Em livro de textos presentes. De facto,
também escrevi sobre Vera Lagoa em tempos, texto que ficou transcrito
em “CRAVOS ROXOS” - “CONFIO EM PORTUGAL”, que transcrevo no fim dos COMENTÁRIOS,
em evocação de alguém que fez parte das minhas memórias de retornada, e que
MIGUEL PINHEIRO refere no seu OBSERVADOR, no texto que segue, trazendo à
memória essas águas passadas, de diferente dimensão, pois que mais jovem,
conquanto atento:
A liberdade de Vera Lagoa faz-nos falta
Vera Lagoa teve coragem para
enfrentar os que estavam do outro lado. Mas também teve a liberdade de
enfrentar os que estavam do lado dela. Não suportava "a cambada" — e
"a cambada" não lhe perdoou.
MIGUEL PINHEIRO Director executivo do
Observador
OBSERVADOR, 05
out. 2024, 00:2257
Em março de 1996, depois de algumas
tentativas humilhantemente falhadas de entrar no jornalismo, subi as escadas de
um edifício na rua Alexandre Herculano, bati à porta e fui pedir emprego no
semanário “O Diabo”. Não levava nada para apresentar: não tinha nenhum
currículo, não tinha nenhum curso de comunicação social e não tinha nenhuma
carta de recomendação. Se bem me lembro, trazia apenas nas mãos tremelicantes
um artigo escrito naquilo que deveria ser um péssimo português. Possivelmente
curiosos por acharem este comportamento exótico, aceitaram-me. E, dessa forma
improvável, comecei a trabalhar para Vera Lagoa.
Como se sabe, a juventude tem tendência
para ser ignorante. Neste caso, confirma-se: eu era vagamente “jovem” e era,
decididamente, ignorante. Por isso, não sabia bem quem era Vera Lagoa. Os
detalhes escapavam-me, mas já tinha percebido, claro, que a “classe” a via com persistente desconfiança, com absoluto
distanciamento e com indisfarçável temor. Isso, só por si, já era uma vantagem para quem estava à procura de
diversão. Depois, havia o resto do mundo. Chegar a um congresso do PSD ou a um
comício do PCP e apresentar-se como jornalista do semanário “O Diabo” era, em
certo sentido, um exercício de insubordinação e uma aventura.
Para quem passou por tudo aquilo num
juvenil estado de inconsciência, e sem na realidade ter tido a possibilidade de
a conhecer bem, ouvir “A Grande
Provocadora”, o Podcast Plus que o Observador acaba de lançar sobre
a vida de Vera Lagoa, é ficar a saber hoje o que deveria ter sabido em 1996.
Durante o Estado Novo, ela foi
incansavelmente antisalazarista e teve a valentia de esconder várias vezes em
casa militantes comunistas perseguidos pelo regime. Durante o processo
revolucionário, denunciou os recém-convertidos que, tendo estado confortáveis
na ditadura, procuravam agora, sofregamente, convencer o novo poder de que
tinham sido marxistas desde o berço. Durante a democracia, combateu todos os
que tentaram, em momentos diferentes, ser “donos disto tudo”. Esteve sempre
contra, contra, contra.
Olhando agora para trás, percebe-se que
não deve ter sido fácil. Vera Lagoa teve coragem para enfrentar todos os que
estavam do outro lado. Mas também teve a liberdade de enfrentar os que
estavam do lado dela — o que muitas vezes é mais difícil porque exige
que se assuma o risco de ficar sozinho. Vera Lagoa fez isso antes do 25 de
Abril, quando organizou os concursos
de Miss Portugal desafiando os que, como ela, estavam então na esquerda e a
acusavam de estar a ser cúmplice do “colonialismo”. E fez isso depois do 25 de
Abril, quando desafiou os que, como ela, estavam então na direita.
Aconteceu, por exemplo, em 1976, na altura em que foi internada durante algumas
semanas por problemas de coração depois de terem colocado uma bomba no
semanário que dirigia na época. Quando teve alta, não gostou do que viu: “Ficaram umas pessoas a tomar conta do
jornal, que o estavam a puxar para um campo que não era o meu. Mais à direita
do que estavam a colocar-me. Fechei o jornal, pura e simplesmente.”
Como se vê, Vera Lagoa era, para usar o título de um programa de rádio, uma
“radical livre”.
Em
Portugal, não há muitas pessoas assim. É escusado repetir o que toda a gente
sabe desde D. Afonso Henriques: somos um país demasiado pequeno para haver
muita coragem e demasiado fechado para haver muita liberdade. Perseguição
política, censura, bombas, jornais fechados à força, amigos perdidos. Vera
Lagoa passou por tudo, suportou tudo e sobreviveu a tudo. E há um detalhe
importante: fez isso sem nunca perder a graça. Passados tantos anos, até os
inimigos reconhecerão que, sem ela, isto tem muito menos piada.
Há outra coisa que eu devia ter sabido
em 1996. É que Vera Lagoa nasceu quando já tinha quase 50 anos. Até 1966,
ela era Maria Armanda Falcão. Só aí é que mudou de nome, começou a escrever nos
jornais e entrou numa nova vida. Até nisso foi um exemplo para quem,
eventualmente, possa estar numa idade semelhante.
