domingo, 6 de outubro de 2024

Revendo o passado


Em livro de textos presentes. De facto, também escrevi sobre Vera Lagoa em tempos, texto que ficou transcrito em “CRAVOS ROXOS” - “CONFIO EM PORTUGAL”, que transcrevo no fim dos COMENTÁRIOS, em evocação de alguém que fez parte das minhas memórias de retornada, e que MIGUEL PINHEIRO refere no seu OBSERVADOR, no texto que segue, trazendo à memória essas águas passadas, de diferente dimensão, pois que mais jovem, conquanto atento:

A liberdade de Vera Lagoa faz-nos falta

Vera Lagoa teve coragem para enfrentar os que estavam do outro lado. Mas também teve a liberdade de enfrentar os que estavam do lado dela. Não suportava "a cambada" — e "a cambada" não lhe perdoou.

MIGUEL PINHEIRO Director executivo do Observador

OBSERVADOR, 05 out. 2024, 00:2257

Em março de 1996, depois de algumas tentativas humilhantemente falhadas de entrar no jornalismo, subi as escadas de um edifício na rua Alexandre Herculano, bati à porta e fui pedir emprego no semanário “O Diabo”. Não levava nada para apresentar: não tinha nenhum currículo, não tinha nenhum curso de comunicação social e não tinha nenhuma carta de recomendação. Se bem me lembro, trazia apenas nas mãos tremelicantes um artigo escrito naquilo que deveria ser um péssimo português. Possivelmente curiosos por acharem este comportamento exótico, aceitaram-me. E, dessa forma improvável, comecei a trabalhar para Vera Lagoa.

Como se sabe, a juventude tem tendência para ser ignorante. Neste caso, confirma-se: eu era vagamente “jovem” e era, decididamente, ignorante. Por isso, não sabia bem quem era Vera Lagoa. Os detalhes escapavam-me, mas já tinha percebido, claro, que a “classe” a via com persistente desconfiança, com absoluto distanciamento e com indisfarçável temor. Isso, só por si, já era uma vantagem para quem estava à procura de diversão. Depois, havia o resto do mundo. Chegar a um congresso do PSD ou a um comício do PCP e apresentar-se como jornalista do semanário “O Diabo” era, em certo sentido, um exercício de insubordinação e uma aventura.

Para quem passou por tudo aquilo num juvenil estado de inconsciência, e sem na realidade ter tido a possibilidade de a conhecer bem, ouvir “A Grande Provocadora”, o Podcast Plus que o Observador acaba de lançar sobre a vida de Vera Lagoa, é ficar a saber hoje o que deveria ter sabido em 1996. Durante o Estado Novo, ela foi incansavelmente antisalazarista e teve a valentia de esconder várias vezes em casa militantes comunistas perseguidos pelo regime. Durante o processo revolucionário, denunciou os recém-convertidos que, tendo estado confortáveis na ditadura, procuravam agora, sofregamente, convencer o novo poder de que tinham sido marxistas desde o berço. Durante a democracia, combateu todos os que tentaram, em momentos diferentes, ser “donos disto tudo”. Esteve sempre contra, contra, contra.

Olhando agora para trás, percebe-se que não deve ter sido fácil. Vera Lagoa teve coragem para enfrentar todos os que estavam do outro lado. Mas também teve a liberdade de enfrentar os que estavam do lado dela — o que muitas vezes é mais difícil porque exige que se assuma o risco de ficar sozinho. Vera Lagoa fez isso antes do 25 de Abril, quando organizou os concursos de Miss Portugal desafiando os que, como ela, estavam então na esquerda e a acusavam de estar a ser cúmplice do “colonialismo”. E fez isso depois do 25 de Abril, quando desafiou os que, como ela, estavam então na direita. Aconteceu, por exemplo, em 1976, na altura em que foi internada durante algumas semanas por problemas de coração depois de terem colocado uma bomba no semanário que dirigia na época. Quando teve alta, não gostou do que viu: “Ficaram umas pessoas a tomar conta do jornal, que o estavam a puxar para um campo que não era o meu. Mais à direita do que estavam a colocar-me. Fechei o jornal, pura e simplesmente.” Como se vê, Vera Lagoa era, para usar o título de um programa de rádio, uma “radical livre”.

Em Portugal, não há muitas pessoas assim. É escusado repetir o que toda a gente sabe desde D. Afonso Henriques: somos um país demasiado pequeno para haver muita coragem e demasiado fechado para haver muita liberdade. Perseguição política, censura, bombas, jornais fechados à força, amigos perdidos. Vera Lagoa passou por tudo, suportou tudo e sobreviveu a tudo. E há um detalhe importante: fez isso sem nunca perder a graça. Passados tantos anos, até os inimigos reconhecerão que, sem ela, isto tem muito menos piada.

Há outra coisa que eu devia ter sabido em 1996. É que Vera Lagoa nasceu quando já tinha quase 50 anos. Até 1966, ela era Maria Armanda Falcão. Só aí é que mudou de nome, começou a escrever nos jornais e entrou numa nova vida. Até nisso foi um exemplo para quem, eventualmente, possa estar numa idade semelhante.

Até ao último dia de vida — literalmente até ao último, a 19 de agosto desse ano de 1996 — Vera Lagoa escreveu contra aqueles a quem chamava “a cambada”. É uma grande expressão, que resume muito do que precisamos de saber sobre o país. “A cambada”, naturalmente, nunca lhe perdoou. Mas vamos ser sinceros: Vera Lagoa também não queria nenhum perdão.

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COMENTÁRIOS:

Tim do A: Boa homenagem à senhora, com crítica à subserviência do jornalismo ao poder político, em geral, na actualidade. Acrescento que o jornal "O Diabo", todas as semanas nas bancas, é hoje dos raros órgãos de comunicação social em Portugal (senão quase o único) que conservam a coragem jornalística e a independência que eram o espírito de Vera Lagoa.               André Ondine: Gosto muito dos textos de Miguel Pinheiro. Mas, desta vez, não concordo.  Não por não sentir falta da liberdade e desprendimento de Vera Lagoa. Mas porque consigo colmatar essa falta com a presença quase de hora a hora da genialidade de Pedro Marques Lopes. Um homem que é amigo do seu amigo (e tem muitos, em lugares lá muito em cima) e um homem multifacetado como poucos. A Vera Lagoa escrevia sobre golfe? Não. O Lopes escreve e com saber. A Vera Lagoa escrevia sobre música e teatro? Sim. Mas o Lopes não dá só opiniões. Dá lições. Dita tendências, de cima de um saber enciclopédico. A Vera Lagoa escrevia sobre futebol? Não sei. Mas sei que o Lopes escreve. E também sabe da bola como poucos. Amigo de casa de gente pouco recomendável (e que o Lopes humilharia, não fossem eles amigos e facilitadores  da vida faustosa do Lopes), ainda esta semana  - no seguimento do empate do Porto na Europa, mostrando a falta de carácter típica dos que batem em quem está em baixo - escreveu um texto no Facebook sobre táctica da bola que devia ser um manual de referência num curso de cinismo. A Vera Lagoa escrevia sobre política e sobre outros jornalistas? Escrevia. Mas era desprendida. Criticava e elogiava amigos e inimigos. O Lopes também escreve e fala (muito, apesar dos constantes “assim termino”) sobre política. E não liga a partidos. Liga aos amigos. Está ali sempre pronto a glorificar os amigalhaços que (pensa que) tem na política e humilhar todos os que não dão tachos ao Lopes. E faz o mesmo com os camaradas comentadores / jornalistas. Está constantemente a elogiar quem precisa que o elogie a ele, alimentando aquela bolha de gente que vive em si própria, que os portugueses já começam a topar e só os editores e eles mesmo ainda alimentam. Depois queria-se que os jornais são menos lido e os programas Lopianos menos vistos…

Assim, como sentir falta da liberdade de Vera Lagoa se temos a libertinagem imoral de Pedro Marques Lopes?                 António Soares: Esqueceu-se de dizer, ou talvez desconheça,  que Vera Lagoa foi uma grande crítica da forma como foi feita a descolonização,  considerando Mário Soares, Costa Gomes, Almirante Rosa Coutinho e Almeida Santos, entre outros traidores à Pátria,  que deveriam ter sido levados a julgamento. Foi igualmente das maiores críticas do Presidente Eanes, a par do também saudoso Francisco Sá Carneiro, pela defesa e apoio que "El Eanito", como era caricaturado, pelo cartoonista do Diabo, Augusto Cid, sempre deu ao Conselho da Revolução de má memória.                    João Floriano > André Ondine: Não perca tempo com Pedro Marques Lopes. Eu já há muito tempo que deixei de ver o Eixo do Mal, por uma questão de higiene mental.                         Carlos Chaves: Obrigado Miguel Pinheiro por voltar a trazer para à ribalta a vida desta grande mulher, “um Diabo de saias”! Continuo quase religiosamente a ler o Diabo, que continua a descobrir as carecas à “cambada”! Jornal O Diabo, o jornalismo que merece apoio, sou assinante e aconselho a assinatura!                 klaus muller > André Ondine: Já há uns anos que deixei de ler ou ouvir o Lopes. Afasto-me sempre que a figurinha aparece. Bastava ouvi-lo um bocadinho  para se perceber que era um sabujo que se venderia por qualquer hipótese de tacho que vislumbrasse. Pelos vistos, continua na mesma.                 Maria Fernanda Louro: No PREC dizia-se que as únicas pessoas deste país com coragem eram 3 e todas usavam saias: Vera Lagoa, Fernanda Leitão, então directora do jornal "O Templário" Bispo do Porto               Fernando Cascais: Quer dizer, o Miguel Pinheiro foi trabalhar com a Vera Lagoa em Março de 1996 e passados cinco meses a senhora faleceu. Se calhar a escrita era mesmo, mesmo muito má.              Maria Paula Silva: Muito, muito bom!  É a sua homenagem, mas uma bela homenagem. De facto, eu também era uma jovem, mas se pensar em Vera Lagoa a primeira coisa que me vem à cabeça é que era uma pessoa incómoda. Penso que temos muita falta disso hoje em dia, com uma  maioria de CS  que não passam de "copy-pasters" avençados. É preciso continuar a correr com a cambada. Em 50 anos proliferou de tal forma que nem com 10 Veras Lagoas "isto ía ao sítio".                     bento guerra: Ela, apesar de cobrir o social, era jornalista. Vocês são serventuários. E agora, como no salazarismo, fabricam correntes únicas na cabeça dos leitores, hoje bem acomodados                  Carlos Anjos: Conheci a Maria Armanda Falcão e também a Vera Lagoa, fui colega e amigo do filho Armando Falcão, era visita da sua casa nas Amoreiras e na verdade o Miguel escreve um excelente artigo que caracteriza muito bem quem era a Vera Lagoa. Injustiçada? Muito e na verdade denunciou muitos oportunistas que no 26 de Abril apareceram na nossa praça e por isso muito poucos gostavam dela. Marcou uma época e só espero é que não seja esquecida. Parabéns Miguel.

