quinta-feira, 27 de abril de 2023

Cada um é seus caminhos


Afinal. Os da rua, os da arruaça, os da ideologia, os do ódio, os do amor. Tudo cabe no ideal democrático, que assenta na liberdade, igualdade, fraternidade. Rua connosco.

A rua é democrática?

A falta de confiança política tem-se feito acompanhar pela perda de confiança num modelo de organização que deixou de funcionar adequadamente pelo que a revolta antissistema não nos deve surpreender.

PATRÍCIA FERNANDES,  Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho e na Faculdade de Letras da Universidade do Porto

24 abr. 2023, 07:2420

Em 2011, a revista Time escolheu como pessoa do ano a figura do manifestante. Foi um ano de grande exultação popular nas ruas: depois dos protestos que ficariam conhecidos como Primavera Árabe, as manifestações espalharam-se pelos países ocidentais, desde a geração à rasca entre nós aos indignados espanhóis, até culminar no movimento Occupy. Esse ano, que Slavoj Žižek viria a consagrar como o ano em que sonhamos perigosamente, sedimentaria o argumento de que um regime verdadeiramente democrático está mais próximo dos movimentos que ocupavam as ruas do que da democracia formal representativa que estaria resgatada por interesses das elites económicas.

O argumento tem forte ressonância académica, mas, como muitas vezes acontece, acaba por originar uma contradição insuperável: é que as mesmas pessoas que asseveram a primazia da rua em certos protestos são as mesmas que invalidam com igual vigor os protestos com os quais não concordam. Recordemos como, poucos anos volvidos, em Portugal se criticaram as manifestações em defesa das escolas com contrato de associação ou, em França, os coletes amarelos. Esta atitude de porteiro (gatekeeping) – que consiste em reclamar o direito de dizer quem é de esquerda, o que é democrático, que ideias são legítimas, etc. – visa silenciar vozes contrárias e deve, por isso, ser denunciada, mas escapa à pergunta que pretendo aqui explorar: em regimes democráticos liberais, os protestos de rua são legítimos ou põem em causa a democracia?

O que é a democracia?

Para responder àquela questão, temos de começar por esclarecer o que queremos dizer com a palavra democracia (um conceito essencialmente contestado, como diz W.B. Gallie). E podemos fazê-lo a partir de uma perspetiva histórica: a democracia dos antigos seria uma forma de governo assente na participação directa dos cidadãos; a democracia dos modernos (a nossa democracia) seria uma democracia indirecta ou representativa, na medida em que o exercício do poder cabe a representantes, escolhidos em eleições.

É o espírito da antiguidade que alguns convocam para afirmar que uma verdadeira democracia tem de significar a participação directa dos cidadãos (nomeadamente, em assembleias populares): só assim o regime se torna legítimo. E de acordo com esta perspectiva, a democracia representativa surgiria como uma versão defeituosa da democracia verdadeira.

Esta posição desvaloriza, no entanto, um aspecto importante, como chamam a atenção Bernard Manin e Nadia Urbinati: ao contrário de ser um sistema defeituoso, a democracia representativa foi desenhada precisamente para superar as fragilidades da democracia dos antigos. O que os filósofos dos séculos XVIII e XIX, profundos conhecedores da antiguidade, tentaram fazer foi superar as dificuldades que identificavam nas democracias gregas e nas repúblicas populares romanas.

Que correcções foram então promovidas?

O elemento central da democracia representativa assenta num princípio fundamental de mediação: todas as estruturas, mecanismos e instituições são pensados para garantir um processo de mediação que permita diluir a possibilidade de conflito e violência. Em primeiro lugar, a existência de representantes permitiria que, por um lado, as decisões políticas sejam tomadas não em função do interesse próprio, mas com imparcialidade; e, por outro, que um princípio de racionalidade prevaleça sobre uma lógica de emoções e sentimentos – para tal, os representantes devem ter alguma margem de distanciamento e liberdade na sua atuação. Em segundo lugar, a distribuição de funções por diferentes instituições eliminaria a possibilidade de concentração do poder. Em terceiro lugar, os partidos garantiriam a apresentação de medidas amadurecidas e reflectidas: como Ricardo Araújo Pereira costuma dizer, a política não pode estar ao nível das coisas que dizemos ao balcão de um café; e os partidos serviriam, então, para transformar preocupações sociais em medidas concretas, razoáveis e exequíveis. A partir daí, um regime democrático liberal permitiria o necessário processo de discussão, negociação e compromisso – que só é possível se formos capazes de nos afastar de interesses próprios e reconhecermos que as sociedades vivem de visões e interesses plurais, mas que, apesar disso, tem de ser possível chegar a um compromisso.

