De sabor pseudo-científico, de requinte
ameaçador, sem dúvida que desprezador, grosseiro e impostor, exibicionista e
grotesco, humilde e animalesco, e driblador e desfeiteador. Destes tempos de
pedantismo de aparas pseudo-intelectuais, de falsos respeitos nimbados de uma
seriedade perversa e hipócrita. Um excelente trabalho de PATRÍCIA FERNANDES
sobre o “ex- Belo Sexo”.
O que é uma mulher?
Foi a partir do corpo e da biologia
que se constituíram muitos dos direitos e liberdades conquistados pelas
mulheres, mas essa base foi destruída com a adopção da chamada teoria queer nos
anos de 1990
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da
Universidade do Minho e na Faculdade de Letras da Universidade do Porto
OBSERVADOR, 10 abr. 2023, 00:20
1A pergunta
Um dos aspectos mais
intrigantes dos nossos dias é o facto de a pergunta “O que é uma mulher?” se
ter tornado uma questão política tão relevante no mundo anglo-americano. Não estou
a falar do sentido filosófico da pergunta (já lá
vamos), e se lhe parece óbvio que uma mulher é um ser humano do sexo feminino é
melhor ter calma. Quando a revista Time decidiu, em 2020, homenagear 100 mulheres (considerando que a alteração do reconhecimento Man of the Yearpara Person
of the Year não era suficiente) fez acompanhar o projecto de um texto intitulado “What Does It
Mean to Be a Woman? It’s Complicated” [O que significa ser uma
mulher? É complicado] Complicado? Bem-vindo ao século XXI.
Nos Estados Unidos, a pergunta
é central para as lutas culturais, sobretudo em resultado da infiltração das
teorias de género nas escolas: foi colocada à juíza nomeada por Joe Biden para
o Supremo Tribunal de Justiça, Ketanji Brown Jackson,
que afirmou não conseguir responder por não ser bióloga, e foi tema de um documentário do comentador político
conservador Matt Walsh. Mas é no Reino Unido que a
discussão é mais acesa, o que não surpreende se considerarmos a longa tradição
britânica na luta feminista, ao que acresce a visibilidade de J.K. Rowling, que desde o final de 2019 se
colocou no centro da polémica.
Nos últimos anos, a disputa no Reino
Unido tem decorrido em torno do Gender Recognition Act (2004), que tem sido
alvo de recomendações de correção desde 2016. Essas alterações passariam por
facilitar o processo de transição de género, dispensando o diagnóstico médico e
avançando para um princípio de autoidentificação. O tema é fracturante em quase todos os partidos (mesmo entre os
Tories, como as posições de Theresa May, Justine Greening ou Penny Mordaunt
demonstram), mas é sobretudo no interior do Partido Trabalhista que o conflito
tem sido mais dramático. Por que razão?
Como já tenho
apontado, a maioria dos direitos reivindicados pela agenda trans
entra em conflito com direitos das mulheres, o
que dá lugar a um agon muito concreto: como o Labour acolheu
tradicionalmente os movimentos feministas e tem acolhido, mais recentemente,
aquela agenda, o embate entre estas duas fações tem sido extremamente virulento
e, acima de tudo, tem criado divisões insuperáveis no partido.
Talvez o momento mais importante desta
tensão tenha sido em fevereiro de 2020, quando, em plena campanha para a
nova liderança do Labour, foi criado um grupo de pressão para direitos trans e
não-binários: o Labour Campaign for Trans Rights. No seu
manifesto publicado no Tribune, este grupo estabeleceu como objetivos comprometer
o Partido Trabalhista com a defesa das pessoas trans e resistir às forças
transfóbicas que dentro do partido tentavam minar o seu direito à dignidade. Para esse
efeito, apelaram à subscrição de um compromisso com as suas reivindicações –
uma espécie de juramento, que foi feito pelas candidatas Rebecca Long-Bailey e Lisa Nandy,
embora não por Keir Starmer. Mas, acima de tudo, os promotores desta campanha tinham em vista fragilizar um grupo de
enorme importância dentro do Labour, o Woman’s Place UK,
promotor dos direitos das mulheres, e fizeram-no defendendo o método habitual
deste tipo de movimentos: apelando à expulsão do partido de todos os que
discordam da sua agenda. Esta pressão acabou por originar uma reacção viral
no Twitter, com muitas militantes do Labour a manterem a sua posição, usando de
modo provocatório a hashtag #ExpelMe.
