Pensant, quando
même. De pensamentos desencontrados que, em democracia, têm todos,
aparentemente, igual valor, forma cínica de se encarar o mundo, é o que parece,
mas, na realidade, falsa, pois que se condena com muito parti pris sempre - hoje como ontem, de resto, por cá - ignorando
esses clássicos gregos da tragédia e mesmo da comédia, com que nos regala
PATRÍCIA FERNANDES no seu excelente texto.
A
tragédia da realidade
Quando os que
deveriam fazer a mediação democrática estão tão afastados de alguns grupos
sociais e recusam que os factos possam ter interpretações diferentes, o espaço
de diálogo democrático desaparece.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da
Universidade do Minho
OBSERVADOR, 07 out. 2024, 00:1618
1Ambiguidade e responsabilidade
Em Tragedy, The Greeks, And Us,
Simon Critchley propõe a tragédia grega como abordagem filosófica. Essa filosofia da tragédia assentaria no princípio de que a tragédia é
a experiência da ambiguidade moral. Afinal,
“[o] certo está sempre em ambos os lados e,
invariavelmente, também está o errado. A justiça é um conflito, o
que significa que a justiça está dividida. A
justiça não é uma, mas pelo menos duas. Este facto pode ser encontrado em
todo o lado na tragédia, mas é mais evidente na Oresteia.”
A ambiguidade
moral e a complexidade natural da realidade tornam, ao contrário do que
gostamos de admitir, difícil afirmar com certeza o que está certo e o que está
errado. E talvez seja por isso que a grande pergunta
filosófica, que nos persegue desde os gregos, seja fundamentalmente uma: a de saber o que devemos fazer.
Permitindo
reflectir sobre a acção, a tragédia torna simultaneamente evidente a ilusão de autonomia (a ideia de que somos seres absolutamente autónomos e
capazes de tomar autonomamente decisões), mas também a ilusão da
irresponsabilidade (a ideia de
que a infortuna resulta do azar ou da intervenção desdenhosa dos deuses e do
destino, sem qualquer responsabilidade da nossa parte). Embora muitas
leituras da tragédia convoquem uma ideia do homem como
vítima das circunstâncias ou como um fantoche nas mãos dos deuses, Critchley apresenta uma versão diferente:
“A tragédia exige um certo grau de cumplicidade da
nossa parte no desastre que nos destrói. Não se
trata simplesmente de uma actividade malévola do destino, de uma profecia
sombria que decorre da vontade inescrutável, mas muitas vezes questionável, dos
deuses. A tragédia exige a nossa conivência
com esse destino. Por outras palavras, exige uma grande dose de liberdade”.
Mais uma
vez, Rei Édipo é um bom exemplo: o decifrador de enigmas já
dispunha de pistas, informações e muitas dúvidas sobre as suas circunstâncias.
Ignorá-las, ou não ter sido prudente quanto a elas, foi um acto da sua
responsabilidade. Assim,
“[u]ma
lição da tragédia é que conspiramos com o nosso destino. Ou seja, a fatalidade
exige a nossa liberdade para que o nosso destino se abata sobre nós. A
contradição central da tragédia é que nós sabemos e não sabemos ao mesmo tempo
e somos destruídos no processo.”
É este duplo
apelo à ambiguidade e à responsabilidade que nos pode ajudar a compreender
melhor as dificuldades dos nossos tempos, marcados por um esforço contínuo de
simplificação e vitimização: como se a realidade não fosse ambígua e complexa e
como se nunca tivéssemos responsabilidade em relação ao caos.
2Factos e valores
A tragédia como filosofia ensina-nos,
então, a percepcionar a realidade como essencialmente ambígua, como palco de
disputa entre diferentes visões do mundo, diferentes entendimentos do que está
certo e errado, mostrando que há verdade e erro dos dois lados e que a justiça
resulta dessa própria ambiguidade. Quando
esquecemos essa complexidade,
“[c]ada lado acredita
inabalavelmente na rectidão da sua posição e no erro ou, como se costuma dizer,
no mal do inimigo. Essa crença legitima a violência, uma violência destrutiva
que desencadeia a contra-violência como resposta. Parecemos ficar retidos num
ciclo de vingança sangrenta e presos a círculos viciosos de sofrimento e raiva
causados pela guerra.”
Eis a grande lição da tragédia:
quando evitamos a ambiguidade e o conflito de ideias, somos, paradoxalmente,
conduzidos à violência e à guerra. Simplificar a realidade e, em particular, reivindicar um acesso
privilegiado à verdade que demoniza o que pensa de forma diferente – mesmo que
feito em nome da paz, dos direitos humanos, da inclusão – parece conduzir à
violência e ao caos. Estes decifradores da verdade são os primeiros a
descartar qualquer responsabilidade no desastre – mas eis a segunda lição da
tragédia: tal como Édipo compactuou com o destino, também estas
pessoas ignoraram os avisos.
As sociedades ocidentais parecem viver
hoje uma condição de caos latente, que pode ser interpretada como resultado
dessa tentativa de silenciar outras vozes e outras interpretações do mundo –
como se a realidade fosse simples e a justiça evidente. É aquilo a que o
cientista político Jeffrey Friedman designa de crise
epistemológica, quando chama a atenção para o facto de o espaço
público estar ocupado por opiniões que “não se baseiam em ‘alegações’ mas em
‘verdades’. Assim, a outra parte,
ao discordar dos meus argumentos, está a ‘ignorar a verdade’ ou, mais
concretamente, a ‘divulgar informação incorreta’ ou mesmo ‘desinformação’.”
