora a existência de gente superior de que conheci alguma no meu tempo e a quem estarei sempre grata, pelo trabalho de pesquisa e orientação cultural dos seus trabalhos e estudos, que serviriam aos estudantes ainda hoje, como, de resto, acontece nas universidades posteriores do país, ainda que estas, de superior envergadura de modernidade cultural.

 

COSMOPOLITISMO - 2

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

23.04.23

Vinham os bisonhos das berças lanares e logo se encantavam com o pequeno burgo que se lhes abria como raio de Sol. E assim era que ciclicamente a cidadezinha se enchia de jovens apenas talhados pelo escopro rural e a que faltava o buril urbano.

Cidade capital do nosso Rei fundador, foi também ela escolhida por D. Telmo, D. João Peculiar e São Teotónio para sede da Ordem da Santa Cruz que viria a receber a mercê de D. Dinis para governar a Universidade. Foi nos tempos de D. João III que o Padre Iñigo Lopez Recaldo – que passaria à História como Stº Inácio de Loyola – ali fundou o «Colégio das Onze Mil Virgens», primeiro da Companhia de Jesus, para o qual redigiu a sua obra de orientação pedagógica «Ratio Studiorum» que passaria a vigorar em todos os colégios jesuítas em todo o mundo. Na mesma época em que se inaugurava o Observatório em Greenwich, se media a velocidade da luz e se descobria o espermatozoide, o Rei D. João V teve que publicar Decreto ordenando à Universidade que passasse a incluir no seu currículo académico o Dogma da Imaculada Concepção de Maria. Na mesma universidade era então proibido dissecar cadáveres para se ter a certeza de não esquartejar a alma do defunto. Assim se manteve a tónica intelectual em Portugal até… que a República instaurou as Universidades de Lisboa e do Porto. Só que, entretanto, foram séculos e séculos de «cada vez mais do mesmo» com as instituições coimbrãs agarradas aos respectivos cânones fundacionais, entretanto caducos, em defesa de unidades de doutrina e métodos obsoletos. O colégio jesuíta desapareceu na voragem pombalina e a Universidade prosseguiu com os seus Lentes (os que leem as sebentas herdadas dos respectivos antecessores) numa actividade a que hoje chamamos «copy-paste» sem qualquer valor acrescentado. Eis como aquela Universidade se constituiu em instrumento sombrio em vez de luminoso como as suas congéneres além-Pirenéus. Reconheçamos, contudo, que Coimbra não foi monopolista na distribuição das sombras pois foi nisso acompanhada por Évora desde o Cardeal-Rei até ao consulado pombalino. Faltou concorrência laica onde os cadáveres pudessem ser dissecados. Faltou – também e sobretudo – que essas instituições tivessem combatido o autismo e tivessem procurado o cosmopolitismo intelectual.

Colhe perguntar se a Inquisição permitiria que tudo fossem luzes em vez de trevas e colhe perguntar também se, hoje ainda, não estará a «Lusa Atenas» cativa de persistentes dogmas de racionalidade obtusa leia -se falaciosa e comprovadamente caduca para não dizer falaciosa.

É que perguntar não ofende e é tempo de parar com essa ridicularia que consiste em cardar lanzudos bisonhos vindos das berças. Está visto que esses que chegam já não vêm das berças, mas sim da Internet. O prestígio da «sapientíssima cátedra» constrói-se diariamente pela adução constante de valor científico e não mais pela tirania da arrogância e da ameaça de um chumbo.

O cosmopolitismo intelectual é a solução para a ultrapassagem do nosso atraso endémico e – correndo o risco de cavarmos ainda mais o fosso entre um país pensante e um país boçal – a Universidade tem que se tornar cosmopolita e atirar togas, capelos e outras praxes para o balde dos desperdícios.

Abril de 2023

Henrique Salles da Fonseca

Tags:

política

2 COMENTÁRIOS

Rui Bravo Martins 24.04.2023 08:45: EXCELENTE! Parabéns pelo seu erudito texto, simultaneamente histórico e actual. Muito Bom Cumprimentos

António Fonseca 24.04.2023 17:04: Um sucinto e profundo tour d'horizon desde a fundação até o presente, da cultura que continua a animar os Centros de Formação Superior do País, e a premente necessidade de uma 'abertura' mais ampla, exposta no habitual estilo, sóbrio e elegante do Doutor Henrique Salles da Fonseca. Será que ainda continua a pairar sobre as Universidades Portuguesas a mentalidade de "chasse gardée" ou NIH , na sigla inglesa, Not Invented Here? Passa de hora para uma abertura sem reservas.

 

Nenhum comentário: