quarta-feira, 23 de outubro de 2024

«Tudo vale a pena»


«Se a alma não é pequena». Se a bolsa também. Diz-se por cá, por “Ranholas city”. Mas podemos sempre enganar-nos. Nem tudo vale, mesmo com pena.

O Don Disto Tudo

Ricardo Salgado possui os conhecimentos para transformar uma pessoa normal em alguém diminuído intelectualmente, uma vez que passou a vida a fazer dos outros parvos.

JOSÉ DIOGO QUINTELA Colunista do Observador

OBSERVADOR, 22 out. 2024, 00:1821

Em 1997, depois de 30 anos a fingir-se de doido para escapar a várias acusações, o mafioso Vincent Gigante foi finalmente condenado a 12 anos de cadeia, onde viria a morrer em 2005. Durante três décadas, o padrinho da família Genovese passeou-se por Nova Iorque de pijama e chinelos, a balbuciar incoerentemente para si próprio ou para pombos, contando com diagnósticos de médicos amigos que garantiam a loucura do bandido. O precedente existe. Não é inédito, em chefes de famílias do crime organizado, simular insanidade para efeitos de defesa jurídica. Será que Ricardo Salgado está a usar o mesmo estratagema? As semelhanças com o caso de Gigante são evidentes. Como Gigante, Salgado também anda  invulgarmente maltrapilho. Tudo bem, não é de pijama e chinelos, mas para quem só costuma apresentar-se em público de fato feito à medida, gravatas de seda e sapatos de pele de unicórnio, aparecer com um banal casaquinho de malha é sinal de alarme.

Depois de ter visto e revisto as imagens da chegada de Ricardo Salgado ao tribunal, continuo sem conseguir dizer se o velho banqueiro está a fazer de conta. Mas tenho a certeza de que o seu advogado está. O lábio tremelicante, a lagriminha marota a querer marejar, a voz a sumir-se, a raivinha indignada pela injustiça cometida ao seu constituinte, tudo aquilo tresanda a encenação. Um advogado, principalmente dos caros, controla sempre as suas emoções. Aliás, cobra o suficiente à hora para não ter emoções. Se Francisco Proença de Carvalho parece um canastrão de telenovela é porque faz parte da estratégia de defesa parecer um canastrão de telenovela. Para granjear compaixão pelo cliente. É possível que funcione, atenção. Ao verem a figura patética, as pessoas pensam: “Para se deixar representar por este neurótico, o Salgado deve estar mesmo maluquinho, coitado”.

Agora, se em termos de lamechice Proença de Carvalho tem estado bem, ao nível da argumentação tem falhado com estrondo. À porta do Campus da Justiça, o advogado lamentou que Ricardo Salgado tenha sido interrogado, pois está diminuído, como se viu pelo facto de ter dado a morada errada, a data de nascimento errada e várias outras informações erradas. Ora, isso não prova coisa nenhuma. Ricardo Salgado a prestar informações falsas não é lá grande novidade. É, justamente, uma das razões para estar a ser julgado: durante anos prestou informações falsas aos clientes, à família, aos accionistas, ao Banco de Portugal, aos deputados e ao povo português em geral. Portanto, se quer mostrar que o seu cliente está diminuído, Proença de Carvalho vai ter de arranjar exemplos melhores.

Não sendo especialista em doenças neurodegenerativas, faltam-me habilitações para avaliar a realidade do estado de saúde de Ricardo Salgado. A minha capacidade para identificar aldrabice médica esgota-se nas vezes em que os meus filhos fingem estar engripados para não ir à escola. Os sintomas surgirem na segunda-feira de manhã, num dia de teste, e não afectarem a vontade de comer chocolate, são indícios de que podemos estar perante fraude clínica. Mas os meus filhos são maus actores. A tosse é demasiado elaborada, a rouquidão é fajuta, a dor de cabeça some-se a ver desenhos animados e a prostração não resiste a uma bola a saltar-lhes à frente. Já Salgado é um estupendo impostor. Posso não conseguir dizer se está a falsear o Alzheimer, mas não tenho dúvidas nenhumas de que, se quisesse, conseguiria fazê-lo. É a conclusão óbvia a que chega quem viu e leu transcrições de entrevistas, depoimentos e audições em comissões parlamentares. Ricardo Salgado possui os conhecimentos para transformar uma pessoa normal em alguém diminuído intelectualmente, uma vez que passou a vida a fazer dos outros parvos. Bastava aplicar a receita em si próprio.