 

Eis o texto sobre VERA LAGOA, que referi, e que transcrevo, com o interesse por uma figura que fez parte de tempos que foram:

 

DA II PARTE – “MAIS PEDRAS DE SAL” – de “LUSOS 74”, III LIVRO DE “CRAVOS ROXOS”

20 - CONFIO EM PORTUGAL

«É com este voto de confiança paternalista na defesa da nação no caso de Vera Lagoa que Manuel de Portugal termina uma sua crónica sobre a articulista, cujo semanário “O DIABO” foi suspenso por ataques graves ao nosso Presidente da República. Manuel de Portugal demonstra por A mais B que o nosso Presidente não devia ter dado o flanco mandando suspender o Jornal sem demonstração prévia da falsidade das afirmações nele inclusas, e que o brioso Exército Português, que repudiou briosamente os dizeres da arrebatada jornalista, não tinha nada que repudiar, pois não foi atacado na dita crónica.

Em nome do princípio da liberdade de expressão que Manuel da Portugal reivindica para o seu país, por amor pátrio e dos seus filhos, vem pois à liça para defender Vera Lagoa e até mesmo todas as Veras Lagoas do nosso país que, com a mão na anca ou não (e nesta expressão está patente a analogia com o verso “Numa mão sempre a espada e noutra a pena” do atraiçoado Camões) atacam corajosamente os erros portugueses, num propósito firme de os eliminar.

Nota-se assim que o estilo de Vera Lagoa desagrada a Manuel de Portugal, personagem chã e sem papas na língua para dizer as verdades, tal como Vera Lagoa, mas com um português muito mais evoluído.

Desse modo, enquanto a defende eruditamente, sugerindo amplos conhecimentos jurídicos às pessoas sem nenhuns, vai-a reduzindo com superioridade à sua condição inferior de mulher e de regateira, gabando-lhe a coragem e depreciando-lhe o estilo. Precisa das Veras Lagoas corajosas, embora sem o estilo amplo dos Manuéis de Portugal para a sua nobre tarefa de defender o país. Mas não deixa de, à boa maneira machista portuguesa, ironizar com autoridade <distante a respeito das Veras Lagoas com poucas possibilidades intelectuais (as possibilidades intelectuais são exclusivo masculino) e apenas necessárias nas suas funções de padeiras de Aljubarrota (excepto, claro, nas outras funções naturais, do exclusivo feminino, por obra e graça da natureza e dos ditos machistas ledores da Bíblia e adeptos da costela.

A minha mãezinha foi muito menos subtil no seu ataque à Vera Lagoa. Ao gabar-lhe eu a coragem da jornalista, ferindo o nosso Presidente, entre outros aspectos de menor monta, nos seus traços físicos, insulto de tanto maior gravidade quanto, por estar mais à vista, ele não foi contestado pelo Sr. Presidente, a minha mãe, educada nos princípios fascistas do respeito e submissão aos chefes, sem ter em conta esses traços, considerou-a apenas desbocada. Perderam-se assim todos os meus argumentos válidos sobre a necessidade de um procedimento exemplar dos ditos chefes, opondo-lhes a minha mãe vários outros redutíveis ao clássico “errare humanum est”.

Também eu, como Vera Lagoa e Manuel de Portugal, desejo um Portugal (naquilo que dele nos resta) livre e sem censura demasiado rigorosa. A liberdade favorece a arte no que ela tem de mais válido – o sentido crítico – e se ela explica um Gil Vicente e um Eça de Queirós nos tempos passados, também explica as crónicas de Vera Lagoa e de Manuel de Portugal nos tempos presentes, embora com nítida supremacia literária masculina, de antanho e de ogano, por causa do exclusivo.»

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