Significa isto, como disse José Miguel Júdice recentemente, que “a população ignara no meio da rua deve ser impedida de destruir as decisões dos órgãos legitimados pelo voto”?

Na verdade, a maioria dos autores considera que a democracia representativa deve garantir que os representados possam expressar as suas queixas e reivindicações no espaço público e pressionar os representantes ou governantes. Embora privilegie o momento eleitoral, a democracia liberal não se limita a esse momento e deve compreender a possibilidade de manifestações, protestos e tentativas de condicionar a ação dos que se encontram em exercício. (Pensemos nos protestos de ontem junto ao Palácio de Cristal.)

Mas que limites haverá para essas manifestações?

A crise da democracia representativa

As palavras de José Miguel Júdice foram proferidas a propósito dos tumultos em França contra a decisão de alterar a idade de reforma. Júdice defendeu que se tratava de uma “violenta recusa da aceitação de uma decisão legal e legítima” e que, portanto, era uma tentativa de “subverter o estado de direito”. Equiparou ainda estes protestos ao que aconteceu nos Estados Unidos, com a invasão do Capitólio em 2021, e no Brasil, com a invasão ao Palácio do Planalto, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal no início deste ano. Tratar-se-ia de um assalto à democracia, pelo que se exige uma condenação clara deste tipo de manifestações.

A violência dos protestos assume aqui relevância, mas devemos ter em conta as tradições nacionais específicas e a França é um país que conta com uma longa tradição de protestos de rua violentos, como recorda Jaime Nogueira Pinto e Paulo Tunhas. Ainda assim, se considerarmos o número incrível de pessoas que tem protestado ao longo das últimas semanas, é possível afirmar que aquela violência constitui um comportamento minoritário. Por outro lado, tumultos violentos podem ser interpretados, na linha de Maquiavel, como importantes para a estabilidade do próprio sistema: o autor renascentista considerava que foi a dinâmica tumultuosa entre a plebe e os patrícios a permitir a estabilidade da república romana.

Mas a intuição de Júdice parece acertada quando afirma que os nossos tempos se assemelham aos idos de Março: há, de facto, uma deterioração do sistema representativo tal como o apresentei teoricamente, e que nos faz recordar os finais da república. Na verdade, as características que consolidariam a democracia dos modernos como uma melhoria face à democracia dos antigos parecem ter entrado em processo de obsolescência – em particular no que diz respeito ao mecanismo de representação, com um fosso crescente entre representantes e representados, entre o mundo político e o mundo real. E o problema desse fosso é que os representantes deixam de representar os eleitores para passarem a representar-se a si mesmos e aos seus interesses (às vezes pessoais, muitas vezes partidários). Esse afastamento provoca um sentimento generalizado de desconfiança face ao sistema político e tem ampliado a radicalização dos protestos antissistema.

Ora, essa falta de confiança política tem-se feito acompanhar pela perda de confiança num modelo de organização social que deixou de funcionar adequadamente – desde os serviços públicos aos apoios sociais –, pelo que a revolta antissistema não nos deve surpreender: sabemos que a legitimidade dos regimes políticos está directamente dependente da sua utilidade. Na verdade, essa revolta e aqueles protestos devem ser antes entendidos como sinais de que o sistema está a falhar (e, nessa medida, são eminentemente democráticos). Mas se confundirmos os sintomas com a doença (e isso é particularmente evidente em Portugal), não conseguiremos compreender se ainda é possível salvar a democracia liberal ou se estamos realmente condenados a olhar os nossos tempos como os idos de Março.

MANIFESTAÇÕES   PROTESTOS   SOCIEDADE

COMENTÁRIOS:

Paulo Silva: Dentro de regras, a rua também é um espaço de democracia que funciona como válvula de escape. Mas factualmente não é democrática porque a rua não é de todos; tem donos. Quando uma certa parte do espectro político sai à rua é amiúde confrontada com o bullying dos contra-manifestamtes... ou das autoridades.    Alexandre Barreira: Pois. Cara Patrícia. Infelizmente. Talvez mais um beco sem saída....!        