Até ao último dia de vida — literalmente
até ao último, a 19 de agosto desse ano de 1996 — Vera Lagoa escreveu
contra aqueles a quem chamava “a cambada”. É uma grande expressão, que resume
muito do que precisamos de saber sobre o país. “A cambada”, naturalmente, nunca
lhe perdoou. Mas vamos ser sinceros: Vera
Lagoa também não queria nenhum perdão.
POLÍTICA PODCAST
PLUS PODCASTS
COMENTÁRIOS:
Tim do A: Boa homenagem à senhora, com crítica à subserviência do jornalismo ao poder
político, em geral, na actualidade. Acrescento que o jornal "O
Diabo", todas as semanas nas bancas, é hoje dos raros órgãos de
comunicação social em Portugal (senão quase o único) que conservam a coragem
jornalística e a independência que eram o espírito de Vera Lagoa. André
Ondine: Gosto muito dos textos de Miguel Pinheiro. Mas, desta vez, não concordo. Não por não sentir falta da
liberdade e desprendimento de Vera Lagoa. Mas porque consigo colmatar essa
falta com a presença quase de hora a hora da genialidade de Pedro Marques Lopes.
Um homem que é amigo do seu amigo (e tem muitos, em lugares lá muito em cima) e
um homem multifacetado como poucos. A Vera Lagoa escrevia sobre golfe? Não. O
Lopes escreve e com saber. A Vera Lagoa escrevia sobre música e teatro? Sim.
Mas o Lopes não dá só opiniões. Dá lições. Dita tendências, de cima de um saber
enciclopédico. A Vera Lagoa escrevia sobre futebol? Não sei. Mas sei que o
Lopes escreve. E também sabe da bola como poucos. Amigo de casa de gente pouco
recomendável (e que o Lopes humilharia, não fossem eles amigos e facilitadores
da vida faustosa do Lopes), ainda esta semana - no seguimento do
empate do Porto na Europa, mostrando a falta de carácter típica dos que batem
em quem está em baixo - escreveu um texto no Facebook sobre táctica da bola que
devia ser um manual de referência num curso de cinismo. A Vera Lagoa escrevia
sobre política e sobre outros jornalistas? Escrevia. Mas era desprendida.
Criticava e elogiava amigos e inimigos. O Lopes também escreve e fala (muito,
apesar dos constantes “assim termino”) sobre política. E não liga a partidos.
Liga aos amigos. Está ali sempre pronto a glorificar os amigalhaços que (pensa
que) tem na política e humilhar todos os que não dão tachos ao Lopes. E faz o
mesmo com os camaradas comentadores / jornalistas. Está constantemente a
elogiar quem precisa que o elogie a ele, alimentando aquela bolha de gente que
vive em si própria, que os portugueses já começam a topar e só os editores e
eles mesmo ainda alimentam. Depois queria-se que os jornais são menos lido e os
programas Lopianos menos vistos…
Assim, como sentir falta da liberdade de Vera Lagoa se
temos a libertinagem imoral de Pedro Marques Lopes? António Soares: Esqueceu-se de dizer, ou talvez desconheça, que Vera Lagoa foi uma
grande crítica da forma como foi feita a descolonização, considerando
Mário Soares, Costa Gomes, Almirante Rosa Coutinho e Almeida Santos, entre
outros traidores à Pátria, que deveriam ter sido levados a julgamento.
Foi igualmente das maiores críticas do Presidente Eanes, a par do também
saudoso Francisco Sá Carneiro, pela defesa e apoio que "El Eanito",
como era caricaturado, pelo cartoonista do Diabo, Augusto Cid, sempre deu ao
Conselho da Revolução de má memória. João
Floriano > André Ondine: Não perca tempo com Pedro
Marques Lopes. Eu já há muito tempo que deixei de ver o Eixo do Mal, por uma
questão de higiene mental. Carlos
Chaves: Obrigado Miguel Pinheiro por voltar a trazer para à ribalta a vida
desta grande mulher, “um Diabo de saias”! Continuo quase religiosamente a ler o
Diabo, que continua a descobrir as carecas à “cambada”! Jornal O Diabo, o jornalismo
que merece apoio, sou assinante e aconselho a assinatura! klaus muller > André Ondine: Já há uns anos que deixei de
ler ou ouvir o Lopes. Afasto-me sempre que a figurinha aparece. Bastava ouvi-lo
um bocadinho para se perceber que era um sabujo que se venderia por
qualquer hipótese de tacho que vislumbrasse. Pelos vistos, continua na mesma. Maria
Fernanda Louro: No PREC dizia-se que as únicas pessoas deste país com coragem eram 3 e
todas usavam saias: Vera Lagoa, Fernanda Leitão, então directora do jornal
"O Templário" Bispo do Porto Fernando Cascais: Quer dizer, o Miguel Pinheiro foi trabalhar com a Vera
Lagoa em Março de 1996 e passados cinco meses a senhora faleceu. Se calhar a
escrita era mesmo, mesmo muito má.
