«Se
a alma não é pequena». Se a bolsa também. Diz-se por cá, por “Ranholas city”. Mas podemos sempre enganar-nos.
Nem tudo vale, mesmo com pena.
O Don Disto Tudo
Ricardo Salgado possui os
conhecimentos para transformar uma pessoa normal em alguém diminuído
intelectualmente, uma vez que passou a vida a fazer dos outros parvos.
JOSÉ DIOGO
QUINTELA Colunista do Observador
OBSERVADOR, 22
out. 2024, 00:1821
Em
1997, depois de 30 anos a fingir-se de doido para escapar a várias acusações, o
mafioso Vincent Gigante foi finalmente condenado a 12 anos de cadeia, onde
viria a morrer em 2005. Durante
três décadas, o padrinho da família Genovese passeou-se por Nova Iorque de
pijama e chinelos, a balbuciar incoerentemente para si próprio ou para pombos,
contando com diagnósticos de médicos amigos que garantiam a loucura do bandido.
O
precedente existe. Não é
inédito, em chefes de famílias do crime organizado, simular insanidade para
efeitos de defesa jurídica. Será que Ricardo Salgado está a usar o mesmo
estratagema? As semelhanças com o caso de Gigante são evidentes. Como
Gigante, Salgado também anda invulgarmente maltrapilho. Tudo bem, não é de pijama e chinelos, mas
para quem só costuma apresentar-se em público de fato feito à medida, gravatas
de seda e sapatos de pele de unicórnio, aparecer com um banal casaquinho de
malha é sinal de alarme.
Depois
de ter visto e revisto as imagens da chegada de Ricardo Salgado ao tribunal,
continuo sem conseguir dizer se o velho banqueiro está a fazer de conta. Mas
tenho a certeza de que o seu advogado está. O lábio tremelicante, a lagriminha
marota a querer marejar, a voz a sumir-se, a raivinha indignada pela injustiça
cometida ao seu constituinte, tudo aquilo tresanda a encenação. Um advogado,
principalmente dos caros, controla sempre as suas emoções. Aliás, cobra o
suficiente à hora para não ter emoções. Se Francisco Proença de Carvalho parece
um canastrão de telenovela é porque faz parte da estratégia de defesa parecer
um canastrão de telenovela. Para granjear compaixão pelo cliente. É possível
que funcione, atenção. Ao verem a figura patética, as pessoas pensam: “Para se
deixar representar por este neurótico, o Salgado deve estar mesmo maluquinho,
coitado”.
Agora, se em termos de lamechice Proença de Carvalho tem estado bem,
ao nível da argumentação tem falhado com estrondo. À
porta do Campus da Justiça, o advogado lamentou que Ricardo Salgado tenha sido
interrogado, pois está diminuído, como se viu pelo facto de ter dado a morada
errada, a data de nascimento errada e várias outras informações erradas.
Ora, isso não prova coisa nenhuma. Ricardo Salgado a prestar
informações falsas não é lá grande novidade. É, justamente, uma das razões para
estar a ser julgado: durante anos prestou informações falsas aos clientes, à
família, aos accionistas, ao Banco de Portugal, aos deputados e ao povo
português em geral. Portanto, se quer mostrar que o seu cliente está diminuído,
Proença de Carvalho vai ter de arranjar exemplos melhores.
Não sendo especialista em doenças
neurodegenerativas, faltam-me habilitações para avaliar a realidade do estado
de saúde de Ricardo Salgado. A minha capacidade para identificar aldrabice
médica esgota-se nas vezes em que os meus filhos fingem estar engripados para
não ir à escola. Os sintomas
surgirem na segunda-feira de manhã, num dia de teste, e não afectarem a vontade
de comer chocolate, são indícios de que podemos estar perante fraude clínica.
Mas os meus filhos são maus actores. A tosse é demasiado elaborada, a rouquidão é fajuta, a dor de cabeça
some-se a ver desenhos animados e a prostração não resiste a uma bola a
saltar-lhes à frente. Já Salgado é um estupendo impostor. Posso não conseguir dizer se está a
falsear o Alzheimer, mas não tenho dúvidas nenhumas de que, se quisesse,
conseguiria fazê-lo. É a conclusão óbvia a que chega quem viu e leu
transcrições de entrevistas, depoimentos e audições em comissões parlamentares.
Ricardo Salgado possui os conhecimentos para transformar uma pessoa normal em alguém
diminuído intelectualmente, uma vez que passou a vida a fazer dos outros
parvos. Bastava aplicar a receita em si próprio.