Existem dois tipos de pessoas que não acreditam que Ricardo Salgado esteja realmente doente: quem nunca teve contacto directo com Alzheimer e acha que quem sofre da doença fica apenas desmemoriado, no fundo acha que é uma daquelas maleitas que aborrece mais os outros do que quem sofre dela, tipo halitose; e quem foi pessoalmente prejudicado pelas patranhas de Salgado, ao ponto de agora desconfiar de tudo o que vem dali. Para essas pessoas, Salgado é o rapaz que gritou lobo, até ao dia em que o lobo aparece com um braço do rapaz na boca e os aldeões, depois de enganados 73 vezes, dizem: “O aldrabão está a mentir outra vez! Desta vez não caio nessa!”

Há ainda um terceiro tipo de incréus. Os que preferem acreditar que Ricardo Salgado não sofre realmente de Alzheimer. Assusta-os ver que o homem que controlava o país com uma impressionante agilidade mental seja agora incapaz de ordenar ao mordomo que lhe ate os sapatos. Compreende-se. É duro encarar assim a nossa decadência, optamos por ignorar. Mas é difícil escapar a esta evidência. Na Roma Antiga, durante as paradas triunfais, o cônsul vitoriado desfilava numa quadriga acompanhado por um escravo cuja função era, no auge da glória, segredar-lhe: “Lembra-te que és mortal”. Ao ver este julgamento, somos todos generais romanos a desfilar, com Salgado a sussurrar-nos: “Lembra-te, que eu já não consigo”.

Seja como for, depois da primeira semana de testemunhos, é seguro dizer que, apesar de tudo, Salgado continua a parecer o primo mais esperto.

CASO BES     BANCA     ECONOMIA     RICARDO SALGADO     PAÍS     JUSTIÇA

COMENTÁRIOS (DE 21)

Antonio Tavares: Se as leis e o sistema de justiça da Tugalândia fossem semelhantes às leis e ao sistema de justiça dos EUA , o assunto BES  e Salgado já estava resolvido e decidido há muito tempo como sucedeu com o julgamento e condenação  do Bernie Madoff e as suas burlas monetárias de milhões de dólares. Na Tugalândia vai continuar tudo na mesma para os bandidos milionários continuarem nas suas actividades sem muitos aborrecimentos com a justiça. Venham os próximos eventos deste tipo.                  Américo Silva: Por acaso sabem qual a diferença entre Trump e Salgado? Salgado quer ter Alzheimer, enquanto são os outros que querem que Trump tenha Alzheimer.               bento guerra: Excelente. Naquele desfile ridículo a que sujeitaram o artista, até parecia que trazia uma mosca colada na sobrancelha direita. Este Proença não é encenador ao nível do pai (o "diabinho" como lhe chamavam, porque era administrador de dezenas de empresas). De  "aristocrata" da banca a saltimbanco                  José B Dias: Indiscutivelmente, o primo mais esperto ... mesmo que com Alzheimer.                  Novo Assinante: Caro José Diogo Quintela,  Essa do Don Corleone Ricardo Salgado paga direitos de autor. Vou mandar a factura para o seu correio electrónico. Com os melhores cumprimentos.               Maria Paula Silva: ohpa... que maravilha!  a sério,  JDQ, este é um dos seus melhores textos! Deliciei-me do princípio ao fim.   Quando eu digo que quando tudo prescrever, o Alzheimer passa, as pessoas dizem-me  "é a sério, é a sério!" Não, não é. E é visível. Não anda de pijama a falar tontinho aos pombos porque a mulher não o deixa, isso é para os maluquinhos em Nova Iorque  ahahah, que são mais extravagantes, em Portugal há que ser mais comedido e pirosamente recorrer ao casaquinho de malha comprado há uns anos na Loja das Meias. O advogado?  ui....  um nome a registar. para o que der e vier, we never know lol  mas quando vi o homem a falar, até me ía dando uma coisinha, pois quando era nova trabalhei cerca de 20 anos num dos melhores escritórios de advogados de Lisboa e fiquei banzada com a performance do homem!  a sério, pensava que já nem existiam espécimes destes. Quanto aos seus filhos,   e desculpe a ousadia, penso que os deve premiar pois são uma fonte de inspiração e conhecimento permanente para si. Com eles aprende/aprendemos muito. Vou dormir com a alma cheia e um sorriso de orelha a orelha. Mas, agora a sério, acha mesmo que esta mer-da deste processo vai chegar ao fim? ou vai ser mais um como o do Socratino e ficar tudo em águas de bacalhau? Boa noite, JDQ e obrigada.             Fernando ce: Porque será que concordo com a sua análise? Pela sua verosimilhança. Parabens pelo texto. 

 

Nenhum comentário: