Realistas os versos de Camões: «E, afora este
mudar-se cada dia / Outra mudança faz de
mor espanto / Que não se
muda já como soía.»
Nem vale a pena afligirmo-nos muito,
afinal, confiemos na matéria animista humana, “vária e mutável”, mas talvez
suficientemente engenhosa e prudente, para poder recuar, nos avanços das suas
modernidades… Já o dizia Manuel Alegre, embora noutros contextos ideológicos:
“há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que
diz não.”
E assim prosseguirá a Humanidade, avançando, recuando, recuperando, corrigindo, introduzindo novidades, com filósofos a esclarecer…
Embora, é certo, só se forem lidos...
Recuperar a autenticidade
Temos de voltar a educar as crianças,
adolescentes e até adultos a focarem-se no seu crescimento verdadeiro, ao invés
de seguirem o ideal irreal e egocêntrico promovido pelas redes.
RODRIGO ADÃO DA FONSECA Colunista
OBSERVADOR, 29 out. 2024, 00:153
Se
perguntássemos a um milhão de pessoas qual é a principal preocupação da vida
humana, a resposta mais comum seria, seguramente, “a busca da felicidade”. Como nos
ensinou William James na sua obra As Variedades da Experiência Religiosa, alcançar, manter ou recuperar a
felicidade é, para a maioria dos homens ao longo dos tempos, o motivo secreto
de tudo o que fazem e de tudo o que estão dispostos a suportar. Não é,
também, incomum que as pessoas pensem na plenitude como um destino, um estado
final onde as suas vidas estão em perfeita ordem, onde são felizes,
equilibradas e em paz com o seu papel no mundo.
Hoje, contudo, a ideia de felicidade plena está a ser fortemente
distorcida por uma sociedade dependente de redes sociais, tendo-se tornado uma
sombra de si própria, uma espécie de ilusão disforme de um estado ideal que
supostamente todos nós deveríamos alcançar. A
perseguição de uma felicidade pervertida pelas redes sociais está a tornar o
dia-a-dia de muitas pessoas num inferno semelhante ao que é experienciado por
quem mergulha nas drogas duras, onde, depois de um período inicial de
deslumbramento, a vida se torna numa náusea rumo ao abismo.
No
caso das crianças, e na linha do
que apresentei numa das últimas crónicas, o embalo das
redes sociais e dos jogos online, patrocinado pelo acesso através de
telemóveis, está a ter efeitos altamente nocivos, desde logo, no seu
comportamento imediato. Há toda uma
economia digital construída em cima de estímulos aditivos que está a
transformar as crianças em dependentes de estímulos digitais. A
expressão pode ser agreste, mas não é exagerada se pensarmos que são inúmeras as crianças que não
conseguem, hoje, estar cinco minutos concentradas a ler um livro ou a ver um
filme e que entram – literalmente – em espasmo físico (com relatos de dor física e até vómitos) quando privadas dos seus dispositivos. As dezenas
de relatos que recolhi nas últimas semanas, de pais, professores e pessoas
expostas a crianças, revelam um cenário muito pior do que aquele que
encontro nos estudos e textos teóricos dedicados ao tema, pois os estudos
acabam por avançar mais lentamente que a realidade: e a realidade, mês após mês, atinge patamares
inimagináveis.
Mas se há sinais de comportamentos
imediatos que já por si são preocupantes, há
danos menos visíveis, mas igualmente graves, que resultam da distorção das
aspirações que estamos a permitir que as crianças construam, e da forma como
deixamos que plataformas de marketing funcionem como fonte principal
das referências sobre o que significa a vida adulta e o futuro. Cada
vez mais inebriados num mundo ilusório e fictício, não são poucas as crianças
(e cada vez mais, também adultos) que entram em choque quando são forçadas a
enfrentar a realidade, com toda a sua complexidade e caos: contas, tarefas diárias, fracassos,
preocupações financeiras, desilusões e as pressões de um mundo em constante
crise e com poucos horizontes e perspectivas. A pressão para alcançar uma felicidade idealizada, apresentada de
forma incessante nas redes, torna a plenitude uma miragem, alimentada pelo
filtro irreal de uma vida perfeita. Um ambiente digital que promove
um foco no que “não temos” e nos defeitos que supostamente precisamos de
corrigir, acaba por nos desviar a todos do que realmente somos e poderíamos
desenvolver – sendo isso particularmente crítico quando falamos de crianças em
fase de crescimento e formação das suas personalidades e valorização do seu
potencial.
