… Em carteiras de aulas.
Nunca esquecerei - como demonstração desse nosso chico-espertismo
flagrante, para onde descamba a lição exemplar do Dr.
Salles - o caso que por mim passou – durante um ano de aulas
nocturnas que leccionei, as quais começavam com quarenta ou mais alunos nessa
primeira aula de preenchimento de cadernetas, e logo iam esvaziando, no final do
ano convertida cada turma a três ou quatro alunos, se tanto, o Estado tendo de
pagar a nove ou dez professores das várias disciplinas para esses “estudantes-trabalhadores”
viageiros. Afinal os alunos – trabalhadores ou não - matriculavam-se nos cursos
nocturnos para obterem à borla o passe dos comboios, na sua ânsia cosmopolita da
área específica das suas culturas, que não tinham assento em salas de aula, mas
nos comboios do seu cosmopolitismo individual...
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 25.04.23
COSMOPOLITISMO – 3
No primeiro texto sob esta mesma epígrafe referi-me ao cosmopolitismo
étnico, na perspectiva que deu origem ao conceito a que hoje há quem
chame multiculturalismo; no
segundo texto referi-me ao cosmopolitismo científico, o antónimo do autismo universitário;
no presente texto refiro-me ao cosmopolitismo cultural.
Assim me refiro a uma dimensão
macro, a uma micro e a uma dimensão individual. Outras dimensões
haverá…
* * *
Em conformidade com o dicionário, cosmopolita
é aquele que conhece muitos lugares.
Assim como aquele que sabe muitas coisas não passa de uma
enciclopédia, também o maquinista do Transiberiano conhece muitos locais.
No entanto, nem um é necessariamente culto nem o outro é necessariamente
cosmopolita. Porquê? Porque culto é
aquele que busca o significado (das coisas, dos acontecimentos…) e cosmopolita é aquele que busca a epifania (a essência,
a História) dos lugares. O cosmopolita é necessariamente culto; o culto pode
não ser cosmopolita.
Se a tudo isto juntarmos a afirmação de que «a História
é a essência da Cultura», compreendemos a sugestão de James Joyce no sentido de procurarmos descobrir «o que as pedras tenham para nos
contar», aquilo a que ele chamava a epifania dos lugares a que eu passei a
chamar a epifania joyceana.
Ou seja, para se ser cosmopolita não basta ter um conhecimento
topográfico ou pictórico dos lugares visitados, é necessário conhecer-lhes a
essência. E para que isto aconteça, é fundamental despertar a curiosidade do
candidato a cosmopolita. Curiosidade desperta-se pela boa pedagogia e esta
pratica-se nas escolas, nas palestras, nas visitas guiadas… e uma das
acções mais importantes é a do combate ao abandono escolar precoce.
A
acumulação de vagas sucessivas de desistentes escolares produziu o actual
flagelo de uma enorme percentagem da nossa população em idade activa não
possuir o ensino obrigatório.
Assim
chegamos à conclusão de que nos sobra «chico-espertismo» e nos falta cosmopolitismo.
Abril de 2023
Henrique
Salles da Fonseca
Tags: sociolo
Adriano Miranda Lima, 29.04.2023 00:22: Tem razão, Dr. Salles da Fonseca, o
"chico-espertismo" é uma das características da nossa essência, e
infelizmente "sobra" em prejuízo das virtudes por que ansiamos para
podermos ombrear com os outros. O chico-espertismo pode entender-se como
espírito de desenrascanso e de improviso, aliado a uma apetência incorrigível
para passar a perna ao outro e para transgredir e fugir às responsabilidades. Fala-se
amiúde de um Portugal salazarista, mas a verdade é que, na opinião de muitos,
Salazar sentia certo desprezo pelos portugueses, o que é paradoxal. Há uma
entrevista de Salazar a António Ferro em que ele afirma: "O povo português
é excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar
por isso, falho de espírito de continuidade e de tenacidade na acção. A própria
facilidade de compreensão, diminuindo-lhe a necessidade de esforço, leva-o a
estudar todos os assuntos pela rama, a confiar demasiado na espontaneidade e
brilho da sua inteligência. Mas quando enquadrado, convenientemente dirigido, o
português dá tudo quanto se quer". No entanto, apesar do seu longuíssimo
consulado e da percepção de que dá conta nessa entrevista, Salazar nada
conseguiu mudar na mentalidade do seu povo. Bem pelo contrário, pode até ter
contribuído com a sua política de fechamento ao cosmopolitismo para que hoje se
possa falar do Portugal Salazarista. E ao que parece está a actualmente a
conquistar eleitorado, ainda que se possa pensar que nem o próprio Salazar
pactuaria com os métodos e as práticas da extrema-direita que tem assento no
Parlamento.
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