De LUÍS MANUEL PEREIRA DA SILVA Professor, Mestre em
bioética. Fundador da ADAV-Aveiro e membro da Federação Portuguesa pela Vida:
Esperemos que o Presidente Marcelo a leia, antes da próxima decisão
a respeito dessa tal lei de despenalização, aprovada em “conselho”, que bem
expõe as escrófulas da nossa imbecilidade generalizada, a pretexto de uma
liberdade perversa e fútil.
Eutanásia: a morte colectivamente cometida
Quando um de nós sofre, sofremos com
ele; quando um de nós morre, morremos na sua morte. Acusar-nos-ão de idealismo os
defensores da eutanásia, mas não se construiu a humanidade sobre nobres ideais?
LUÍS MANUEL
PEREIRA DA SILVA Professor, Mestre em bioética. Fundador da ADAV-Aveiro e
membro da Federação Portuguesa pela Vida OBSERVADOR, 10 abr. 2023,
00:108
1A
causa da legalização da eutanásia instrumentaliza um dos mais profundos, nobres
e distintivos sentimentos humanos: a compaixão.
Se
o que se diz à sociedade (e à saciedade!) é que a eutanásia é um acto de
compaixão para com quem sofre, rotulando-se de ‘insensível’ e ‘incompassivo’
quem se lhe opõe, restará pouco a este debate antes da rendição dos que foram,
progressivamente, sendo tomados por inumanos. Há, porém, um enorme e
perturbador equívoco neste ‘axioma’ inconsciente (um axioma é uma proposição
tida como certa e evidente e, por isso, inquestionável, isto é, nunca posta em
questão). A compaixão mata-se se mata o outro que está em sofrimento.
A compaixão, enquanto atitude de genuíno ‘padecimento com o’ outro,
contradiz-se se incluir a possibilidade de o matar. Matá-lo elimina, bem certo, o sofrimento,
mas na medida em que elimina aquele que sofre, quando lhe cabia procurar todos
os meios legítimos ao seu alcance para impedir que ele sofresse, garantindo-lhe
a sobrevivência após o fim do sofrimento.
Para compreender o equívoco em que o
‘axioma’ denunciado no início se suporta, comecemos por definir de que falamos
ao referir-nos à eutanásia: antecipação deliberada da morte de alguém, a
pretexto de motivações que suportam o seu pedido, e concretizada por outrem, a
quem cabia o cuidado e acompanhamento.
Não
nos parece suscitar dúvidas uma tal definição, pelo que se nos afigura legítimo
partir em busca de uma maior determinação do equívoco anteriormente denunciado.
2Nenhum
de nós é apenas ‘si próprio’, mas nó de relações. Em cada um de nós há uma participação total e
‘fractal’ na humanidade, presente em todos e em cada um dos humanos. A
vida de cada humano é um direito, mas também um dever de cuidado para consigo
mesmo. A humanidade que habita cada um de nós apela a que dela cuidemos. Não é,
por isso, casual o modo como a declaração universal dos direitos humanos define
os direitos humanos, entre os quais tem valor de direito fontal o direito à
vida.
Veja-se
como são, ali, definidos os direitos humanos e retiremos dessa definição duas
consequências.
A
declaração afirma, no seu preâmbulo:
‘Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos
os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis
constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (…)’ (recolhido de https://gddc.ministeriopublico.pt/ –
consultado em 6 de abril de 2023)
Desta primeira afirmação
preambular destaquemos duas notas:
a
primeira nota: os
direitos humanos são ‘inalienáveis’, o que significa que ninguém (nem o
próprio) pode prescindir deles. A esta luz, matar ou matar-se nunca poderá ser um
‘direito’ humano.
a
segunda nota: é a dignidade humana que antecede a liberdade, da qual
é fundamento, e não o contrário. Diz-se, ali, com clareza, que é ‘o reconhecimento da
dignidade’ que se ‘constitui’ como ‘o fundamento da liberdade’. Facilmente se
concluirá que todo o exercício de liberdade (habitualmente
equiparada a ‘autonomia’) deve submeter-se ao respeito pela dignidade, pois não
é a liberdade que fundamenta a dignidade, mas, antes, a dignidade que
fundamenta a liberdade.
3Acrescentemos
a esta nota de âmbito jurídico, uma outra, de natureza antropológica, que nos
foi recordada pelo Cardeal
Tolentino de Mendonça, no
já célebre discurso de 10 de junho de 2020.
Recordava-nos,
então, que o primeiro sinal de humanidade era um ‘fémur quebrado e
cicatrizado’. Segundo a
antropóloga Margaret Mead, o alcance
deste fémur para a compreensão do que era ser-se humano estava na constatação
de que só entre humanos verdadeiramente compassivos um fémur
quebrado não significava entrega à morte, mas união para se sobreviver ao
sofrimento, permanecendo vivos para além da dor.
No
dizer do Cardeal Tolentino de Mendonça, [aquela] “antropóloga
surpreendeu a todos, identificando como primeiro vestígio de civilização um
fémur quebrado e cicatrizado. No reino animal, um ser ferido está
automaticamente condenado à morte, pois fica fatalmente desprotegido face aos
perigos e deixa de se poder alimentar a si próprio. Que um fémur humano se tenha quebrado e
restabelecido documenta a emergência de um momento completamente novo: quer
dizer que uma pessoa não foi deixada para trás, sozinha; que alguém a
acompanhou na sua fragilidade, dedicou-se a ela, oferecendo-lhe o cuidado
necessário e garantindo a sua segurança, até que recuperasse.” (Discurso de 10
de junho de 2020 – O que é amar um país)
A esta luz, a eutanásia não é um
avanço, um progresso, mas uma enorme regressão a tempos de que nos pensávamos
já livres e evolutivamente afastados.
O caráter assético da morte, aparentemente indolor, oculta uma frieza
e um desejo de rapidamente extinguir o sofrimento, eliminando do olhar aquele
que sofre, sinais que se nos afiguram inquietantes. A eutanásia
é ‘um método fácil de desistência’, como
recordava uma enfermeira portuguesa de nome Verónica, em 2016, em entrevista
dada à TSF. Esta
enfermeira fora chamada, sem estar preparada, para participar na eutanásia de
uma mulher de 70 anos, saudável, e perante a ‘filha em lágrimas’. As palavras
de Verónica exprimiam um genuíno desejo, escondido na perplexidade com que
vivera aquela eutanásia: o de que Portugal olhasse para o que se fazia em
terras belgas, onde trabalhava, a fim de que por cá não se repetisse o mesmo
erro.
Tais constatações deveriam ser mais do que suficientes para exigir
do legislador uma preocupação maior com as suas decisões, percebendo que delas
resultam sinais que a sociedade interpretará e incorporará no seu ‘adn’ colectivo.
Uma sociedade em que cada um é deixado sozinho, entregue ao seu destino,
retirará, mais cedo do que tarde, as conclusões para os diversos âmbitos do
existir colectivo. Por muito que as posteriores decisões arbitrárias do
legislador procurem minorar os efeitos da primeira decisão…
4Defendo,
aliás, que, a ser legalizada a eutanásia, estaremos perante um momento
disruptivo de mudança de paradigmas bioéticos. No actual paradigma, que parte da objectividade
do viver, toda a morte indevidamente antecipada tem de ser explicada e justificada,
sob pena de punição. Não nos poderão fazer mal sem que o devam explicar. Após a
subjectivização das causas da morte antecipada, essa explicação ficará entregue
a expedientes burocráticos. É a esta luz
que considero que o efeito de
rampa deslizante não
é, apenas, nem primeiramente, efeito de um progressivo relaxamento dos agentes
e das fiscalizações (ainda que
também muito se lhes deva), mas é, antes, inerente à disrupção
aqui já operada. Se
se inverter a antecedência da dignidade
em relação à autonomia, conferindo
à autonomia a precedência em relação à dignidade, então, a rampa já iniciou o
seu deslizamento.
Não são, por isso, surpreendentes os dados que nos chegam dos países
que a legalizaram (poucos, é bom que se afirme. Poucos e atingidos por fortes
críticas internacionais sobre os abusos…).
Segundo estudo orientado por Inghelbrecht, Bilsen e outros, ‘quase metade das enfermeiras admitem ter participado
em eutanásias sem o pedido expresso do paciente’. (informação disponível aqui)
‘Na
região da Flandres, em 2013, acelerou-se a morte sem pedido explícito a 1047
pacientes, correspondendo
a 25% do total das mortes provocadas e a 1,7% do total de falecimentos.’
(Estes dados são recolhidos de ‘Eutanásia em
cifras’, da
responsabilidade de Bisbat de Sant Feliv de LLobregat e disponibilizados em
Chambaere, Vander e outros) ‘Apesar de a legislação prever, na Holanda e na
Bélgica, a notificação
das eutanásias realizadas, em 23% dos casos, na
Holanda, e em 47% nas Flandres, a eutanásia não é comunicada.’ (Dados recolhidos de ‘Eutanásia em cifras’, da
responsabilidade de Bisbat de Sant Feliv de LLobregat e consultáveis aqui e aqui)
Entre
os casos mais dramáticos de aplicação da eutanásia conta-se o de uma idosa
que, na Holanda, foi eutanasiada contra a sua vontade, argumentando a médica,
entretanto julgada, que ela manifestara essa vontade num primeiro momento. As
imagens correram mundo, mostrando ter sido necessário agarrar a paciente para
poder executar a eutanásia.