Existem dois tipos de pessoas que não acreditam que Ricardo Salgado
esteja realmente doente: quem nunca teve contacto directo com Alzheimer e acha que
quem sofre da doença fica apenas desmemoriado, no fundo acha que é uma daquelas
maleitas que aborrece mais os outros do que quem sofre dela, tipo halitose;
e quem foi pessoalmente prejudicado pelas patranhas de Salgado, ao ponto de agora
desconfiar de tudo o que vem dali. Para essas pessoas, Salgado é o
rapaz que gritou lobo, até ao dia em que o lobo aparece com um braço do rapaz
na boca e os aldeões, depois de enganados 73 vezes, dizem: “O aldrabão está a
mentir outra vez! Desta vez não caio nessa!”
Há ainda um terceiro tipo de incréus. Os que preferem acreditar que Ricardo
Salgado não sofre realmente de Alzheimer. Assusta-os ver que o homem que
controlava o país com uma impressionante agilidade mental seja agora incapaz de
ordenar ao mordomo que lhe ate os sapatos. Compreende-se. É duro
encarar assim a nossa decadência, optamos por ignorar. Mas é difícil escapar a
esta evidência. Na Roma Antiga, durante as paradas triunfais, o cônsul
vitoriado desfilava numa quadriga acompanhado por um escravo cuja função era,
no auge da glória, segredar-lhe: “Lembra-te que és mortal”. Ao ver este
julgamento, somos todos generais romanos a desfilar, com Salgado a
sussurrar-nos: “Lembra-te, que eu
já não consigo”.
Seja como for, depois da primeira semana
de testemunhos, é seguro dizer que, apesar de tudo, Salgado continua a parecer
o primo mais esperto.
CASO
BES BANCA ECONOMIA RICARDO
SALGADO PAÍS JUSTIÇA
COMENTÁRIOS (DE 21)
Antonio Tavares: Se as leis e o
sistema de justiça da Tugalândia fossem semelhantes às leis e ao sistema de
justiça dos EUA , o assunto BES e Salgado já estava resolvido e decidido há
muito tempo como sucedeu com o julgamento e condenação do Bernie Madoff e
as suas burlas monetárias de milhões de dólares. Na Tugalândia vai continuar
tudo na mesma para os bandidos milionários continuarem nas suas actividades sem
muitos aborrecimentos com a justiça. Venham os próximos eventos deste tipo. Américo
Silva: Por acaso
sabem qual a diferença entre Trump e Salgado? Salgado quer ter Alzheimer,
enquanto são os outros que querem que Trump tenha Alzheimer. bento
guerra: Excelente. Naquele desfile ridículo a que sujeitaram o artista, até
parecia que trazia uma mosca colada na sobrancelha direita. Este Proença não é
encenador ao nível do pai (o "diabinho" como lhe chamavam, porque era
administrador de dezenas de empresas). De "aristocrata" da
banca a saltimbanco José B
Dias: Indiscutivelmente, o primo mais esperto ... mesmo que com Alzheimer. Novo
Assinante: Caro José Diogo Quintela, Essa do Don Corleone Ricardo Salgado paga
direitos de autor. Vou mandar a factura para o seu correio electrónico. Com os melhores
cumprimentos. Maria
Paula Silva: ohpa... que maravilha! a sério, JDQ, este é um dos seus
melhores textos! Deliciei-me do princípio ao fim. Quando eu digo que
quando tudo prescrever, o Alzheimer passa, as pessoas dizem-me "é a
sério, é a sério!" Não, não é. E é visível. Não anda de pijama a falar
tontinho aos pombos porque a mulher não o deixa, isso é para os maluquinhos em
Nova Iorque ahahah, que são mais extravagantes, em Portugal há que ser
mais comedido e pirosamente recorrer ao casaquinho de malha comprado há uns
anos na Loja das Meias. O advogado? ui.... um nome a registar. para
o que der e vier, we never know lol mas quando vi o homem a falar, até me
ía dando uma coisinha, pois quando era nova trabalhei cerca de 20 anos num dos
melhores escritórios de advogados de Lisboa e fiquei banzada com a performance
do homem! a sério, pensava que já nem existiam espécimes destes. Quanto
aos seus filhos, e desculpe a ousadia, penso que os deve premiar
pois são uma fonte de inspiração e conhecimento permanente para si. Com eles
aprende/aprendemos muito. Vou dormir com a alma cheia e um sorriso de orelha a
orelha. Mas, agora a sério, acha mesmo que esta mer-da deste processo vai
chegar ao fim? ou vai ser mais um como o do Socratino e ficar tudo em águas de
bacalhau? Boa noite, JDQ e obrigada.
Fernando ce: Porque será que concordo com a
sua análise? Pela sua verosimilhança. Parabens pelo texto.
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