Francisco Almeida: Sempre interessante, sempre oportuna mas, desta vez a profª Patrícia Fernandes abriu uma frincha duma porta que eu preferia escancarada. Neste regime, as listas de deputados são preenchidas pelas chefias quando não pelo chefe do partido. Logo a representatividade é residual e o regime aproxima-se mais dum cesarismo eleito do que de uma democracia. Claro que não é um cesarismo do tempo romano nem sequer dos tempos medievais em que as circunstâncias impunham chefias com poder absoluto ou quase e as administrações eram pequenas. Hoje temos um Tribunal Constitucional, Uma Procuradoria Geral da República, um Tribunal de Contas, um Procurador Europeu, etc.. Mas, como se tem visto, com tempo, todos esse lugares acabam preenchidos por gente afecta ao líder partidário ou ao seu putativo sucessor; no mínimo, são afastados os opositores ou até os que apenas parecem potencialmente problemáticos. Há uma vasta comunicação social mas nem perco tempo a demonstrar que o poder do governo sobre ela é verdadeiramente desproporcionado. Temos também um Presidente da República que é comandante-chefe das Forças Armadas. Ora as chefias reais das FA, são nomeadas pela mesma liderança partidária, nem que para isso haja que encurtar mandatos sem qualquer motivo como se viu recentemente com o Almirante Mendes Calado. Aí o poder do PR é também residual. Além de uma magistratura de influência, pouco ou nenhum é o poder político do PR. De facto os deputados escolhidos pelas chefias partidárias podem obrigá-lo a promulgar leis como parece ir agora acontecer com a da Eutanásia. Resta o que os políticos chamam a "bomba atómica" a dissolução da AR. Mas, do ponto de vista teórico, pode mudar o César mas será substituído por outro ou, possivelmente por um duunvirato ou mesmo um triunvirato. Já no plano prático, esse medida exige uma grande dose de coragem pessoal, qualidade que não abunda para os lados de Belém. Por tudo concluo que não só o sistema político actual é mais um cesarismo do que uma democracia, como esse cesarismo tende a acentuar-se. No meu ponto de vista, já deixo a porta meio aberta.

Joaquim AlmeidaFrancisco Almeida: Aponta um  defeito grave do nosso sistema de representação : elegemos desconhecidos ( em listas dos caciques) e os desconhecidos, nem antes nem depois de eleitos, não se dão ao incómodo de se revelarem aos eleitores e de manterem com eles vias comunicação. E não querem mudar..                    Maria Emília Ranhada Santos: Não é só a rua que não é democrática em Portugal! Já nada é democrático nesta terra! Porquê? Porque os poderosos tudo transformaram em corrupção para acabarem com a civilização cristã, que esta sim é democrata, e transformarem o mundo numa ditadura de governo único, onde nós seremos os escravos e eles os poderosos e corruptos, os genocidas da actualidade, serão os "putins, os maduros, etc.," como podemos observar! A actuação de Lula da Silva mostra claro que tipo de governantes eles escolhem! É pena que tão poucos vejam isto e acreditem que estamos numa guerra camuflada, hipócrita, enganadora e muito traiçoeira!                  João Floriano: Excelente texto e sobretudo de grande actualidade. Nunca conseguiremos chegar a uma democracia plena mesmo com a realização de Assembleias Populares. Haverá sempre quem pela facilidade de discurso, conhecimento dos assuntos, militância e capacidade de intervenção ou intimidação, conseguirá conduzir as assembleias para o lado que se pretende. É também perigosamente generalizador afirmar que as manifestações são feitas por gente ignara. Os protestos enérgicos que os políticos do PS tiveram de ouvir ontem junto ao Palácio de Cristal não vieram de vozes de gente ignara, mas até muito bem informada. Podemos ou não concordar com os motivos do protesto, mas ignaros não eram certamente. No entanto é verdade que manifestações de rua se prestam a infiltrações ignaras de quem lá vai para provocar tumultos e confrontos, Paris é um exemplo disso. Os ignaros aproveitam a longa tradição do protesto em França para queimar equipamentos urbanos, atacar forças policiais e partir tudo o que encontram pela frente..........e os partidos serviriam, então, para transformar preocupações sociais em medidas concretas, razoáveis e exequíveis.