Foi este clima de guerra civil que Keir
Starmer encontrou quando venceu as eleições para a liderança do Partido
Trabalhista em abril de 2020. E se
começou por afirmar que não é correcto dizer que apenas
as mulheres têm colo do útero (2021), que as mulheres trans são mulheres
(2022) e que 99% das mulheres não têm pénis
(2023), tem agora procurado moderar essas posições, garantindo que os direitos das
mulheres não serão revertidos. É tentar fazer a quadratura
do círculo, mas Starmer quer evitar o erro cometido por Nicola Sturgeon, que, ao pressionar a sua Gender Recognition
Reform (GRR) até ao travão imposto pelo Governo de Rishi Sunak, provocou fortes
reacções sociais e divisões dentro do próprio partido. Esta tem sido apontada
como uma das razões para o seu afastamento e dividiu os candidatos à liderança
do SNP, com a vitória de Humza Yousaf, favorável à GRR.
Considerando todo este contexto, não é
surpreendente que o actual primeiro-ministro da Nova Zelândia, Chris Hipkins,
que sucedeu à assustadora Jacinta Ardern em janeiro deste ano, tenha sido
confrontado há dias sobre o seu entendimento do que é uma mulher. Sintomática é a sua
dificuldade em responder: ou, nas palavras de Suzanne Moore, “When did ‘woman’ become the
hardest word to define?” [Quando é que “mulher” se tornou a
palavra mais difícil de definir?].
2A resposta
Filosoficamente, a reflexão
sobre o que é uma mulher marcou todo o pensamento feminista ao longo do século
XX e era promovida de forma quase obsessiva nos encontros entre mulheres, muito
populares nas décadas de 1960 e 1970, em que se procurava escalpelizar a
natureza da experiência feminina. Esse processo de autorreflexão não era
injustificado: se a voz da mulher ganhava um novo espaço na esfera
pública e política, era normal que se tentasse compreender que voz era essa e o
que a distinguia da voz masculina, nomeadamente considerando os problemas e
perspectivas que eram especificamente femininos e haviam sido silenciados.
Esta reflexão era naturalmente promovida a partir de um corpo e de
uma biologia que distinguia homens e mulheres – e foi a partir desse corpo e
dessa biologia que se constituíram muitos dos direitos e liberdades
conquistados pelas mulheres nas últimas décadas. Mas essa base foi destruída a partir
do próprio pensamento feminista, com a introdução da designada teoria queer nos
anos de 1990 (tema para um próximo texto). De facto, na medida em que o
pensamento queer procura dissolver fronteiras e identidades, nomeadamente entre
homem e mulher, anula a referência biológica e remete tudo para o género e a
construção social. E, se assim é, caberia a cada pessoa, através de uma decisão
exclusivamente individual, determinar a sua identidade.
Entramos aqui (e novamente) no domínio
identitário, com todos os perigos que o têm caracterizado: mais do que refazer
questões, a perspetiva identitária procura delimitar o que pode ser perguntado
e como deve ser perguntado (tanto na esfera pública, como na esfera privada). A
consequência é evidente: quem ousa hoje falar da mulher enquanto ser do sexo
feminino (ou seja, remetendo para uma dimensão biológica) deve ser silenciado.
É o que acontece quando se
exige que pessoas que pensam de forma diferente sejam expulsas do partido, ou
quando se tenta impedir que pessoas-que-pensam-coisas-inaceitáveis se expressem
no espaço público.
Foi o que sucedeu a Kellie-Jay Keen, mais
conhecida como Posie Parker, na sua digressão pela Nova Zelândia. O
que faz esta terrível activista pelos direitos das mulheres? Promove
encontros públicos em que as mulheres… falam: Let Women Speak. Trata-se,
obviamente, de um pecado capital, pelo que Posie Parker foi recebida com esta violência em
Auckland – uma reacção julgada por muitos como adequada face ao
perigo que as palavras comportam.
A única forma de responsabilizar os actores
políticos por estas acções e reacções é pressioná-los com perguntas incómodas,
como o seu entendimento do que é uma mulher. E foi isto que o jornalista Sean
Plunket fez a Chris Hipkins, uma motivação que está muito para além da notícia
manifestamente parcial que o Observador
publicou sobre o assunto.
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