quarta-feira, 26 de abril de 2023

O saber do chico-esperto não ocupa lugar…


… Em carteiras de aulas.

Nunca esquecerei - como demonstração desse nosso chico-espertismo flagrante, para onde descamba a lição exemplar do Dr. Salles - o caso que por mim passou – durante um ano de aulas nocturnas que leccionei, as quais começavam com quarenta ou mais alunos nessa primeira aula de preenchimento de cadernetas, e logo iam esvaziando, no final do ano convertida cada turma a três ou quatro alunos, se tanto, o Estado tendo de pagar a nove ou dez professores das várias disciplinas para esses “estudantes-trabalhadores” viageiros. Afinal os alunos – trabalhadores ou não - matriculavam-se nos cursos nocturnos para obterem à borla o passe dos comboios, na sua ânsia cosmopolita da área específica das suas culturas, que não tinham assento em salas de aula, mas nos comboios do seu cosmopolitismo individual...

COSMOPOLITISMO - 3

HENRIQUE SALLES DA FONSECA

A BEM DA NAÇÃO, 25.04.23

COSMOPOLITISMO – 3

No primeiro texto sob esta mesma epígrafe referi-me ao cosmopolitismo étnico, na perspectiva que deu origem ao conceito a que hoje há quem chame multiculturalismo; no segundo texto referi-me ao cosmopolitismo científico, o antónimo do autismo universitário; no presente texto refiro-me ao cosmopolitismo cultural.

Assim me refiro a uma dimensão macro, a uma micro e a uma dimensão individual. Outras dimensões haverá…

* * *

Em conformidade com o dicionário, cosmopolita é aquele que conhece muitos lugares.

Assim como aquele que sabe muitas coisas não passa de uma enciclopédia, também o maquinista do Transiberiano conhece muitos locais. No entanto, nem um é necessariamente culto nem o outro é necessariamente cosmopolita. Porquê? Porque culto é aquele que busca o significado (das coisas, dos acontecimentos…) e cosmopolita é aquele que busca a epifania (a essência, a História) dos lugares. O cosmopolita é necessariamente culto; o culto pode não ser cosmopolita.

Se a tudo isto juntarmos a afirmação de que «a História é a essência da Cultura», compreendemos a sugestão de James Joyce no sentido de procurarmos descobrir «o que as pedras tenham para nos contar», aquilo a que ele chamava a epifania dos lugares a que eu passei a chamar a epifania joyceana.

Ou seja, para se ser cosmopolita não basta ter um conhecimento topográfico ou pictórico dos lugares visitados, é necessário conhecer-lhes a essência. E para que isto aconteça, é fundamental despertar a curiosidade do candidato a cosmopolita. Curiosidade desperta-se pela boa pedagogia e esta pratica-se nas escolas, nas palestras, nas visitas guiadase uma das acções mais importantes é a do combate ao abandono escolar precoce.

A acumulação de vagas sucessivas de desistentes escolares produziu o actual flagelo de uma enorme percentagem da nossa população em idade activa não possuir o ensino obrigatório.

Assim chegamos à conclusão de que nos sobra «chico-espertismo» e nos falta cosmopolitismo.

Abril de 2023

Henrique Salles da Fonseca

Tags: sociolo

Adriano Miranda Lima, 29.04.2023 00:22: Tem razão, Dr. Salles da Fonseca, o "chico-espertismo" é uma das características da nossa essência, e infelizmente "sobra" em prejuízo das virtudes por que ansiamos para podermos ombrear com os outros. O chico-espertismo pode entender-se como espírito de desenrascanso e de improviso, aliado a uma apetência incorrigível para passar a perna ao outro e para transgredir e fugir às responsabilidades. Fala-se amiúde de um Portugal salazarista, mas a verdade é que, na opinião de muitos, Salazar sentia certo desprezo pelos portugueses, o que é paradoxal. Há uma entrevista de Salazar a António Ferro em que ele afirma: "O povo português é excessivamente sentimental, com horror à disciplina, individualista sem dar por isso, falho de espírito de continuidade e de tenacidade na acção. A própria facilidade de compreensão, diminuindo-lhe a necessidade de esforço, leva-o a estudar todos os assuntos pela rama, a confiar demasiado na espontaneidade e brilho da sua inteligência. Mas quando enquadrado, convenientemente dirigido, o português dá tudo quanto se quer". No entanto, apesar do seu longuíssimo consulado e da percepção de que dá conta nessa entrevista, Salazar nada conseguiu mudar na mentalidade do seu povo. Bem pelo contrário, pode até ter contribuído com a sua política de fechamento ao cosmopolitismo para que hoje se possa falar do Portugal Salazarista. E ao que parece está a actualmente a conquistar eleitorado, ainda que se possa pensar que nem o próprio Salazar pactuaria com os métodos e as práticas da extrema-direita que tem assento no Parlamento.

 

 

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