E
poderíamos continuar a enumerar os sinais do deslizamento da rampa: a aplicação da eutanásia a alcoólatras, a
deprimidos e, até, ao abrigo do chamado consentimento presumido. Em vários
relatórios se refere a aplicação da eutanásia sem declaração explícita das suas
vítimas, havendo registos de, em alguns anos, estes números chegarem à ordem
das centenas. (Dados disponíveis aqui)
Não vivemos sós nem isolados. E se há abandono, violência, falta de
compaixão, o papel das leis não consiste em legitimá-los, mas em contribuir
para a sua superação. Incorporar a violência letal nos serviços de que se
esperava cuidado e acompanhamento é dar a vitória ao que pretendíamos superar
quando nos organizámos em sociedades e estas se configuraram em estados. Quando um de nós sofre, sofremos todos com
ele; quando um de nós morre, morremos todos na sua morte. Acusar-nos-ão
de idealismo os defensores da eutanásia, mas – caberá perguntar – não se
construiu a humanidade sobre nobres ideais? Se um de nós, em nosso nome, matar
alguém que lhe pede que termine o seu sofrimento, todos estaremos a ser
cúmplices desse ‘matar’. Um Estado
de Direito é assim que funciona. A porta entreaberta é já uma porta aberta.
Entreabrir a porta da eutanásia, qualquer que seja o pretexto, encarregar-se-á
de a levar a escancarar-se, mais cedo do que todos esperamos. E o que, hoje, é
exceção tornar-se-á aceitável e tolerável, a breve trecho. Foi para isto que
nos fizemos um povo?
COMENTÁRIOS:
Ana Silva: Excelente
artigo. Muito claro, completo e assertivo no raciocínio.É necessário estar
confortável com a verdade para atingir a sabedoria desta mensagem: ter uma
visão do ser humano, criatura, por um lado, e ter Deus no seu lugar, por outro,
que está acima de tudo e de todos. Só deixando Deus no Seu lugar por direito
(divino) e por Sua escolha (oferta da Sua vida na cruz para nossa salvação),
para compreender que somos todos iguais em dignidade, todos resgatados por um
alto preço, o Seu sangue, todos filhos de Deus. Tal visão permite-nos o acesso
à atitude de humildade perante a vida de cada pessoa, por mais débil ou sofrida
que seja, pois não somos deuses. Não temos o direito de decidir da vida e da
morte de outrem, em dois sentidos: tal é uma prerrogativa divina não nossa; e
como somos todos iguais ninguém se pode achar num patamar superior de
condescendência (nunca é compaixão) de dar a morte a quem a pede. Carminda Damião: Texto claro e elucidativo sobre a eutanásia. A
eutanásia é um retrocesso. É retirar dignidade ao ser humano. Devemos pensar é
na maneira de ajudar a pessoa que sofre, criando condições de apoio para
minorar o sofrimento. Tirar a vida a alguém (mesmo a pedido), nunca é um acto
digno. Ignorar a rampa deslizante é não querer ver a realidade. Fátima Vilaça: Fantástico texto! Deveria ser de estudo obrigatório dos
nossos deputados que infelizmente tão pouco sabem da temática que aprovam... É
COMpaixão que se deve cuidar e zelar pelo bem estar do outro, nosso próximo,
não é de certo COMpaixão que se mata! Alcides Longras: Excelente desconstrução e chamada de atenção bento guerra: Hipocrisia com muita lata MP PLC > bento guerra: O seu comentário, claro... bento guerra > MP PLC: Um altar de parvoíces Hipo Tanso: Estranho ser o primeiro a entrar neste espaço reservado
aos leitores assinantes. E se entrei
foi para felicitar o autor do artigo pela forma inteligente, sensível e,
sobretudo, humana como abordou o tema. Porque de facto contrasta violentamente com a forma
como os legisladores da eutanásia encaram o sofrimento e a morte dos seres
humanos. E não adianta lamentar que a maioria desses fazedores de leis ignorem
o que é COMPAIXÃO. O que não se assimila em criança não vai certamente
aprender-se quando adulto. Apetece
perguntar se essa gente que regula as condições da morte dos outros regularia
da mesma maneira as condições da sua própria morte e dos seus entes queridos.
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