Limitadinha, naturalmente, mas
suficientemente feliz, para apreciarmos o que temos de bom e de mal, por aqui –
e, neste momento, sentirmos o prazer da leitura deste texto de Patrícia Fernandes, sem mais nos
questionarmos sobre os quês e os porquês das nossas incompreensões humanas.
Vivamos, aceitemos, agradeçamos os dons recebidos na nossa vida, chorando, é
claro que também, os nossos males e os alheios, vibrando, simultaneamente, com as
utopias do nosso engenho criador.
O castigo de Prometeu
A ânsia de uma nova condição
agravou-se no século das Luzes com ideias que moldam a nossa forma de pensar: a
crença no conhecimento e no seu poder; a convicção na perfectibilidade humana e
no progresso
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de
Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR,21 out.
2024, 00:1912
1 O maior dos prodígios
Os campi universitários têm
geralmente uma disposição dispersa e não é fácil identificar a sua entrada. Como diria o gato em Alice no País das
Maravilhas, aquilo que entendermos como entrada vai depender do destino que
procuramos. Mas isso não se aplica com precisão ao campus de
Gualtar da Universidade do Minho, que grava no nosso imaginário uma entrada principal: a da estátua de Prometeu, prestando
homenagem ao mito grego que castiga o titã por roubar o fogo aos deuses para o
dar aos homens. O fogo era um exclusivo dos deuses e, ao oferecê-lo
ao homem, Prometeu aproximava as duas condições – divina e humana – num acto
que não podia ser perdoado e que a academia não deve esquecer.
É sempre surpreendente perceber como os
antigos sabiam tanto, mesmo sem a base científica com que hoje observamos o
mundo. Eles sabiam da importância do fogo tanto como hoje a reconhecemos na
nossa evolução. Como diz Suzana Herculano-Houzel, em Deus Cérebro:
“Sem
estas ferramentas, sem fogo, sem modificar a comida que comemos, não estaríamos
aqui. Não teríamos energia suficiente para alimentar o cérebro que temos.”
Foi o fogo que nos tornou o que somos, e
o que somos transformou o mundo à nossa volta – o que nos recorda um dos
mais belos momentos da tragédia grega, quando, em Antígona,
Sófocles coloca no Coro as seguintes palavras:
“Muitos prodígios há; porém nenhum
maior do que o homem.”
O
maior dos prodígios foi capaz de passar pelas vagas fundas do mar cinzento,
trabalhar a terra “volvendo o arado, ano após ano” e usar o engenho para
apanhar todos os animais, dominando “o cavalo de longas crinas” e vencendo “o
touro indomável das alturas”; pensou em meios de evitar doenças invencíveis e a
fala e “as normas que regulam as cidades sozinho aprendeu”. Parece
que
“Ao Hades somente
não pode escapar.”
2 A tentação da húbris
Mas Sófocles termina a sua ode
recordando as limitações da humanidade: o seu engenho constitui também a sua vulnerabilidade ou, como
diz Maria Helena da Rocha Pereira,
“É que na própria grandeza o homem encontra a
sua maior limitação: é preciso prezar as leis da terra e também a justiça
divina, para subir bem alto na cidade (hypsipolis); quem assim não proceder, será «privado da cidade» (apolis).”
É
este reconhecimento que nos chegará com a noção de húbris, uma
aprendizagem sobre os nossos limites e o castigo que sucede ao desejo de
igualar os deuses. Encontramos uma variação da mesma lição na
tradição bíblica, com Eva e Adão a serem expulsos do paraíso por terem o comido o fruto da árvore do
conhecimento do bem e do mal. O
conhecimento do bem e do mal estava reservado a Deus, mas os homens parecem
ansiar permanentemente por uma nova condição.
Esta ânsia foi agravada no
século das Luzes com as ideias que moldaram a nossa forma de pensar: por um lado, a crença no conhecimento e no seu poder; por outro, a convicção na perfetibilidade humana e
no progresso. O ser humano estaria mais perto da
libertação e a ciência representaria essa fé, com os desenvolvimentos na
medicina, na produção de alimentos e na tecnologia a prometerem um mundo novo.
Recordemos o Grande
Inquisidor de Dostoievski:
“Três
poderes, três únicos poderes há capazes de conquistar e dominar para sempre a
consciência desses pobres rebeldes, em benefício próprio: o milagre, o
mistério e a autoridade.”
Em comentário, D. H. Lawrence sugere
que a ciência responde a essas três ânsias: alimenta-nos com meios misteriosos e
leva-nos a uma prostração maravilhada perante os seus feitos. É por essa razão que exerce um fascínio tão intenso
sobre nós. Pensemos em
como algumas pessoas levam a sério a colonização de Marte, ao ponto de se
ofereceram como voluntários para uma viagem sem regresso. Ou na admiração, quase infantil, a que
nos prestamos perante as maravilhas da inteligência artificial, e de como ela permitirá uma sociedade
mais igualitária, seres humanos mais livres e um futuro mais glorioso (e por isso
ouvimos, num misto de fascínio e terror, o podcast Máquinas que pensam todas as semanas). E há até
quem anseie pela espantosa evolução tecnológica que será o voto electrónico, capaz de resolver quase todos os
problemas do regime democrático.
É esta delusão que John Gray critica
em Sobre humanos e
outros animais, quando
defende que, ao aumentar o poder humano, a ciência se limita a amplificar as
falhas da natureza humana. A
nossa história parece estar mais próxima de Ícaro, que,
inebriado pela condição alada que o aproximava dos deuses, esqueceu a lição
sobre os seus limites. Ou, como diz Gray:
“O
conhecimento não nos torna livres. Deixa-nos como sempre fomos, presas de toda
a espécie de loucuras.”
3 A queda de Ícaro
O
pensamento filosófico é, em certo sentido, também representativo da ânsia de
divindade: afinal, não é a “homoiosis theoi” (tornar-se igual a deus) a
finalidade da vida filosófica para Platão?
Já na vida do dia-a-dia é a nossa
natureza mais irregular que se revela, entre a admiração pela capacidade de criação de Dédalo e a jocosa apreciação
da queda de Ícaro. Se, por um segundo, somos levados a alimentar o sonho de nos tornarmos deuses, no segundo
seguinte não resistimos à satisfação de assistir ao castigo inevitável.
Carlo Saraceni, The Fall of Icarus (séc. XVII)
Não é nada que nos deva envergonhar.
Somos criaturas intermédias, ao mesmo tempo capazes do prodígio e vulneráveis a
múltiplos vícios. Mas é essa condição que justifica a nossa obsessão com
fatalidades como o naufrágio do Titanic, a implosão do submarino Titan ou o
desaparecimento do veleiro Bayesian, que, tal como Ícaro, desapareceram entre
as águas. Podemos condoer-nos com
outras tragédias, mas são estas – as que tinham prometido a superação de todas
as vulnerabilidades e a consagração de todas as inovações – que mais ecoam no
nosso íntimo. Elas recordam-nos da nossa condição humana, nunca
divina.
COMENTÁRIOS (de 12)
Por aqui: Mais um excelente texto! É sempre um gosto lê-la!
Francisco
Almeida: Uma crónica que salva este dia do Observador. Não
sendo o assunto da crónica, no entanto retrata bem a diferença entre esquerda
radical e direita conservadora. Os primeiros tentam ser deuses com soluções
imediatas, definitivas e universais; os segundos partem da situação frágil dos
humanos, com todas as suas fraquezas e imperfeições e caminham em pequenos
passos sabendo que nunca atingirão a perfeição. De maneira mais agressiva, é a
diferença entre a arrogância e a humildade.
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