No seu “O VERDADEIRO MÉTODO DE ESTUDAR”, criticara a tacanhez
interesseira que presidia ao espírito das praxes académicas, que fazia que os
“doutores” protectores dos “caloiros”, vivessem quantas vezes à custa destes, a
troco de tal protecção. A mim sobretudo incomodava esse espírito de praxe, de
que passageiramente também fui vítima, mas o estudo e o entusiasmo das leituras
fornecidas pelas bibliotecas em breve relativizariam todos esses aspectos
vindos dum espírito medieval para mim grotesco, apesar do aparatoso dessas
“Queimas de Fitas”, em que colaborei docilmente, fazendo flores de papel para o
nosso carro das Letras. Sim, Coimbra não perde o espírito da carnavalada, aliás
hoje transposta ao país inteiro, nessas greves que serão também consequência da
tal falta de espírito científico que acompanhou sempre a formação universitária
coimbrã, segundo a análise do Dr. Salles, impregnada tal formação do espírito
devoto primeiro, que se prolongou no tempo – pese embora a existência de gente
superior de que conheci alguma no meu tempo e a quem estarei sempre grata, pelo
trabalho de pesquisa e orientação cultural dos seus trabalhos e estudos, que
serviriam aos estudantes ainda hoje, como, de resto, acontece nas universidades
posteriores do país, ainda que estas, de superior envergadura de modernidade
cultural.
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
23.04.23
Vinham os bisonhos das berças lanares e logo se encantavam com o pequeno
burgo que se lhes abria como raio de Sol. E assim era que ciclicamente a
cidadezinha se enchia de jovens apenas talhados pelo escopro rural e a que
faltava o buril urbano.
Cidade capital do nosso Rei fundador, foi também ela escolhida por D. Telmo, D. João Peculiar e São Teotónio
para sede da Ordem da Santa Cruz que viria a receber a mercê de D. Dinis para
governar a Universidade. Foi nos
tempos de D. João III que o Padre Iñigo Lopez Recaldo – que passaria à História
como Stº Inácio de Loyola – ali fundou o «Colégio das Onze Mil Virgens»,
primeiro da Companhia de Jesus, para o qual redigiu a sua obra de orientação
pedagógica «Ratio Studiorum» que passaria a vigorar em todos os colégios
jesuítas em todo o mundo. Na mesma época em que se inaugurava o Observatório em
Greenwich, se media a velocidade da luz e se descobria o espermatozoide, o Rei
D. João V teve que publicar Decreto ordenando à Universidade que passasse a
incluir no seu currículo académico o Dogma da Imaculada Concepção de Maria.
Na mesma universidade era então
proibido dissecar cadáveres para se ter a certeza de não esquartejar a alma do
defunto. Assim se manteve a tónica intelectual em Portugal até… que a República
instaurou as Universidades de Lisboa e do Porto. Só que,
entretanto, foram séculos e séculos de «cada vez mais do mesmo» com as
instituições coimbrãs agarradas aos respectivos cânones fundacionais,
entretanto caducos, em defesa de unidades de doutrina e métodos obsoletos.
O colégio jesuíta desapareceu na voragem pombalina e a Universidade prosseguiu
com os seus Lentes (os que leem as
sebentas herdadas dos respectivos antecessores) numa actividade a que hoje
chamamos «copy-paste» sem qualquer valor acrescentado. Eis como aquela
Universidade se constituiu em instrumento sombrio em vez de luminoso como as
suas congéneres além-Pirenéus. Reconheçamos,
contudo, que Coimbra não foi monopolista na distribuição das sombras pois foi
nisso acompanhada por Évora desde o Cardeal-Rei até ao consulado pombalino.
Faltou concorrência laica onde os cadáveres pudessem ser dissecados. Faltou –
também e sobretudo – que essas instituições tivessem combatido o autismo e
tivessem procurado o cosmopolitismo intelectual.
Colhe perguntar se a Inquisição permitiria que tudo fossem luzes em
vez de trevas e colhe perguntar também se, hoje ainda, não estará a «Lusa
Atenas» cativa de persistentes dogmas de racionalidade obtusa leia -se
falaciosa e comprovadamente caduca para não dizer falaciosa.
É que perguntar não ofende e é tempo de parar com essa ridicularia que
consiste em cardar lanzudos bisonhos vindos das berças. Está visto que esses
que chegam já não vêm das berças, mas sim da Internet. O prestígio da
«sapientíssima cátedra» constrói-se diariamente pela adução constante de valor
científico e não mais pela tirania da arrogância e da ameaça de um chumbo.
O cosmopolitismo intelectual é
a solução para a ultrapassagem do nosso atraso endémico e – correndo o risco de
cavarmos ainda mais o fosso entre um país pensante e um país boçal – a
Universidade tem que se tornar cosmopolita e atirar togas, capelos e outras
praxes para o balde dos desperdícios.
Abril de 2023
Henrique Salles da Fonseca
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2 COMENTÁRIOS
Rui Bravo Martins 24.04.2023 08:45: EXCELENTE! Parabéns pelo seu erudito texto, simultaneamente histórico e actual. Muito Bom Cumprimentos
António Fonseca 24.04.2023 17:04: Um sucinto e profundo tour d'horizon desde a
fundação até o presente, da cultura que continua a animar os Centros de
Formação Superior do País, e a premente necessidade de uma 'abertura' mais
ampla, exposta no habitual estilo, sóbrio e elegante do Doutor Henrique Salles
da Fonseca. Será que ainda continua a pairar sobre as Universidades Portuguesas
a mentalidade de "chasse gardée" ou NIH , na sigla inglesa, Not
Invented Here? Passa de hora para uma abertura sem reservas.
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