Na análise de uma actualidade recente,
neste nosso mundo ocidental, a concentração sobre a guerra da Ucrânia substituída
momentaneamente pela banalidade dos actos de um viver que prossegue no
rebuscamento cortês das movimentações ou compromissos dos povos, e no
relativismo, tantas vezes empolado, dos seus interesses ou casos específicos.
Sobre a visita de Carlos III à
Alemanha
A propósito da visita de Carlos III à
Alemanha, um apelo à moderação e auto-controlo que Edmund Burke identificou
como indispensáveis às sociedades livres.
JOÃO CARLOS ESPADA: Director e fundador do Instituto
de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa
OBSERVADOR, 03 abr. 2023, 00:167
1Diferentemente
da generalidade dos analistas, tenho a fraqueza de pensar que o mais
relevante acontecimento internacional da semana passada foi a visita do Rei
Carlos III do Reino Unido à Alemanha. Falou
em alemão, celebrando a ascendência germânica da dinastia britânica. E,
pela primeira vez, um monarca britânico discursou no Parlamento alemão — cuja
restauração, em 1945, foi em grande parte devida à resistência britânica contra
o nazi-fascismo e o comunismo na II Guerra Mundial, bem como, seguramente, à
resistência anti-nazi e anti- comunista dos patriotas alemães.
Deve certamente ser sublinhado o profundo simbolismo desta primeira viagem ao
estrangeiro de Carlos III — que
escolheu um país europeu e não um país da anglófila Commonwealth. Este simbolismo euro-atlantista teria sido ainda
mais reforçado com a planeada visita inicial do Rei Carlos III a França —
que teve de ser cancelada devido ao clima quase insurreccional vivido nas ruas
francesas.
2O clima insurreccional
francês não é propriamente uma surpresa — acontece em França ciclicamente desde
pelo menos a equívoca revolução francesa de 1789, que abriu caminho ao que
Alexis de Tocqueville designou como “perpétua oscilação entre o Antigo Regime e
a Revolução”.
Mas
essa peculiaridade revolucionária/contra-revolucionária francesa — sobre a qual um cepticismo
liberal-conservador-reformista deve ser sempre recordado — não retira
a França o seu fantástico contributo cultural à civilização europeia e
ocidental. Tive
aliás, a este respeito, o grato prazer de receber há poucos dias o Menu do
Oxford and Cambridge Club de Londres para o britânico Coronation Day (6 de
Maio): o Menu está todo em francês!
Tenho a fraqueza de acreditar que
este Menu em francês não exprime apenas o humilde (e, em meu entender,
inteiramente justificado) reconhecimento britânico da superioridade
gastronómica francesa. Julgo que ele
exprimirá também, ou talvez sobretudo, o reconhecimento britânico de pertença a
uma civilização mais vasta — simultaneamente europeia e atlantista, ocidental —
um reconhecimento que o Brexit, que foi pacificamente e democraticamente
escolhido, não deve fazer esquecer.
3É precisamente este
sentimento de pertença europeísta,
atlantista e ocidental que receio estar hoje em causa no Ocidente democrático e
liberal. O caso parece particularmente grave na democracia americana — que,
por duas vezes no século XX, na I e na II
guerras mundiais, veio salvar a democracia na Europa.
O estilo guerrilheiro de Donald Trump tinha sido até agora um dos
principais ingredientes — ainda que não único — de uma radicalização
grosseira da atmosfera política americana. Mas
o recente anúncio pela Procuradoria de Manhattan de que o ex-presidente Donald
Trump vai ser acusado criminalmente constitui um adicional factor de
preocupação. Trata-se de um caso inédito na história americana de uma acusação
criminal contra um ex-presidente, ainda por cima potencial candidato
presidencial no próximo ano.
É
certo que, numa democracia liberal, ninguém está, nem deve estar, acima da lei.
É também certo que o sr. Trump fez campanha
presidencial em 2016 com vergonhosos cartazes dizendo “Lock her up” —
referindo-se à sua rival democrática Hillary Clinton. É caso para dizer que
Trump nem sequer reclamou que Hillary Clinton fosse levada a tribunal — apelou
directamente à sua prisão, talvez por decisão das chamadas “massas populares”,
não de um tribunal independente. Agora, Trump está simplesmente a ser chamado a
tribunal — e já está a incendiar as “massas populares” (uma expressão favorita
dos comunistas e dos nazi-fascistas, bem como dos jacobinos franceses) com
apelos à violência.