Maria Paula Silva:
Muito, muito
bom! É a sua homenagem, mas uma bela homenagem. De facto, eu também era uma jovem, mas se pensar em Vera Lagoa a primeira
coisa que me vem à cabeça é que era uma pessoa incómoda. Penso que temos muita falta disso hoje em dia, com uma maioria de
CS que não passam de "copy-pasters" avençados. É preciso continuar a correr com a cambada. Em 50 anos proliferou de tal
forma que nem com 10 Veras Lagoas "isto ía ao sítio". bento
guerra: Ela, apesar de cobrir o social, era jornalista. Vocês são serventuários. E
agora, como no salazarismo, fabricam correntes únicas na cabeça dos leitores, hoje
bem acomodados Carlos
Anjos: Conheci a Maria Armanda Falcão e também a Vera Lagoa, fui colega e amigo do
filho Armando Falcão, era visita da sua casa nas Amoreiras e na verdade o Miguel
escreve um excelente artigo que caracteriza muito bem quem era a Vera Lagoa.
Injustiçada? Muito e na verdade denunciou muitos oportunistas que no 26 de
Abril apareceram na nossa praça e por isso muito poucos gostavam dela. Marcou
uma época e só espero é que não seja esquecida. Parabéns Miguel.
Eis o texto
sobre VERA LAGOA, que referi, e que transcrevo, com o interesse por uma figura
que fez parte de tempos que foram:
DA II PARTE – “MAIS
PEDRAS DE SAL” – de “LUSOS 74”, III LIVRO DE “CRAVOS ROXOS”
20 - CONFIO EM
PORTUGAL
«É com este voto
de confiança paternalista na defesa da nação no caso de Vera Lagoa que Manuel
de Portugal termina uma sua crónica sobre a articulista, cujo semanário “O
DIABO” foi suspenso por ataques graves ao nosso Presidente da República. Manuel
de Portugal demonstra por A mais B que o nosso Presidente não devia ter dado o
flanco mandando suspender o Jornal sem demonstração
prévia da falsidade das afirmações nele inclusas, e que o brioso Exército
Português, que repudiou briosamente os dizeres da arrebatada jornalista, não
tinha nada que repudiar, pois não foi atacado na dita crónica.
Em nome do
princípio da liberdade de expressão que Manuel da Portugal reivindica para o
seu país, por amor pátrio e dos seus filhos, vem pois à liça para defender Vera
Lagoa e até mesmo todas as Veras Lagoas do nosso país que, com a mão na anca ou
não (e nesta expressão está patente a analogia com o verso “Numa mão sempre a espada e noutra a pena”
do atraiçoado Camões) atacam corajosamente os erros portugueses, num propósito
firme de os eliminar.
Nota-se assim
que o estilo de Vera Lagoa desagrada a Manuel de Portugal, personagem chã e sem
papas na língua para dizer as verdades, tal como Vera Lagoa, mas com um
português muito mais evoluído.
Desse modo,
enquanto a defende eruditamente, sugerindo amplos conhecimentos jurídicos às
pessoas sem nenhuns, vai-a reduzindo com superioridade à sua condição inferior
de mulher e de regateira, gabando-lhe a coragem e depreciando-lhe o estilo.
Precisa das Veras Lagoas corajosas, embora sem o estilo amplo dos Manuéis de
Portugal para a sua nobre tarefa de defender o país. Mas não deixa de, à boa
maneira machista portuguesa, ironizar com autoridade <distante a respeito
das Veras Lagoas com poucas possibilidades intelectuais (as possibilidades
intelectuais são exclusivo masculino) e apenas necessárias nas suas funções de
padeiras de Aljubarrota (excepto, claro, nas outras funções naturais, do
exclusivo feminino, por obra e graça da natureza e dos ditos machistas ledores
da Bíblia e adeptos da costela.
A minha mãezinha
foi muito menos subtil no seu ataque à Vera Lagoa. Ao gabar-lhe eu a coragem da
jornalista, ferindo o nosso Presidente, entre outros aspectos de menor monta,
nos seus traços físicos, insulto de tanto maior gravidade quanto, por estar
mais à vista, ele não foi contestado pelo Sr. Presidente, a minha mãe, educada
nos princípios fascistas do respeito e submissão aos chefes, sem ter em conta
esses traços, considerou-a apenas desbocada. Perderam-se assim todos os meus
argumentos válidos sobre a necessidade de um procedimento exemplar dos ditos
chefes, opondo-lhes a minha mãe vários outros redutíveis ao clássico “errare
humanum est”.
Também eu, como
Vera Lagoa e Manuel de Portugal, desejo um Portugal (naquilo que dele nos
resta) livre e sem censura demasiado rigorosa. A liberdade favorece a arte no
que ela tem de mais válido – o sentido crítico – e se ela explica um Gil
Vicente e um Eça de Queirós nos tempos passados, também explica as crónicas de
Vera Lagoa e de Manuel de Portugal nos tempos presentes, embora com nítida
supremacia literária masculina, de antanho e de ogano, por causa do exclusivo.»
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