Esta é uma citação do artigo que me parece ser a chave da discussão. É para isso que a democracia e os partidos que  a representam servem: os problemas que se vão avolumando têm de ser resolvidos numa perspectiva democrática. Mas não são. Portugal e o seu governo PS é uma prova cabal de que não é assim que as coisas estão  a funcionar. Por todo o lado surgem novos problemas que o poder político não ataca, não resolve porque no nosso caso tem  medo de reformas . Pouco a pouco levará à deterioração do sistema representativo precisamente como estamos a ver hoje, com António Costa desdobrando-se em entrevistas onde ataca a oposição por linguagem institucional imprópria e esquece as suas próprias intervenções na assembleia ( uma verdadeira instituição), em que chama «queques que guincham» aos deputados do IL . Já esqueceu mas foi «muito fino e educado». Respondendo finalmente à questão: eu diria que sim, a rua também é um forum democrático onde se fazem ouvir vozes de apoio ou contra mas como tudo o resto precisa de regras, de respeito por normas de conduta. Ninguém sob que pretexto for deve descer a avenida da Liberdade a partir montras de lojas elegantes ou a incendiar carros e caixotes do lixo. Vamos ter precisamente uma oportunidade para testar esta teoria quando amanhã as 13 manifestações previstas em frente à assembleia da república se encontrarem com diversas palavras de ordem.                 José Roque: Notável, como habitualmente. Parabéns !               bento guerra: A rua nunca é democrática ,no sentido legal do termo. Depende muito dos artifícios com que a Comunicação a difunde. Veja-se como os meios, mesmo públicos ,ampliam a mensagem. Normalmente, os fracos políticos assustam-se .mas quer eles ,quer os seus amigos da televisão ,aguardam o quebrar da onda."Regardons la France"                     Maria Clotilde Osório: Não sei se a autora lê os comentários mas se for o caso, gostaria de lhe colocar a seguinte perspectiva que não sei se é correcta ou não: a democracia liberal funcionou enquanto a sociedade se baseava no "grupo base" chamado família. Um grupo que era, por definição, estável. Tendo essa realidade sofrido em 50 anos uma alteração assinalável, sendo esse "grupo base" uma realidade que nos últimos 30 anos se encontra em profunda transformação, não poderá isso ser a causa primeira da transformação que estamos a assistir no sistema político chamado democracia? Ao alterarmos as formas de relacionamento na base da sociedade não veremos as ondas de choque repercutirem-se nas organizações superiores da mesma?          João Floriano > Maria Clotilde Osório: Concordo totalmente com o Hipo Tanso quando considera a sua questão muito pertinente. Em minha opinião a família continua a existir se entendermos por família um núcleo de entreajuda e de afectos. Fala-se frequentemente em famílias disfuncionais mas essas sempre existiram. As famílias de hoje são diferentes das do meu tempo de juventude: mais baseadas nos interesses partilhados do que no sangue. Tenho primos que não vejo há anos mas falo todos os dias com uma das minhas «noras» e o filho que eu considero meu neto do coração. Para mim são família.                Maria Clotilde Osório > João Floriano: Não discuto a qualidade da família nem os laços que se estabelecem. Mas reparo que a célula base que se manteve mais ou menos estável por alguns séculos, quer na sua formação como na sua estabilidade (mesmo que em muitos casos aparente) sofreu uma transformação profunda nos últimos 50 anos. E o factor de estabilidade neste momento está muito pouco presente na sociedade.             Ana Torres: A rua não é democrática em Portugal. O tema não podia ser mais actual pois ontem constatamos que a rua não é democrática no nosso país, pois a manifestação que ontem decorreu no Porto  em que pessoas comuns e pacíficas foram impedidas de entrar no Palácio Cristal para se manifestar...               Fernando Serra: Análise lúcida e muito relevante nestes tempos de abordagens "do coração para a boca sem passar pela cabeça". Contra mim falo.             Pedro Almeida: Retirar da manifestação contra o Lula um cidadão com a bandeira da Ucrânia é democracia?                    Ana Silva: A democracia representativa implementada num dado território e ao serviço de uma nação, se não respeitar a separação de poderes ou se se tornar refém de uma oligarquia, como é o caso em Portugal, deixa de ser representativa da vontade dos cidadãos, de servir essa comunidade específica para passar a alimentar-se dela. A democracia, seja directa (como em Atenas da Antiguidade) seja indirecta, assenta a sua legitimidade no conjunto dos cidadãos. O povo é soberano, e os seus representantes devem servir a causa pública. O povo português tem bem viva essa consciência, felizmente! A violência dos protestos de rua deve, obviamente, ser sempre sancionada. Quem a pratica abomina a democracia e deve ser severamente punido, pois torna as ruas um campo de batalha e destruição, e é pelas ruas que caminham as nossas famílias e as nossas crianças e não as queremos inseguras. Mas o protesto pacífico (e ruidoso, claro!) do cidadão que não se revê nas políticas e decisões dos seus representantes é pois legítimo e até absolutamente necessário para a saúde de qualquer democracia. A nossa democracia está de saúde quando o povo se manifesta nas ruas. Quanto à nossa república está podre e precisa de renovação. Eu vou estar na manifestação do 25 de Abril, diante da AR. Precisamente porque acredito na democracia. Se não nem sequer punha lá os pés. Por Portugal. E pelo futuro dos meus filhos.

 

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