Ainda
assim, receio que a decisão do Tribunal de Manhattan possa não ter tido em
conta a prudência céptica que deve refrear a introdução de inovações
radicais numa história política democrática de 250 anos.
Subscrevo, por isso, o cepticismo expresso por The Economist de Londres a este
respeito.
4Ainda
a este propósito de prudência céptica e de auto-controlo — que parece estar a
ser ignorada nas nossas democracias — vale a pena recordar as sábias palavras
de Edmund
Burke, um
deputado liberal-conservador-reformista que, no Parlamento britânico, criticou
a revolução francesa de 1789 e defendeu a revolução anti-colonial americana de
1776 (a qual inscreveu na tradição liberal inglesa da Magna Carta de 1215):
“Men are qualified for civil liberty in exact proportion to their
disposition to put moral chains upon
their own appetites,—in
proportion as their love to justice is above their rapacity,—in proportion as their soundness and
sobriety of understanding is above their vanity and presumption,—in proportion as they are more disposed
to listen to the counsels of the wise and good, in preference to the flattery
of knaves. Society cannot exist, unless a controlling power upon will
and appetite be placed somewhere; and the less of it there is within, the more
there must be without. It is ordained
in the eternal constitution of things, that men of intemperate minds cannot be
free. Their passions forge their fetters.” (Edmund Burke, “Letter to a
member of The National Assembly”, 1791).
Post Scriptum: Talvez uma palavra de moderação possa e deva ser
acrescentada também acerca da recente evolução política em
Portugal. Vejo com preocupação o tom
crescentemente radical dos debates políticos entre nós, sobretudo, embora não
exclusivamente, nas persistentes intervenções em tom revolucionário dos
“senhores” do chamado “Chega”. Espero que seja um fenómeno sobretudo
marginal, como aliás creio serem marginais os partidos que só sabem falar aos
gritos e com gesticulação vulgar. Mais preocupante, todavia, parece-me ser
algum radicalismo no muito necessário debate sobre os casos de pedofilia no
interior da Igreja Católica. Trata-se sem qualquer dúvida de casos de
imensa gravidade, mas simultaneamente não pode ser ignorado nem omitido que a
Igreja revelou exemplar abertura ao nomear uma Comissão Independente para
estudar o tema — cujo relatório assumiu publicamente. Há e deve necessariamente
haver lugar a um debate público livre sobre esta gravíssima matéria. Mas
esse debate não pode nem deve fazer concessões a um ressurgimento do
reaccionário/revolucionário conflito entre clericanismo vs. laicismo, ou, como
diria Tocqueville, entre Antigo Regime vs. Revolução.
FAMÍLIA REAL
BRITÂNICA CASAS REAIS CELEBRIDADES VAIDADES LIFESTYLE ALEMANHA EUROPA MUNDO REINO UNIDO MONARQUIA SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
JOSE DE CASTRO: EXCELENTE texto, Dr J C Espada! Parabéns e Obrigado por sua clarividência.
Paulo Nunes Do Rosário: E a extrema-esquerda, PS incluído, não grita, não
gesticula de forma vulgar? Alexandre
Barreira: Pois. Mas parece que. Faltou o "Panzer"....! bento guerra:
1)-Sendo o inglês
uma língua franca no mundo, é verdeiramente ridículo que o Carlos tenha falado
em alemão, um incentivo aos tradicionalistas. 2)A perseguição e eventual prisão
do Trump será uma vantagem na sua campanha. Um líder de direita, condenado por
pagar o silêncio de uma prostituta 3)Como é habitual, a deturpação do que disse
o Ventura. Ele exigiu responsabilidade e conhecimento dos que recolhem
refugiados. JOSE
DE CASTRO > bento guerra: Totalmente de acordo com seu 3) Duvidoso quanto ao seu ponto 2)
Em desacordo com seu ponto 1)
bento guerra > JOSE DE CASTRO: Vantagens da democracia e do
civismo Rosa Silvestre:
O radicalismo em
relação à Igreja está a preparar a revisão da Concordata.
Nenhum comentário:
Postar um comentário