Muitos
jovens, como resposta à pressão de perseguição de um ideal utópico sem
viabilidade real, têm crescentemente optado por, defensivamente, abandonar ambições. Num aparente “desprendimento” material,
muitos aceitam a ideia de que não faz sentido tentar melhorar, ser o melhor ou
ir mais longe – e, com isso, renunciam aos sacrifícios necessários para a
construção do caráter e da autonomia. Embora não sejam poucos os que elogiam
essa atitude das gerações mais novas, confundindo esta conformação ou desistência
com um sinal de liberdade ou desprendimento, ela pode ser altamente prejudicial
para a formação da personalidade e da capacidade de autossuperação dos futuros
adultos.
Desligar os miúdos de telemóveis,
videojogos e redes sociais é fundamental se queremos salvaguardar o seu futuro. Temos de voltar a educar as crianças,
adolescentes e até adultos a focarem-se no seu crescimento verdadeiro, ao invés
de seguirem o ideal irreal e egocêntrico promovido pelas redes. É necessário
ensinar as pessoas a valorizar mais o seu potencial e capacidades, trabalhando
as suas forças, talentos e virtudes, e a preocuparem-se menos em se compararem
com arquétipos de perfeição que não são nem realistas nem viáveis.
A verdadeira plenitude não vai brotar
das aparências ou da ocultação das emoções, mesmo as mais complexas. A autenticidade, um valor que deveria
estar na base da educação dos mais novos, implica sermos capazes de acolher
toda a gama das emoções humanas, integrando tanto as positivas quanto as
experiências mais difíceis. Ensinar as novas gerações a lidar com
situações negativas e a transformar esses momentos em oportunidades de
superação é fundamental para uma construção sólida do caráter. Em vez de uma
plenitude artificial, limitada a esconder ou reparar o que supostamente está
“errado”, precisamos de promover uma ideia de crescimento autêntico, com espaço
para o erro, onde a capacidade de enfrentar desafios é o que fortalece a
autoconfiança e prepara para uma vida plena e resiliente.
Se as redes sociais incentivam um
estilo de vida centrado no ego e na perfeição superficial, cabe
aos adultos mais responsáveis, que ainda não se tornaram dependentes digitais,
estimular as gerações futuras a valorizarem uma vida equilibrada e autêntica.
O primeiro passo, porém, tem de ser dado pelos adultos, dando o exemplo
e reconhecendo a natureza ilusória da felicidade “instagramável”. São muitos os adultos que precisam de se libertar
para buscar de novo plenitudes verdadeiras e realistas – que, embora
imperfeitas, permitem prosperar e encontrar satisfação genuína, mesmo quando a
vida apresenta desafios. Só assim, libertos nós próprios das prisões em que
também nos estamos a deixar cair, poderemos sinalizar aquilo que importa aos
mais novos: é ao
enfrentar dificuldades e superar problemas que se constrói a vida adulta.
COMENTÁRIOS
Tomazz Man: Dá
que pensar, sem dúvida.
Marceloofalso > PCdoZ: Gostei muito de ler o seu
artigo, mas não tenho a certeza de que escreveu alguma coisa acertado. Os
humanos sempre foram predadores entre eles, só que com um mundo fechado pouco
sabíamos. Agora com este acesso às redes sociais e à informação descentralizada
tudo nos parece mau de mais. Mas não, não estamos pior do que aquilo que sempre
fomos, temos apenas mais conhecimento. O que resta? A censura? A educação para
o futuro? A proibição da internet a não ser para as coisas fofinhas, tipo vai
ficar tudo bem? No fundo somos enquanto seres humanos capazes do melhor e do
pior. Qual força acabará por ganhar? bento
guerra: Uma sociedade
só vai mudando, com o valor das figuras "de referência" nas várias
áreas e a cumplicidade activa da Comunicação. Não vejo hipóteses, em Portugal. Mas
não se assuste, também não vejo na maioria dos países. O Telelixo traz
audiências e aumenta os "share" e mais publicidade Duarte
Maymone: Muito bem,
Rodrigo! Jorge Mayer: Claro e
incisivo. O construir caminho, a auto-superação, são partes essenciais de
uma vida adulta e madura. Muito obrigado!
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