Parece haver, de facto, uma confusão
generalizada entre “factos” e “valores”,
como se, perante determinado facto, só
fosse possível uma determinada apreciação valorativa. Uma apreciação de valor diferente é entendida
como recusa em ver a verdade ou erro (na maioria das vezes, induzido por
outrem), dando origem à acusação de desinformação e desencadeando histéricos fact-checkings (mais
sobre isto em breve).
Na verdade, a política é o terreno do
confronto e da disputa entre valores, mesmo que partindo dos mesmos factos, e a
democracia foi a forma que encontramos para resolver essa disputa sem violência
e tirania. Mas para que a democracia funcione é necessário que os seus
participantes sejam capazes de fazer aquilo que o tirano não faz: ouvir o outro
lado.
3O princípio da caridade
De acordo com Critchley, uma das formas
de interpretar o título da peça de Sófocles – Oidipous Tyrannos, no original – resulta de Édipo se recusar a ouvir o que lhe é dito, nomeadamente
por Tirésias, que, muito cedo na peça, lhe diz que ele é a causa do mal que
atinge a cidade: “Édipo
simplesmente não ouve Tirésias. (…) O tirano não ouve o que lhe é
dito e não vê o que está diante dos seus olhos.”
Diogo Ventura/Observador
Já o valor da democracia passa por
garantir que todas as vozes são ouvidas (mesmo que, por vezes, alguns excessos
possam ser cometidos), por forma a que os governantes consigam
ver, ouvindo essas vozes, o mundo real de que estão, naturalmente,
afastados. Mas quando
aqueles que deveriam servir de mediação democrática estão de tal forma
afastados da mundividência de alguns grupos sociais e recusam que os factos
possam ser interpretados de modo diferente – em resultado de valores
diferentes, mas também de impactos sociais diferentes –, o espaço de diálogo
democrático desaparece. Aí a culpa passa a ser da
extrema-direita, da desinformação, do racismo, de Donald Trump. O que parecem
incapazes de reconhecer é a sua cumplicidade: não quiseram ouvir.
Que contributos pode dar aqui a
filosofia da tragédia? Na medida em que a tragédia incentiva o
raciocínio adversativo (“adversarial reasoning”), fazendo-nos pensar a partir
da posição do adversário e ouvir o outro lado, ela pode ensinar-nos que o mais
provável não é que o outro seja ignorante ou a maldade em pessoa: o mais
provável é que veja as coisas de forma diferente. E, por isso, Friedman
apela ao princípio filosófico da caridade:
“devemos tentar, na prática, compreender com empatia as ideias que
podem levar os nossos adversários políticos, de boa-fé, a conclusões diferentes
das nossas”.
E
isto significa não ser parcial nas notícias, não atirar números e factos com o
objectivo de desvalorizar as preocupações das pessoas e não demonizar aqueles
que pensam de forma diferente. Porque enquanto as populações tiverem direito de
voto, vão fazer ouvir a sua voz nas urnas. E depois não se queixem da marcha
da extrema-direita.
COMENTÁRIOS (de
23)
A. Samora > Isabel
Gomes: Estás a
confundir, Isabel. O trágico não estará no texto., mas em ti, que não o
consegues perceber. Talvez devesses fazer um esforçozinho antes de te
pronunciares. José B
Dias > A. Samora Que melhor exemplo que o que a Isabel dá para
ilustrar o que a cronista vem afirmar ... GateKeeper: Um dos melhores textos de 2024, so far. Muito acima do
nível do actual conundrum político-social da "tuga-lândia". E para o
ler e entender [não concordando necessariamente com algumas das duas
"conclusões"] bastou a verdade da História da Humanidade
desde os tempos dos Gregos : a democracia é uma bonita/feia Utopia; vendida, comprada, omitida e a vestir as peles de
vários animais, desde a pombinha com o devido raminho d'oliveira no biquito até
ao lento [mas de perigosa língua comprida e pegajosa], camaleão. Para mim,
existe um problema crucial pouco abordado neste texto: e ele "reside"
nas e nos cidadãos que não " manifestam uma posição clara e actuante
perante factos e omissões. É o caso das/dos cidadãos Portugueses e da maioria
das/dos "Europeus". Vivem o presente "em serpentina" nada
tendo aprendido com o passado e "olhando vagamente para um futuro que nem
conseguem concretizar em pensamento. Desde que tenham cama, roupa lavada, 4xdia
refeições e distracção diária " está tufo bem", incluindo filhos
& netos. O seu mote sempre foi : " E eu, o que tenho a ver com
"isso"?! Normalmente, descendo à "Terra", são elas e eles
que "soam e tocam mais doce e "demo" por aqui e por ali. Quando
alguém promete/afiança em vão olhando-nos de frente é quase imediata a
radicalização perante o logro não praticado. Não é fácil ler/entender textos
desta natureza; a desistência está logo ali, à vossa disposição, após a
"intro"; e, no entanto, esse é o caminho errado : geralmente "o
mais fácil". Se fosse minha aluna, em 20 possíveis teria sido avaliado (o
texto) na "zona entre os 17 e os 19 valores". Mas, como não é,...
Obrigado. João
Carlos Basilio: Mais um
excelente artigo. Ou eu me engano ou não e estou perante uma mente brilhante. Mas,
de uma coisa tenho a certeza: Alguns dos seus escritos têm-me ajudado, e muito,
a entender a complexidade da realidade e da Democracia. Bem haja. João Amorim: Um texto muito oportuno, nestes de intolerância em que
vivemos.
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